De quem é a culpa pela judicialização da saúde?
Planos de saúde negam tratamentos e lucram bilhões, mas culpam o consumidor pelo aumento de ações na Justiça. Quem realmente causa a judicialização?
sexta-feira, 21 de março de 2025
Atualizado às 17:37
Introdução
A cada ano, cresce o número de processos judiciais contra planos de saúde. A narrativa dominante culpa os próprios pacientes, insinuando que eles abusam do sistema e recorrem à Justiça para obter vantagens indevidas. Mas será mesmo que o problema está no paciente que busca seu direito ou nos planos de saúde que descumprem contratos?
O que vemos, na realidade, é um cenário em que operadoras de planos de saúde negam procedimentos essenciais, cortam profissionais e hospitais credenciados e reduzem coberturas, tudo sob a justificativa de contenção de custos. No entanto, os balanços financeiros dessas empresas contam outra história.
A realidade por trás das negativas: Lucros bilionários e a falácia da crise financeira
Os planos de saúde alegam dificuldades financeiras para justificar cortes de cobertura, descredenciamento de médicos e clínicas e a negativa de procedimentos essenciais. Contudo, os dados mostram uma realidade completamente diferente: recentemente, uma reportagem1 revelou que os planos de saúde tiveram um lucro líquido de R$ 11,1 bilhões em 2024, um aumento impressionante de 271% em relação ao ano anterior. Os mesmos planos que alegam dificuldades financeiras nunca lucraram tanto.
Outro dado que desmonta a narrativa de crise dos planos de saúde é a queda na sinistralidade. Sinistralidade é o índice que mede a relação entre os custos assistenciais - ou seja, os gastos com consultas, exames, internações e procedimentos - e a receita obtida pelas operadoras. Quando esse índice é alto, as operadoras justificam reajustes elevados nas mensalidades, alegando que os custos aumentaram. No entanto, apesar da redução da sinistralidade, os planos continuam aplicando aumentos abusivos nas mensalidades, demonstrando que o problema não está nos custos assistenciais, mas sim na busca incessante pelo lucro às custas dos consumidores.
Diante de todos esses dados, fica difícil sustentar a tese de que a judicialização da saúde ocorre por um suposto excesso de pedidos injustificados. Afinal, se o problema fosse financeiro, como explicar esses resultados astronômicos? Como conciliar essa suposta crise com um crescimento tão expressivo nos ganhos?
A Justiça só condena quando há direito
Um ponto frequentemente ignorado é que nenhuma operadora de saúde é condenada sem fundamento. Se a Justiça condena os planos de saúde a fornecerem tratamentos, isso acontece porque eles têm essa obrigação contratual e legal, e foi negada pela operadora. O juiz não cria direitos do nada: ele apenas faz valer o que já deveria estar sendo cumprido.
É verdade que existem fraudes contra as operadoras de planos de saúde, como a utilização indevida do convênio por terceiros ou pedidos de reembolsos indevidos. No entanto, esses são casos isolados, que de maneira alguma representam a grande maioria dos consumidores. A imensa maioria dos beneficiários apenas quer ter acesso ao atendimento pelo qual paga mensalmente, muitas vezes há anos, e se vê obrigada a recorrer à Justiça quando seus direitos são negados. Usar fraudes pontuais como argumento para justificar negativas em massa ou para sustentar a tese de que a judicialização ocorre por abuso dos pacientes é uma estratégia que distorce a realidade e desvia o foco do verdadeiro problema: o descumprimento dos contratos por parte das operadoras.
A verdadeira causa da judicialização não está nos pacientes que buscam seus direitos, mas sim nos planos de saúde que insistem em descumprir contratos e negar atendimentos. São essas práticas abusivas que obrigam os consumidores a recorrerem à Justiça para garantir o acesso a tratamentos essenciais.
Quem realmente causa a judicialização? A culpa é do paciente ou do descumprimento dos contratos?
Se os planos cumprissem suas obrigações desde o início, a necessidade de processos judiciais seria drasticamente reduzida. A responsabilidade pelo crescimento das demandas judiciais não é do paciente que luta por sua saúde, mas das operadoras que, sistematicamente, descumprem contratos e tentam reduzir custos às custas da qualidade e da vida dos consumidores.
É muito comum que os planos de saúde neguem medicamentos de alto custo, cirurgias e outros tratamentos sob a alegação de que não estão no rol da ANS. No entanto, essa justificativa ignora um ponto fundamental: o rol da ANS é exemplificativo, não limitativo.
Além disso, com as novas regras trazidas pelo art. 10, §10º, da lei 9.656/1998, foi criado um mecanismo de incorporação automática de medicamentos e tratamentos ao rol da ANS sempre que houver recomendação favorável da Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Isso significa que, mesmo sem uma atualização formal do rol da ANS, os medicamentos já avaliados e incorporados ao SUS tornam-se automaticamente de cobertura obrigatória, sem necessidade de nova deliberação pela agência reguladora.
Ou seja, os planos de saúde não deveriam se esquivar de coberturas essenciais com a velha desculpa da ausência no rol, pois a legislação já determinou que esses tratamentos devem ser garantidos aos beneficiários.
Por fim, um fator que agrava ainda mais a judicialização da saúde é a postura recorrente dos planos de saúde em descumprir tutelas de urgência. Mesmo após determinação judicial para fornecimento de um medicamento, realização de uma cirurgia ou custeio de um tratamento, muitas operadoras simplesmente ignoram a ordem, forçando o paciente a enfrentar ainda mais dificuldades para garantir seu direito. Esse comportamento gera um acúmulo elevado de multas, que poderiam ser evitadas caso a política do plano fosse cumprir a tutela tão logo recebida.
Além disso, uma vez que a tutela de urgência foi deferida, a probabilidade de o plano conseguir revertê-la sem antes cumpri-la é mínima, seja pelo curto espaço de tempo entre a decisão e a análise de um eventual recurso, seja pela forte probabilidade de que o direito do autor seja reconhecido no mérito.
Ou seja, o plano de saúde não apenas prolonga o sofrimento do paciente, como também expõe a si mesmo a penalidades financeiras desnecessárias, numa postura que revela mais um desrespeito ao consumidor do que uma real preocupação com sua sustentabilidade econômica.
Conclusão
O debate sobre a judicialização da saúde precisa ser feito com seriedade e transparência. Transferir a culpa para o paciente é apenas uma estratégia para desviar o foco do verdadeiro problema: a conduta abusiva dos planos de saúde.
A culpa pela judicialização não é do paciente que busca atendimento, mas da operadora que se recusa a fornecer o que foi contratado. É hora de parar de culpar as vítimas e exigir responsabilidade de quem realmente gera o problema.
Enquanto essas práticas persistirem, recorrer à Justiça não será uma escolha, mas uma necessidade.
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1 "Lucro dos planos de saúde quintuplica em 2024, para R$ 10,2 bilhões". Acessível em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/03/lucro-dos-planos-de-saude-quintuplica-em-2024-para-r-102-bilhoes.shtml
Evilasio Tenorio
Advogado especialista em Direito da Saúde e Direito Civil. Titular do TSA - Tenorio da Silva Advocacia, escritório considerado referência nacional na defesa dos usuários de planos de saúde e do SUS.