Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, ficou clara a opção do legislador brasileiro em tentar aproximar o nosso ordenamento jurídico ao sistema utilizado no common law, valorizando-se os precedentes e tentando se criar uma maior segurança jurídica através de suas diversas aplicações.
A ideia é boa e merece ser elogiada, mas para que funcione como deveria, é preciso entender a forma correta de aplicação de precedentes e jurisprudências, evitando-se incorrer em erros que prejudicam justamente a segurança jurídica almejada.
Um dos erros mais comuns praticados por julgadores, advogados, promotores e serventuários da justiça ocorre exatamente no momento de aplicação de enunciados de súmulas e julgamentos vinculantes.
Quando se pretende a aplicação de tais espécies de precedentes, mais importante do que se analisar o enunciado do julgamento, que nada mais é do que um resumo da tese vencedora, é analisar o caso em julgamento que levou a prevalência daquela tese, bem como os argumentos utilizados pelas partes e pelos julgadores.
Infelizmente, no Brasil, acostumou-se a buscar apenas o enunciado dos precedentes, de forma enxuta, para que sejam utilizados como argumentos de convencimento na defesa de direitos, o que inevitavelmente leva a aplicação equivocada de precedentes e viola direitos das partes.
Um exemplo de situações em que ocorre esse tipo de situação é quando se fala da responsabilidade de empresas privadas prestadoras de serviços públicos, especialmente na parte que se define sobre a aplicação da reponsabilidade objetiva ou subjetiva.
O art. 37, § 6º, da Constituição Federal, prevê as hipóteses em que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos respondem objetivamente por danos causados a terceiros. Veja-se:
Art. 37 (...) § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
O dispositivo constitucional é expresso ao prever que as empresas privadas prestadoras de serviços público somente respondem objetivamente quando seus agentes, na qualidade de prestador de serviços públicos, causar danos a terceiros.
Por conclusão inversa, se o dano causado a terceiros não tem relação com os serviços públicos prestados, a responsabilidade é subjetiva.
Em análise da aplicação da responsabilidade objetiva de prestadores de serviços públicos, é comum se ver a aplicação do precedente fixado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário 591874, tema de repercussão geral 130.
No referido julgado, foi fixada a seguinte tese:
“A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente a terceiros usuários e não-usuários do serviço, segundo decorre do art. 37, § 6º, da Constituição Federal”
O precedente em questão é importantíssimo, na medida em que define a responsabilidade objetiva de empresas privadas prestadoras de serviços públicos mesmo quando a vítima do dano não é usuária do serviço.
Ocorre que a aplicação do precedente de forma indiscriminada e sem a profunda análise dos fatos discutidos e do julgado levam a aplicação equivocada do precedente.
No caso julgado no RE 591874, discutia-se a responsabilidade de uma empresa prestadora de serviços de transporte público no caso de um acidente em que um ciclista teria sido atropelado por um ônibus.
Apesar de não haver indícios de culpa do motorista do ônibus, a empresa de transportes foi condenada a indenizar a família do ciclista, em razão da aplicação da responsabilidade objetiva mesmo se tratando de vítima não-usuária dos serviços que estavam sendo prestados.
É evidente, no caso julgado pelo precedente, que os serviços públicos prestados estavam diretamente relacionados aos danos causados, ou seja, o condutor do ônibus atuava na qualidade de agente prestador de serviços públicos.
Por esse motivo, a discussão do processo era apenas da possibilidade de aplicação da responsabilidade objetiva para terceiros não usuários dos serviços, em hipótese de danos relacionados ao serviço público.
O problema surge quando se vê reiteradas decisões judiciais que aplicam o precedente para justificar a responsabilidade de empresas prestadoras de serviços públicos sem relação direta com o dano causado.
Isso porque não se enquadra na hipótese de aplicação do precedente, por exemplo, hipóteses de acidentes de trânsito causadas por empresas prestadoras de serviços de limpeza urbana, telefonia, eletricidade, abastecimento de água, proteção ambiental etc. quando os danos do acidente não possuem relação com serviços públicos prestados, hipótese que se trataria de uma relação comum entre particulares.
O simples fato de uma pessoa jurídica prestar serviços públicos e causar danos não atrai, necessária e automaticamente, a sua responsabilidade objetiva, na medida em que o precedente não é aplicável e, portanto, se deve apreciar, caso a caso, se os danos foram causados por agentes na condição de prestador de serviços públicos.
O relator do RE 591874, Ministro Ricardo Lewandowski, inclusive asseverou que a responsabilidade objetiva nesses casos possui dois requisitos para avaliar se deve ser aplicada, quais sejam: que a demandada seja prestadora de serviços públicos e que o dano seja produzido pelo sujeito na qualidade de prestador de serviço público.
Apesar de, na visão deste autor, ser evidente que a Constituição Federal exige que o dano causado tenha relação direta com o serviço prestado, em razão da expressão “nessa qualidade”, esse não é o objeto do presente artigo e merece uma discussão apropriada.
O que se propõe é uma reflexão sobre os riscos de se criar uma cultura de seguir o caminho mais fácil para aplicação de precedentes judiciais, a partir deum exemplo em que esse perigo se concretiza com regular frequência no judiciário.
É comum se deparar com análises superficiais e condenações de pessoas jurídicas que possuem contratos de prestação de serviços públicos simplesmente pelo fato de possuírem um contrato administrativo, sem a devida análise se o agente causador do dano o fez nessa qualidade.
É preciso que os aplicadores do direito cuidem de se atentar aos fatos e aos fundamentos na utilização de precedentes judiciais, evitando que sua aplicação cause o efeito reverso do pretendido, gerando decisões equivocadas, insegurança jurídica e prejudicando debates que poderiam levar a evolução de entendimentos.