Introdução
O presente artigo objetiva fazer um exame das mudanças trazidas pelo projeto de lei 2.033/22 à lei 9.656/98 do ponto de vista das antinomias criadas com a lei 9.782/99 e com o Código Penal, além da inaplicabilidade imediata da norma em alguns pontos.
Ato contínuo, visa obter uma solução ao problema ocasionado pelo PL 2.033/22 a fim de buscar o equilíbrio econômico-financeiro da relação negocial a partir da análise do entendimento proferido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Tema 123, que trata do princípio constitucional da irretroatividade das leis.
1. A(s) antinomia(s) criada pelo projeto de lei 2.033/22
O projeto de lei 2.033/22, de autoria da Deputada Federal Cezinha de Madureira, foi encaminhado à publicação em 9/8/22, tendo sido designado o Senador Romário como Relator.
O teor do projeto é, basicamente, de tornar exemplificativo o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde elaborado pela agência reguladora competente, criada por lei federal para tanto, qual seja, a Agência Nacional de Saúde Suplementar, através do estabelecimento de critérios alternativos para que os planos de saúde garantam o atendimento de procedimentos que não estão efetivamente previstos na lista.
Houve aprovação do projeto na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, estando aguardando apenas a sanção do Presidente da República, como é estabelecido pelo rito constitucional.
A própria ANS, após aprovação na Câmara dos Deputados, encaminhou correspondência ao Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ressaltando a ruptura do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos e a possível evasão de beneficiários ao se depararem com o aumento excessivo nas mensalidades como consequência do rol exemplificativo.
Analisando o teor da proposta, basicamente seria acrescentado o seguinte parágrafo ao art. 10º da lei 9.656/98:
§ 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:
I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou
II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.
Dessa forma, como dito anteriormente, a alteração cria duas formas distintas de cobertura obrigatória de procedimentos que não estão previstos no Rol: a primeira é quando exista comprovação de eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico.
É discutível, nesse primeiro inciso, se a norma gera, de fato, efeitos, tendo em vista que possui conceitos extremamente indeterminados que necessitam de regulamentação através de norma própria, sendo possível fazer uma analogia às “normas de eficácia limitada”.
O que é eficácia científica? Através de que tipo de documento ela é comprovada? Qualquer tipo de estudo será aceito? São questões que não foram pensadas ante a aprovação efêmera de um projeto de lei às vésperas das eleições, motivo pelo qual deve haver a edição de uma norma regulamentando a matéria, sob pena de inaplicabilidade da nova regra trazida pelo PL 2.033/22.
A segunda hipótese alternativa de cobertura obrigatória é quando existam recomendações pela CONITEC ou de, no mínimo, um órgão de avaliação de tecnologia em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas as tecnologias também para seus nacionais.
É perfeitamente evidente a antinomia que irá ser criada caso o projeto de lei 2.033/22 seja sancionado pelo Presidente da República, afinal, existe um órgão no Brasil que é responsável justamente por realizar estudos, pesquisas e avaliação de tecnologias em saúde, dentre outras atribuições, analisando, inclusive, as “evidências científicas” para conceder registro de produtos no país, que é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
O inciso II é uma clara usurpação da competência da ANVISA, criada também através de lei federal, e a resolução dada pela legislação para a resolução da antinomia, conforme art. 2º, §1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, é a revogação da lei anterior (lei 9.782/99) na parte que é incompatível com a nova lei.
Isto porque a pretensão da inovação legislativa é que os planos de saúde devem cobrir tratamentos, medicamentos, exames e quaisquer outros tipos de eventos em saúde sem qualquer registro prévio realizado pela entidade nacional competente para tanto.
A antinomia também ocorre com dispositivo do Código Penal, vez que a importação de medicamentos sem prévio registro constitui infração de natureza sanitária, conforme art. 273, §1º-B, que possui o seguinte teor:
Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.
§ 1º-B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições:
I - sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;
II - em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior;
III - sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização;
IV - com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade;
V - de procedência ignorada;
VI - adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.
Dessa forma, supondo que chegue uma solicitação ao plano de saúde de um medicamento que é recomendado pelo Food and Drug Administration (FDA) nos Estados Unidos e a operadora tenha que adquiri-lo, mesmo sem registro e em estabelecimento sem licença da ANVISA, não estará sujeita às penalidades do art. 273 do Código Penal?
É possível constatar, pelo menos, duas antinomias que serão criadas na eventual sanção presidencial do PL 2.033/22, além da impossibilidade de aplicação das novas regras de cobertura para os contratos já firmados, em razão do princípio da irretroatividade, conforme será abordado a seguir.
2. O Tema 123 do STF: irretroatividade das leis
O Tema 123 julgado pelo STF foi, praticamente, um “pleonasmo jurídico”, tendo em vista que entendeu pela impossibilidade da aplicação da lei 9.656/98 aos contratos firmados anteriormente à sua vigência, ou seja, decidiu o que tinha que ser decidido, invocando o art. 5º, inciso XXXVI da Constituição Federal.
O caso concreto julgado pela Corte tratava-se de negativa de cobertura de procedimento de “manometria esofágica” por ausência de previsão contratual. A sentença julgou procedente a ação, declarando nulas as cláusulas restritivas e limitativas de cobertura, tendo a parte ré interposto apelação sustentando a impossibilidade de aplicação da lei 9.656/98 aos contratos firmados anteriores à sua vigência.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul simplesmente considerou que, após a entrada em vigor da lei 9.656/98, os contratos estariam automaticamente adaptados à nova legislação.
A ratio decidendi do acórdão proferido pelo STF foi a “blindagem constitucional ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada”, considerando-os, acertadamente, os pilares de sustentação e a base do Estado Democrático de Direito.
O ato jurídico perfeito é conceituado pelo art. 6º, §1º da LINDB como sendo aquele “já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou”.
Passando à análise do surgimento do sistema de saúde privado, ressaltou o acórdão ser natural, em qualquer contrato de adesão com o viés da aleatoriedade tão presente, como é o contrato de plano de saúde, que:
[...] a contraprestação paga pelo segurado seja atrelada aos riscos assumidos pela operadora sendo um dos critérios para o seu dimensionamento, sem dúvida, o exame de quais eram as normas vigentes à época de sua celebração. Sob a perspectiva das partes, isso significa saber, previamente, quais são as regras legais que as vinculam e que serão norteadoras das cláusulas contratuais (pacta sunt servanda).
Ou seja, a lógica atuarial seguida pela espécie contratual utilizada pelos planos de saúde é que: “quanto mais riscos forem cobertos, mais elevado será o prêmio pago pela parte aderente”.
Por conseguinte, foi dado provimento ao recurso extraordinário para julgar improcedente o pedido inaugural, decidindo, finalmente, que as disposições da lei 9.656/98 somente incidem sobre os contratos celebrados a partir de sua vigência.
Além disso, restou decidido que não caberia à operadora automaticamente adaptar o plano do consumidor às disposições da lei 9.656/98, tendo em vista que teria que haver concordância expressa do contratante, além da aplicação do chamado “percentual de adaptação”, que terá o limite máximo de 20,59%, conforme estabelecido pela ANS na Resolução Normativa 254/11.
Dito isto, tem-se que o STF, considerando que a lógica atuarial dos contratos utilizados pelas operadoras de saúde é que quanto mais procedimentos forem cobertos, mais alto será o valor da contraprestação e que a lei 9.656/98 ampliou a cobertura obrigatória dos planos de saúde, decidiu que os dispositivos da referida lei seriam aplicáveis tão somente aos contratos firmados após sua vigência, o que deve ocorrer também com as mudanças do PL 2.033/22, como será tratado no tópico seguinte.
3. O projeto de lei 2.033/22 à luz do Tema 123 do STF
Não se pode fugir do fato de que as alterações trazidas pelo PL 2.033/22 fazem com que a cobertura contratual seja completamente modificada, de forma que podemos afirmar existir uma Lei dos Planos de Saúde antes da alteração legislativa e depois dela.
Nesse momento, é preciso compreender os motivos da existência do princípio da irretroatividade e a razão pela qual o desrespeito a esse princípio causa uma enorme insegurança jurídica.
Como visto anteriormente, com o advento da lei 9.656/98, os dispositivos legais não foram automaticamente aplicados aos contratos já firmados em virtude do princípio da irretroatividade das leis, mas por que esse princípio é tão importante?
Justamente porque a nova lei trazia uma gama de eventos que antes não havia cobertura, assim, a mudança abrupta no leque de procedimentos cobertos poderia levar os planos de saúde à bancarrota, então, mesmo sendo uma relação continuada, isto é, de trato sucessivo, as novas regras de cobertura não deveriam abranger os contratos firmados antes da entrada em vigor da legislação.
É uma questão lógica: se existe um pacto que prevê a cobertura de determinados procedimentos e após uma alteração (seja legislativa ou até mesmo através de um termo aditivo) passa a cobrir três vezes mais procedimentos, deve haver a contraprestação pecuniária por parte do contratante, sob pena de desequilibrar financeiramente a relação negocial.
Justamente por isso a lei 9.656/98 previu, em seu art. 35, a possibilidade de adaptação dos contratos, inclusive com aumento da contraprestação pecuniária.
É necessário compreender que a comercialização dos planos de saúde e a formação dos preços não é feita de forma aleatória, pelo contrário. A ANS exige a Nota Técnica de Registro de Produtos – NTRP, que é o documento que justifica a formação dos preços iniciais dos planos de saúde através de cálculos atuariais, de forma que as operadoras não podem comercializar planos com valores muito elevados ou até mesmo com valores irrisórios.
Ao realizar o cálculo atuarial para a formação do preço inicial, as operadoras acreditavam estarem limitadas a cobrir os procedimentos e eventos que estavam efetivamente no Rol da ANS e mesmo que houvesse atualizações, estavam cientes que tais acréscimos estariam limitados pela existência de um rito próprio de inclusão de eventos, da mesma forma que antes da edição da lei 9.656/98 as operadoras formavam o preço a partir dos procedimentos que estavam previstos no contrato como sendo de cobertura obrigatória.
O equilíbrio da contraprestação pecuniária em relação à alteração legislativa é algo que deve ser tido como necessário e imprescindível, da mesma forma que ocorreu com a edição da lei 9.656/98 e o percentual de adaptação nela previsto, caso contrário, uma saída para as operadoras que seria muito mais impactante é a de suspender a comercialização de absolutamente todos os planos que foram registrados antes da PL 2.033/22 e registrar os novos planos com a formação de preços levando em consideração da alteração legislativa.
E que não venha levantar a ideia de que “99% dos processos judiciais ajuizados pelos consumidores são julgados procedentes”, como foi levantado no plenário do Senado Federal, motivo pelo qual os planos não terão despesas a mais, tendo em vista que tais gastos, por si só, já afetam o fundo mutualista criado pelos próprios consumidores. Não é à toa que os reajustes anuais dos contratos coletivos chegam em percentuais estratosféricos. Basta uma única ação promovida por um usuário para afetar a sinistralidade do contrato e possibilitar a aplicação de percentuais que aparentam ser abusivos, mas que se limitam a equilibrar a relação.
Conclusão
Ante o exposto é discutível, portanto, se as mudanças trazidas pelo PL 2.033/22 devem ser aplicadas aos contratos que já foram firmados em virtude do ato jurídico perfeito, isto é, a operadora de saúde registrou o preço do produto com base na lei 9.656/98 antes da alteração da lei, com base na cobertura limitada ao Rol da ANS, de forma que os contratos já firmados, mesmo sendo de trato sucessivo, não devem ser abrangidos pela ampliação.
Dessa forma, o que deve se levar em consideração é a possibilidade de os beneficiários optarem por permanecer com a cobertura limitada ao Rol da ANS com a mesma contraprestação ou, da mesma forma que ocorreu com o advento da lei 9.656/98, optarem pela incidência de um percentual de adaptação em suas mensalidades para ajustarem a cobertura contratual à nova mudança legislativa que ampliou os procedimentos que devem ser garantidos pelas operadoras.
Frise-se que o presente artigo não pretende discutir se o rol deveria ser taxativo ou exemplificativo, mas sim como os planos podem operacionalizar a alteração legislativa que fixou que o Rol da ANS é exemplificativo, tendo em vista que uma coisa é certa: se o PL 2.033/22 trouxe o rol exemplificativo, é porque antes ele seria taxativo.
Assim, se os contratos que antes eram submetidos à uma lista de cobertura mínima passa a ser submetidos a uma lista infinita, indeterminada e imprevisível, por certo que a alteração não deve atingir os contratos já firmados em virtude do princípio da irretroatividade das leis.
Uma solução, portanto, seria a incidência de um percentual de adaptação aos usuários que desejam se beneficiar do rol exemplificativo a fim de equilibrar a balança que de um lado está a prestação do serviço e do outro a contraprestação pecuniária, o que dependeria de nova regulamentação pela ANS a fim de que seja definido um percentual máximo de adaptação.