Migalhas de Peso

A polêmica utilização de dados de geolocalização como meio de prova da jornada de trabalho

A discussão sobre o tema está apenas começando e ainda não há um entendimento firmado nem nos tribunais regionais, nem no TST.

16/9/2022

Ao ser acionado judicialmente, em princípio, cabe ao empregador o ônus de comprovar a quantidade de horas trabalhadas pelos seus empregados. Isso porque, em virtude do seu poder fiscalizatório, o empregador tem o dever de efetuar o controle de jornada na hipótese de possuir mais de 20 colaboradores no seu quadro.

Por vezes o empregador se depara com a dificuldade de contrapor as objeções no sentido de que o controle não reflete a real carga horária trabalhada, assim como demonstrar cabalmente a inexistência de labor em horário superior ao contratado. Tal desafio é ainda maior para aqueles empregados que exercem atividades externas sem controle de jornada ou para aqueles que possuem controle de jornada, mas alegam ausência de pagamento ou compensação de horas extras.

Em vista dessa dificuldade, empresas têm lançado mão de um requerimento que vem suscitando polêmica no Poder Judiciário, qual seja, a expedição de ofício a operadoras de telefonia e de sistemas operacionais de dispositivos móveis para que estas forneçam a geolocalização do titular do aparelho em um determinado período.

Tais dados têm como objetivo averiguar se o empregado efetivamente se encontrava no local da prestação de serviços no momento em que afirma que houve trabalho sem o respectivo registro em cartões de ponto. 

Um lado da discussão entende que o fornecimento de registros de geolocalização do empregado viola o direito constitucional à proteção dos seus dados pessoais, que passou a fazer parte dos direitos e garantias fundamentais do cidadão com a emenda constitucional 115/22.

Argumenta-se que nos relatórios de dados a serem fornecidos pelas empresas detentoras da tecnologia constam registros de todos os locais em que o titular esteve, além do local de trabalho, comprometendo o direito à privacidade do usuário, ainda que seja referente a um período específico.

Suscita-se, ademais, que a revelação desse tipo de informação afronta a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), já que basicamente os dados obtidos do titular seriam usados para produzir prova contra si mesmo, algo que não seria permitido na referida lei, segundo sustenta essa corrente de entendimento.

Do outro lado da discussão, há aqueles que consideram que a LGPD permite o acesso a tais dados, na forma do art. 7º, inciso VI, que prevê que uma das hipóteses para tratamento de dados pessoais é aquela destinada ao exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral.

Da mesma forma, sustentam que o Marco Civil da Internet (MCI), que estabelece princípios, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, possibilita à parte interessada, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial, requerer ao juiz que ordene a exibição de tais dados ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet, desde que devidamente justificado e com a indicação dos períodos específicos ao qual se referem os registros.

Essa corrente de entendimento considera que o magistrado, valendo-se da prerrogativa de conduzir o processo livremente, ante a inexistência de hierarquia entre as provas na legislação processual, pode acatar o pedido da parte para requisitar informações, em atenção ao princípio da verdade real, tão invocado na Justiça do Trabalho.

Nesse caso, para evitar a violação do direito à privacidade previsto constitucionalmente, caberá ao juiz adotar as providências necessárias para garantir o sigilo das informações recebidas e a preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem do usuário, podendo para tanto determinar que o processo tramite em segredo de justiça, ou que tais documentos sejam gravados com sigilo, restringindo o acesso público e reservando a análise apenas às partes envolvidas.

Agrega-se ao raciocínio o argumento de que a alegação de afronta constitucional ao direito à privacidade é questionável, na medida em que o sigilo visa proteger informações consideradas íntimas, e não seria está a hipótese das informações sobre o local, data e horário em que o empregado esteve durante um período específico, pois tais dados já teriam sido apontados no processo judicial pelo próprio titular dos dados.

Outro ponto a considerar no sentido de que não haveria violação ao direito de privacidade do titular dos dados é o de que, ao fornecer as informações requisitadas sobre a geolocalização de um empregado, a empresa operadora de telefonia ou de sistemas operacionais indica apenas um raio de localização do indivíduo, sem registrar um endereço preciso que possibilite expor a sua intimidade.

Nos Tribunais, é possível encontrar posicionamentos diversos e que se contrapõem, acirrando a polêmica.1

Entendemos que os dados de geolocalização podem ser utilizados em Juízo para efeito de comprovação de horário de trabalho, mas são recomendáveis algumas cautelas. O empregador que pretender adotar o uso de dispositivos ou aplicativos destinados a tal finalidade nos equipamentos corporativos precisa observar o dever de transparência previsto na LGPD, deixando claro por meio de políticas e treinamentos o objetivo, a forma de coleta e o tratamento dessas informações.

Importa lembrar, entretanto, que sempre existe a possibilidade de que a geolocalização de um dispositivo móvel seja burlada por meio de engenhos digitais, como por exemplos aplicativos sobrepostos, utilização de VPN, ou simplesmente pelo fato de manter o dispositivo móvel desligado, questionando-se a garantia de que tais dados sejam precisamente catalogados.

A discussão sobre o tema está apenas começando e ainda não há um entendimento firmado nem nos tribunais regionais, nem no TST. Certamente, uma conclusão sedimentada por parte dos tribunais não deve acompanhar a velocidade da tecnologia e das novas questões que surgem a cada dia nesse campo.

----------

Acórdãos proferidos nos mandados de segurança 0011155-59.2021.5.03.00000000955-41.2021.5.12.0000, disponível em https://pje-consulta.trt3.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/0011155-59.2021.5.03.0000/2#df27237 e em https://pje.trt12.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/0000955-41.2021.5.12.0000/2#3ebbdb1, respectivamente, com acesso em 9/9/22.

Ana Carolina Lago Bahiense
Advogada Trabalhista do escritório Trigueiro Fontes Advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Leia mais

Migalhas Quentes

TRT-12 autoriza uso de geolocalização do celular como meio de prova

27/3/2022

Artigos Mais Lidos

Afinal, quando serão pagos os precatórios Federais em 2025?

19/12/2024

Discriminação nos planos de saúde: A recusa abusiva de adesão de pessoas com TEA

19/12/2024

Planejamento sucessório e holding patrimonial: Cláusulas restritivas societárias

20/12/2024

Decisão importante do TST sobre a responsabilidade de sócios em S.A. de capital fechado

20/12/2024

As perspectivas para o agronegócio brasileiro em 2025

20/12/2024