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Antes mesmo da sanção presidencial, Tribunais já fazem referência ao PL aprovado no Senado que acaba com rol taxativo da ANS

A expectativa é que em havendo a sanção do PL 2.033/22 (ou alternativamente a derrubada de eventual veto pelo Congresso), haja a estabilização da jurisprudência à antiga orientação pelo caráter exemplificativo do Rol da ANS.

5/9/2022

Em movimento legislativo histórico, o Congresso Brasileiro aprovou o PL 2.033/221, popularmente conhecido como o projeto que acabou com o rol taxativo de procedimentos e eventos em saúde da ANS. O referido PL segue para sanção presidencial.

Na prática, o PL 2.033/22, apresentado em julho, foi uma reação imediata do Congresso após o julgamento dos EREsp 1886929 e 1889702, proferido em junho pela 2ª Seção do STJ, que contrariando o entendimento da maior parte dos Tribunais Estaduais2, concluiu, por maioria, que o Rol da ANS seria em regra taxativo – admitidas exceções, prestigiando o entendimento de que procedimentos, medicamentos ou exames não constantes do referido Rol não seriam de cobertura obrigatória pelas operadoras de saúde.

A perplexidade dos deputados e senadores favoráveis ao projeto se deu por vários motivos, especialmente em razão da redação do art. 3 da lei 9.961/00, que criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar, ser clara no sentido de que “A ANS terá por finalidade institucional promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde (...)” e ainda pela disposição constante do art. 4, III, que garante ser atribuição da ANS “elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na lei no 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades”.

A discussão é antiga. A ANS, mesmo antes do julgamento do STJ, já havia tomado sua contestável4 decisão.

Isso porque em dezembro de 2021, a Agência editou a Resolução Normativa 465/215, que em seu art. 2 concluiu, à despeito do art. 4, III da lei 9.961/00 (lei de criação da ANS), que “para fins de cobertura, considera-se taxativo o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde disposto nesta Resolução Normativa e seus anexos”. À época, havia divergência frontal de entendimento entre a 3ª e a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça sobre a temática6.

Ao assim proceder, e como manifestou o professor Georghio Tomelin7 em Seminário de Judicialização de Saúde Suplementar do CNJ, o debate tem o condão de “transformar o que era piso em teto”. Assim, o que era garantia mínima de cobertura ou referência básica, passou a ser limite de cobertura – acrescentamos.

Restava o caminho legislativo. Mesmo ante as críticas das operadoras em relação a velocidade de tramitação do projeto, a perplexidade da sociedade reverberou mais alta voz, especialmente através de campanhas como a “@roltaxativomata”, termo que ganhou as redes sociais desde junho, e que teve a participação de artistas e influenciadores digitais8.

O Projeto aprovado no Congresso revalida a antiga redação do art. 3 da lei 9.961/00, no sentido de que o Rol é apenas uma referência básica de cobertura (piso), e anuncia requisitos de cobertura alternativos9 para casos em que o procedimento não conste do Rol: a) existência de comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou b) existência de recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) ou recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.

Fato é que mesmo não tendo havido sanção presidencial, começam a aparecer as primeiras decisões judiciais que já fazem referência ao Projeto de Lei aprovado como fundamento lateral e complementar para afastar limitações de cobertura relacionadas ao Rol da ANS.

É o caso de decisão monocrática10 proferida nos autos do Agravo de Instrumento 1.0000.22.205393-6/001 – manejado pelo Escritório Massote Brasileiro Advogados em nome de paciente idosa que teve indeferido tratamento home care ao argumento de que este não constaria do Rol da ANS.

Na mencionada decisão, a desembargadora relatora Jaqueline Calábria de Albuquerque, da 10ª Câmara do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, decidiu em 31/8/22 (dois dias após a aprovação do Projeto 2.033/22 no Senado), por reverter a decisão denegatória da tutela antecipada: 

Não se pode esquecer que o ordenamento jurídico brasileiro está na iminência de se conformar aos interesses da consumidora recorrente, pois o Senado Federal aprovou no dia 29/8/22 o projeto de lei (PL 2.033/22), proveniente da Câmara dos Deputados e que agora segue para sanção presidencial, que, em suma, obriga a cobertura, pelos planos de saúde, de tratamentos fora do rol da ANS, conforme notícia vinculada no sítio eletrônico do próprio Senado.

Por óbvio este não foi o único fundamento da decisão, até porque estar-se-ia a cogitar uma possível hipótese de “sanção jurisprudencial de Projeto de Lei”, tendo a magistrada atacado, adicionalmente, e com veemência, o fato de que a decisão do STJ que reveste o entendimento pelo Rol taxativo “não possui efeito vinculante, já que não foi proferido em sede de procedimento de recurso especial repetitivo, e ainda não transitou em julgado, conforme se vislumbra no andamento processual no sítio eletrônico do STJ.”

A decisão ainda ressaltou que até mesmo a 4ª Turma do STJ, responsável pelo overruling que levou o entendimento pelo Rol taxativo, também entende ser ilegal a cláusula contratual que limita o acesso ao home care:

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C PEDIDO CONDENATÓRIO - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA RECURSAL DA DEMANDADA. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, é abusiva a cláusula contratual que veda a internação domiciliar (home care) como alternativa à internação hospitalar. Incidência da Súmula 83/STJ. 2. Rever a conclusão a que chegou o Tribunal de origem, acerca da configuração de dano moral indenizável, bem como os parâmetros utilizados para arbitrar o quantum indenizatório - que não se mostra irrisório ou excessivo - encontra óbice na Súmulas 7/STJ. 3. Agravo interno desprovido. (AgInt no REsp  1.994.152/SP, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 22/8/22, DJe de 26/8/22.) (g.n.)

Oportuno consignar que há diversas decisões dos tribunais estaduais indicando que os Embargos de Divergência julgados no âmbito da Segunda Seção do STJ não têm efeito vinculante perante juízes e Tribunais (eficácia vertical), mas apenas eficácia vinculante horizontal perante as Turmas daquela Corte da Federação, por argumento a contrario na interpretação do art. 927 do CPC.

Isso porque “no tipo recursal dos embargos de divergência não há amplo contraditório, eis que inexiste previsão de intervenção de amici curiae, tampouco realização de audiência pública, impedindo ampla participação dos setores da sociedade interessados no desate do conflito, enfraquecendo o contraditório-influência e a deliberação qualificada, de modo que o precedente é meramente persuasivo” (TJPR, AC n. 0032522-95.2019.8.16.0001, rel. Des. Clayton Maranhão, j. 23.2.22).

A expectativa é que em havendo a sanção do PL 2.033/22 (ou alternativamente a derrubada de eventual veto pelo Congresso), haja a estabilização da jurisprudência à antiga orientação pelo caráter exemplificativo do Rol da ANS, sempre destacando a importância, agora ainda mais premente, de que os relatórios médicos que indicam a necessidade de procedimentos, medicamentos e exames não constantes do Rol sejam instruídos de elementos sólidos a demonstrar um dos seguintes requisitos:

  1. exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou
  2. existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.

Até lá, é de se comemorar – na perspectiva do consumidor, que a movimentação do Congresso Nacional já esteja a atrair os olhares jurisprudenciais mais atentos aos graves efeitos que a taxatividade do Rol da ANS pode trazer para o jurisdicionado, preservando ainda a reserva de competência do legislativo em decidir sobre o alcance da assistência suplementar em saúde, o que se espera, seja em breve sancionado pelo Poder Executivo.

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1 https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-2033-2022

2 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/08062022-Rol-da-ANS-e-taxativo--com-possibilidades-de-cobertura-de-procedimentos-nao-previstos-na-lista.aspx

3 Alguns Tribunais já sumularam o entendimento, a exemplo da Súmula 102 do Tribunal de Justiça de São Paulo: “Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no Rol de procedimentos da ANS”. Disponível em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.tjsp.jus.br/Download/Portal/Biblioteca/Biblioteca/Legislacao/SumulasTJSP.pdf

4 Há fundada discussão jurídica se a Resolução poderia alterar disposição expressa da Lei de Criação da ANS. 

5 https://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id=NDAzMw==

6 https://www.migalhas.com.br/depeso/332621/discussao-sobre-rol-da-ans-consolida-divergencia-definitiva-entre-turmas-do-stj

7 Disponível em https://youtu.be/L6Uar2UKFVE

8 https://politica.estadao.com.br/blogs/politica-e-saude/rol-taxativo-mata-movimento-vitorioso-de-pacientes-caiu-no-colo-de-bolsonaro/

9 De se notar que o PL aprovado faz a expressa menção ao caráter alternativo “ou”, e não aditivo “e”, a revelar que o preenchimento de um dos requisitos satisfaz a exigência a atrair a cobertura assistencial. 

10 https://www4.tjmg.jus.br/juridico/sf/proc_movimentacoes2.jsp?listaProcessos=10000222053936001

Gabriel Massote Pereira
Advogado. Mestrando em Direito Médico pela Unisa. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra. Docente em Pós-Graduação de Direito Médico e Saúde no IGD, PUC-PR, EBRADI e Damásio. Autor de obras jurídicas. Diretor-Adjunto do Grupo de Estudos Miguel Kfouri Neto.

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