Quarto poder
Luiz Fernando Pacheco*
A tortura — jamais explicitamente admitida porque intuitivamente deplorável e vergonhosa até para o mais abjeto e convicto carrasco — foi praticada em larga escala e com grande eficiência, contribuindo em muito no desbaratamento dos grupos que ainda ousavam desafiar a ordem imposta.
Era um mal necessário. Era imprescindível conter a criminosa choldra vermelha a serviço de Moscou. A defesa do Estado, da sociedade, dos valores do povo brasileiro não cederiam lugar à duvidosa humanidade de tão perigosos delinquentes. O delegado Fleury proclamava com todas as letras: contra a pátria não há direitos! Nada de benevolência com malandro. O verdugo pensa que está defronte a um criminoso, só não sabe que crime ele cometeu. Pau nele que ele fala. Os fins justificam os meios.
A duras penas, passou. Ao menos como política de Estado, acabou. Enfim vivemos em um tão sonhado Estado democrático de direito, sob o sagrado manto da Constituição Federal, promulgada em 05 de outubro de 1988.
O artigo 5º da Carta Magna, inaugurando o capítulo intitulado "dos direitos e deveres individuais e coletivos" garante, em seu inciso XII, que "é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal".
A Lei 9.296/96 estabeleceu as hipóteses. Por ser pouco detalhada e excessivamente permissiva, está em vias de revisão, tendo o Ministério da Justiça formado comissão de notáveis juristas que já apresentou ao executivo anteprojeto, que logo será enviado ao Congresso, visando melhor disciplinar a matéria. De toda forma, sob a égide da lei vigente, não se admite o grampo telefônico quando não houver indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal. Do mesmo modo, não se admite o grampo se a prova puder ser feita por outros meios disponíveis, como também é inadmissível seu uso para investigação de fatos punidos, no máximo, com pena de detenção (menos gravosa que a pena de reclusão). Por fim, estabelece a lei que o grampo terá o prazo máximo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade deste meio de prova.
A lei atual, com todas as imperfeições que se espera sejam corrigidas, de toda sorte sinalizava, em complemento ao comando constitucional, que o tempo do arbítrio tinha acabado. Seria o fim dos arapongas. O Estado não teria o direito de, a qualquer pretexto, esquadrinhar e invadir a privacidade do indivíduo, revirando sua vida, ouvindo suas conversas. Somente em último caso, por tempo limitado, por determinação judicial fundamentada, quando já houvesse indícios razoáveis da participação do investigado em crime grave.
Infelizmente, não tem sido assim. O escandaloso episódio baiano, em que centenas de pessoas indiscriminadamente tiveram sua privacidade devassada, começou a mostrar à sociedade brasileira os graves riscos a que, a pretexto da manutenção da lei e da ordem, estamos todos nós sujeitos.
Mais recentemente, o país, sem se aperceber, comemorou os resultados da operação Anaconda. Juízes, delegados, investigadores, advogados, todos processados, alguns preventivamente presos. Excelente, já que a mídia julgou, condenou e aplicou pena: pretensamente seriam criminosos. E de alto coturno. Acabaram-se os privilégios. Só que, segundo consta, toda a escuta foi feita à margem da referida lei. Um juiz alagoano determinando grampo em São Paulo, em despacho desfundamentado, por período de mais de um ano e, pior que tudo, sem que houvesse o exigido indício razoável de participação dos grampeados em qualquer crime.
Ou seja, em mais um surto persecutório, o Brasil está voltando ao império do arbítrio, revivendo o AI-5, desta feita sob nova forma de tortura. A metodologia investigativa é a mesma. Nada de benevolência com malandro. O carrasco da vez pensa que está defronte a um criminoso, só não sabe que crime ele cometeu. Grampo nele que ele fala. Tudo bem, afinal quem não deve não teme. Quem vive a rotina forense sabe que não existe nada mais irreal do que este ridículo ditado. E, amanhã, pode ser você.
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* Advogado criminalista, sócio de Ráo, Cavalcanti e Pacheco Advogados S/C, conselheiro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
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