Migalhas de Peso

Extradição e a transferência de execução da pena

Breve debate sobre as condições jurisdicionais de execução da pena proferida por Estado estrangeiro.

24/1/2022

(Imagem: Arte Migalhas)

Em sentença definitiva, o jogador brasileiro Robinho foi condenado a nove anos de prisão, pelo Estado Italiano, por violência sexual de grupo cometida em face de mulher albanesa no ano de 2013. Em sendo decisão definitiva, não há mais recursos sob jurisdição italiana que impliquem na modificação do decisum colegiado, sendo a execução da pena por lá imediata.

Diante do fato de grande repercussão na imprensa brasileira, necessária breve reflexão sobre os institutos da extradição de brasileiro nato e transferência da execução da pena à jurisdição brasileira.

Considerando a hipótese de acerto da imutabilidade da decisão colegiada, dois caminhos se apresentam ao condenado: a apresentação voluntária à Justiça Italiana para cumprimento imediato da pena; ou a permanência em solo brasileiro que, à Justiça Italiana, terá o condão de desencadear resistência voluntária.

Sendo brasileiro nato, não há possibilidade de extradição (tomando o conceito basilar de que somente se extradita pela coerção), na forma do art. 5º, LI, da Constituição Federal: “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”.

Pela incidência da norma constitucional, dois caminhos surgem:

a) Transferência do título condenatório estrangeiro às terras nacionais, dando-se o reconhecimento em jurisdição brasileira para ulterior cumprimento.

b) Traslado do processo penal pela regra de matéria que possui base na Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (art. 4º, §2º, e art. 6º, §9º); Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (art. 15, §3º, e art. 16, §10); e Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Organizado Transnacional (art. 21), inseridas no ordenamento pátrio pelos Decretos 154/1991, 5.687/2006, e 5.015/2004, respectivamente.

Muito embora não aplicável ao “caso Robinho”, o Acordo de Extradição entre os Estados Partes do Mercosul possui similar solução jurídica de extradição no art. 11, §4º (Decreto 4.975/2004), com apoio do art. 7º do Código Penal.

Dispõe ainda o Decreto-Lei 394/1938, art. 1º, §2º:

Art. 1º Em nenhum caso será concedida a extradição de brasileiros requisitada por Estado estrangeiro. O Governo Federal continuará, porém, a requisitar aos Estados estrangeiros a extradição de brasileiros, na forma de direito.

§ 2º Negada a extradição de brasileiro, este será julgado no país, se o fato contra ele arguido constituir infração segundo a lei brasileira. Se a pena estipulada na lei brasileira for mais grave do que a do Estado requerente, será a mesma reduzida nesta medida.

A meu ver, a transferência do título condenatório seria a formalidade aplicável ao caso que, mormente a validade jurídica, depende de “eficácia no ordenamento brasileiro” seguindo a homologação pelo Superior Tribunal de Justiça (art. 101 da lei 13.445/17 e art. 216-B do Regimento Interno do STJ) que, evidentemente, somente ocorre após o trânsito em julgado na Itália.

Dispõe o art. 101, §§1º e 2º, da lei 13.445/17:

Art. 101. O pedido de transferência de execução da pena de Estado estrangeiro será requerido por via diplomática ou por via de autoridades centrais.

§ 1º O pedido será recebido pelo órgão competente do Poder Executivo e, após exame da presença dos pressupostos formais de admissibilidade exigidos nesta Lei ou em tratado, encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça para decisão quanto à homologação.

§ 2º Não preenchidos os pressupostos referidos no § 1º, o pedido será arquivado mediante decisão fundamentada, sem prejuízo da possibilidade de renovação do pedido, devidamente instruído, uma vez superado o óbice apontado.

Ocorre que o sistema homologatório brasileiro decorre da delibação moderada, operada pela carta rogatória, de modo que cabe ao Superior Tribunal de Justiça tão somente a análise dos requisitos formais do processo e da constituição do título condenatório.

O Superior Tribunal de Justiça não faz análise de mérito.

Realizada a tramitação de eficácia do título condenatório em terras pátrias, haveria, por fim, a remessa dos autos processuais ao juízo federal de competência (na regra domiciliar), conforme art. 109, inciso X, da Constituição Federa, e art. 102 da lei 13.445/17.

A meu ver, é certo dizer que a transferência de execução penal, conforme art. 100 da lei 13.445/17, teria viabilidade jurídica apenas por decorrência da execução da pena imposta no estrangeiro (é o caso), nunca de pedido da chamada “extradição de instrução processual” (nada além que a ação penal ainda não transitada em julgado).

Assim sendo, não existe discussão jurídica viável, seguindo o ordenamento vigente, para que se proponha a extradição do jogador. Em sendo brasileiro nato, a única via aplicável seria de transferência da execução da pena, notadamente enquanto técnica de aplicação do título condenatório estrangeiro pela via da cooperação internacional.

A previsão é expressa no ordenamento brasileiro, conforme art. 16, §12, da Convenção de Palermo (Decreto 5.015/04):

12. Se a extradição, pedida para efeitos de execução de uma pena, for recusada porque a pessoa que é objeto deste pedido é um cidadão do Estado Parte requerido, este, se o seu direito interno o permitir, em conformidade com as prescrições deste direito e a pedido do Estado Parte requerente, considerará a possibilidade de dar execução à pena que foi aplicada em conformidade com o direito do Estado Parte requerente ou ao que dessa pena faltar cumprir.

Dispõe ainda a Convenção de Mérida (Decreto 5.687/06):

12. Quando a legislação interna de um Estado Parte só permite extraditar ou entregar de algum outro modo um de seus cidadãos a condição de que essa pessoa seja devolvida a esse Estado Parte para cumprir a pena imposta como resultado do juízo do processo por aquele que solicitou a extradição ou a entrega e esse Estado Parte e o Estado Parte que solicita a extradição aceitem essa opção, assim como toda outra condição que julguem apropriada, tal extradição ou entrega condicional será suficiente para que seja cumprida a obrigação enunciada no parágrafo 11 do presente Artigo.

Portanto, tenho que inequívoco que a transferência da execução da pena implicaria na viabilização da punição dos brasileiros natos..

Irrelevante eventual pedido de solicitação de extradição pelo Estado Italiano que, muito embora passível de recebimento, teria certo indeferimento pela regra da cidadania nata brasileira. Disso, segue que a transferência da execução penal seria o “caminho natural” de viabilização da aplicação da pena estrangeira.

A dupla cidadania:

Na hipótese de aquisição de cidadania pela naturalização, há incidência da declaração da perda da nacionalidade brasileira na forma do art. 12, §4º, da Constituição Federal, e arts. 249 e 250 do Decreto 9.199/17.

Portanto, o brasileiro que voluntariamente adota outra nacionalidade pode sofrer processo de perda da nacionalidade brasileira com processamento na Justiça Federal (art. 109, inciso X, da Constituição Federal).

Não raro os jogadores adquirem nova cidadania para solucionar pendências tributárias no país de domicílio profissional; ou como simples condição de permanência.

Por hipótese, e em caso de dupla cidadania do jogador, há precedentes jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal pela extradição daquele que adquire nacionalidade secundária.

Transcrevo a ementa do Extradição 1.462 do Distrito Federal, sob a relatoria do Ministro Roberto Barroso:

EXTRADIÇÃO INSTRUTÓRIA. REGULARIDADE FORMAL. CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. REQUISITOS LEGAIS ATENDIDOS. DEFERIMENTO CONDICIONADO. 1. Conforme decidido no MS 33.864, a Extraditanda não ostenta nacionalidade brasileira por ter adquirido nacionalidade secundária norte-americana, em situação que não se subsume às exceções previstas no § 4º, do art. 12, para a regra de perda da nacionalidade brasileira como decorrência da aquisição de nacionalidade estrangeira por naturalização. 2. Encontram-se atendidos os requisitos formais e legais previstos na lei 6.815/1980 e no Tratado de Extradição Brasil-Estados Unidos, presentes os pressupostos materiais: a dupla tipicidade e punibilidade de crime comum praticado por estrangeiro. 3. Extradição deferida, devendo o Estado requerente assumir os compromissos de: (i) não executar pena vedada pelo ordenamento brasileiro, pena de morte ou de prisão perpétua (art. 5º, XLVII, a e b, da CF); (ii) observar o tempo máximo de cumprimento de pena possível no Brasil, 30 (trinta) anos (art. 75, do CP); e (iii) detrair do cumprimento de pena eventualmente imposta o tempo de prisão para fins de extradição por força deste processo.

O tratado de extradição entre Brasil e Itália foi promulgado por meio do Decreto 863, de 09 de julho de 1993, com publicação em 12 de julho de 1993.

Reforço que se trata de mero exercício teórico aplicável ao caso, não havendo notícia de eventual aquisição de cidadania pelo jogador.

A dupla persecução penal:

Seguindo o exercício teórico que o caso traz, a meu ver não seria possível a nova persecução penal sobre o mesmo fato sob a jurisdição brasileira.

A matéria possui debate constitucional por meio do Habeas Corpus 171.118/STF, sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes. Lê-se:

“É forçoso concluir, portanto, que o exercício do controle de convencionalidade, tendo por paradigmas os dispositivos do art. 14, 7, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o art. 8, 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos, determina a vedação à dupla persecução penal, ainda que em jurisdições de países distintos.

Assim, o art. 8º do Código Penal deve ser lido em conformidade com os preceitos convencionais e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, vedando-se a dupla persecução penal por idênticos fatos.”

Entendo, em vista do posicionamento assumido pelo Supremo Tribunal Federal, que não há espaço a nova instauração de processo penal sobre fato já processado e julgado em Estado estrangeiro, ainda que sob justificativa de adequação da norma penal mais benéfica.

Filipe Liepkan Maranhão
Advogado especialista com atuação em Direito Administrativo e Eleitoral. Pós-graduado em Direito Público e Tributário pela PUC/MG. Sócio-administrador no escritório Filipe Liepkan Advocacia.

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