O credenciamento é uma modalidade de inexigibilidade cuja gênese efetiva encontra-se mais na criatividade da vida real do que da previsão da lei federal 14.133/21.
O credenciamento tem origem na inexigibilidade do artigo 25 da antiga lei de licitações e na lei 8.958/94 quanto às fundações de apoio. A hipótese é de inexigibilidade múltipla.
A inexigibilidade, corriqueiramente, decorre da singularidade do objeto e do contratado. Na hipótese de credenciamento a circunstância como um todo é que apresenta singularidade e não o objeto ou o licitante.
Aliás, paradoxalmente, a ausência de singularidade é tão profundamente acentuada que o somatório de objetos comuns é uma singularidade somada ou singularidade múltipla.
O objeto do credenciamento apresenta dimensão singular que comporta licitantes múltiplos para a satisfação do interesse público.
Daí a nomenclatura sugerida por nós: “singularidade múltipla”, ou “singularidade circunstancial”.
A nova lei de licitações previu o instituto no artigo 79 da referida lei. Assim:
“Art. 79. O credenciamento poderá ser usado nas seguintes hipóteses de contratação:
I - paralela e não excludente: caso em que é viável e vantajosa para a Administração a realização de contratações simultâneas em condições padronizadas;
II - com seleção a critério de terceiros: caso em que a seleção do contratado está a cargo do beneficiário direto da prestação;
III - em mercados fluidos: caso em que a flutuação constante do valor da prestação e das condições de contratação inviabiliza a seleção de agente por meio de processo de licitação.”
As hipóteses legais podem ser resumidas numa frase: respeito ao princípio da isonomia sem que haja necessidade de licitação. Ou, replicando Marçal, “inexigibilidade anômala” de licitação.
Por conta de tal peculiaridade é que Marçal Justen Filho1 confere a denominação de “anômala” à inexigibilidade existente no credenciamento.
Assim:
“(...)
11) Uma manifestação anômala de objeto comum
Não é despropositado afirmar que o credenciamento pode ser adotado em hipóteses de objeto comum, destituído de peculiaridades, em condições similares ao que se passa no caso do pregão. A distinção reside em que não é cabível um procedimento licitatório específico, em virtude de uma anômala inviabilidade de competição.” (grifos iniciais do autor e finais nossos).
O exemplo pedagógico escolhido por Marçal Justen Filho2 é colhido na jurisprudência do TCU refere-se à hipótese de médicos:
“Jurisprudência anterior do TCU
‘O credenciamento pode ser utilizado para a contratação de profissionais de saúde, tanto para atuarem em unidades públicas de saúde quanto em seus próprios consultórios e clínicas, quando se verifica a inviabilidade de competição para preenchimento das vagas, bem como quando a demanda pelos serviços é superior à oferta e é possível a contratação de todos os interessados, devendo a distribuição dos serviços entre os interessados se dar de forma objetiva e impessoal’
(acórdão 352/2016, Plenário Min. Benjamin Zymler).”( grifos iniciais nossos e finais nossos).
O blog da Zenite3 dá outro exemplo de credenciamento: as passagens aéreas. Assim:
“Inclusive, a Instrução Normativa nº 3 de 11 de fevereiro de 2015 da SLTI do MPOG (recém saída do forno) trouxe o credenciamento como ferramenta para ‘habilitação das empresas de transporte aéreo, visando à aquisição direta de passagens pelos órgãos e entidades da Administração Pública Federal’”
Merece destaque o fato de que passagens aéreas tem característica de circunstância com multiplicidade singular no âmbito federal, mas; não necessariamente; terá tal característica na hipótese de um pequeno município. Talvez nessa última hipótese a dispensa de licitação tenha melhor adequação.
A definição do mesmo blog já citado, corrobora a característica de singularidade múltipla. Assim:
“O credenciamento é sistema por meio do qual a Administração Pública convoca todos os interessados em prestar serviços ou fornecer bens, para que, preenchendo os requisitos necessários, credenciem-se junto ao órgão ou entidade para executar o objeto quando convocados.“(grifos no original).
Alguns procedimentos devem ser feitos pela administração pública de maneira a garantir a efetiva isonomia no caso do credenciamento: chamamento público e cadastramento permanente; distribuição por critérios objetivos quando não for possível a distribuição a todos e não for possível a contratação simultânea.
Oscar Wilde tem a célebre frase de que “a vida imita a arte mais do que a arte imita a vida”.
Assim, também, a lei interpreta a vida, mas é a vida que interpreta melhor a lei.
O credenciamento é verdadeira metamorfose da vida que transforma um fato “licitável” num fato de licitação inexigível.
A inexigibilidade não surge da singularidade do objeto ou do licitante, mas pela ausência de singularidade que transforma o objeto em fracionável a um sem número de licitantes de maneira isonômica.
Utilizando de licença poética, diríamos que o objeto é tão profundamente sem singularidade que se torna _ parodoxalmente _ uma “singularidade múltipla”.
A “singularidade” não se encontra na individualidade, mas _ exatamente no extremo oposto _ na multiplicidade do objeto e dos “licitantes” que a tornam o credenciamento um veículo de efetiva isonomia com a participação de maior amplitude possível e não através de uma seleção de um licitante tampouco contratação por inexigibilidade de um único licitante.
O credenciamento é, assim, a maior expressão do princípio constitucional da isonomia que transforma a licitação em verdadeira “democracia direta licitatória”, em que todos os licitantes interessados poderão contratar com a administração pública.
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1 “ Comentários à lei de licitações e contratações administrativas”, Editora RT, Edição 2.021, página 1.130.
2 Comentários à lei de licitações e contratações administrativas”, Editora RT, Edição 2.021, página 1.133/1.134.
3 https://www.zenite.blog.br/afinal-o-que-e-credenciamento/