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Tuberculose nos presídios – A precária assistência à saúde para a população carcerária

Uma análise, baseada em dados relativos ao enfrentamento da tuberculose no Brasil, que demonstra o abismo existente entre a (já precária) assistência ofertada à população em geral, por meio do SUS, e a aquela ofertada à população presa.

1/10/2020

O acesso universal e igualitário à saúde e às políticas que visam a prevenção e o combate às enfermidades é dever constitucional do Estado brasileiro e direito assegurado a todas as pessoas. Os presos, enquanto parcela vulnerável da população, devem ter assegurado o acesso à rede de atenção à saúde com agilidade, equidade e qualidade, conforme previsão expressa da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP).

Apesar da garantia deste direito, a falta de estrutura e as condições degradantes as que os presos estão expostos resultam em alta incidência de doenças respiratórias nos presídios brasileiros, o que, além de configurar violação aos direitos fundamentais destes indivíduos, impede que o Brasil avance como deveria nos indicadores de saúde pública.

Em janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou o surto do novo coronavírus como emergência de saúde pública1. No ano de 1993, a OMS adotou medida idêntica em virtude do surto de outra doença respiratória: a tuberculose. Passados cerca de 27 anos, essa enfermidade parece não mais assustar, tanto que na Assembleia Mundial da Saúde promovida em 2014, aprovou-se o plano de erradicação da tuberculose.

Segundo informou a entidade, o plano estabelece a  fase denominada de "pré-eliminação", na qual se buscará a marca de dez novos casos por milhão de indivíduos até 2035, com a finalidade de se atingir a erradicação completa em 20502. Ocorre que, ao elaborar suas metas, a Organização Mundial da Saúde não considerou que em alguns países, como o Brasil, há uma parcela da população a qual as políticas de saúde pública não alcançam.

Alinhado ao esforço mundial de erradicação da tuberculose, o Brasil desenvolveu em 2017 o Plano Nacional pelo Fim da Tuberculose como Problema de Saúde Pública3. O plano tem o objetivo de reduzir o número de contaminações e óbitos no Brasil para 10 casos por 100 mil habitantes em 2035.

A universalidade do sistema de saúde brasileiro é o maior instrumento governamental no combate à doença. Conforme se verifica pelo documento "Tuberculose tem cura!", não apenas a vacina BCG, mas os exames clínicos, o tratamento diretamente observado, que garante maior adesão e êxito no tratamento, e os medicamentos que promovem a cura e evitam a multirressistência da bactéria são disponibilizados de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde.

Observados os números relativos à evolução do combate à tuberculose no Brasil, nota-se um progresso. Em 2001, o número de pessoas diagnosticadas com tuberculose era de 42,7 para cada 100 mil habitantes. Após tendência de queda, com aumentos pontuais, esta proporção caiu para 35 em 2019, conforme Boletim Epidemiológico 2020 - Tuberculose, do Ministério da Saúde4.

O progresso vislumbrado, todavia, tem sido modesto, com redução do coeficiente de incidência em 7,7 casos por 100 mil habitantes em pouco menos de 20 anos. Ainda que fosse mantida a curva de queda obtida até 2015 - o que não foi o caso -, segundo dados do próprio Plano Nacional pelo Fim da Tuberculose como Problema de Saúde Pública, a meta ali estipulada possivelmente não seria atingida, projetando-se  chegar a 20,7 em 2035 no cenário mais otimista.

O Ministério da Saúde aponta como um dos principais obstáculos à eficiência das políticas de  combate à tuberculose o abandono do tratamento. A cada dez pessoas que iniciam o tratamento, ao menos uma abandona o uso dos medicamentos5. Entretanto, há outro indicador que nos parece igual ou até mais relevante para explicar essa ineficiência: a proliferação da doença no cárcere. De forma contrária à projeção governamental acerca da redução de casos, a população carcerária brasileira apresenta altos indicadores de incidência da tuberculose e impulsiona de forma substancial o aumento do número total de casos da doença.

Se no ano de 2010 a população presa representava 6,4% dos números de casos totais, em 2019 esse número praticamente dobrou, de modo que a população carcerária representa 11,1% do total dos casos de tuberculose, em que pese tratar-se de aproximadamente 0,37% por cento da população total. Além disso, a população carcerária brasileira passou de 496.251 em 20106 para 773.151 em 20197 - aumento de cerca de 55% -, enquanto o número de presos infectados passou de 4.625, em 20108, para 8.154, em 20199, correspondente a um aumento de 76%.

Trata-se de evidência categórica de como a população prisional do Brasil encontra-se marginalizada do acesso a direitos básicos. Não obstante a relativa eficiência da estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS) para a oferta de tratamentos à população como um todo, a universalidade do sistema de saúde, neste caso, é representada apenas pela expressão formal, não atingindo seu objetivo e objeto essencial ao deixar de fora grupo que apresenta considerável vulnerabilidade e que, ao contrário, mereceria maior atenção para garantia da efetividade dos planos de erradicação desenvolvidos.

O tratamento diferenciado dispensado à população presa está em descompasso com o que estabelece o Estado de Direito brasileiro. A Constituição Federal, que ocupa o topo da pirâmide do nosso sistema jurídico hierarquicamente escalonado, estabelece a saúde como direito social básico (art. 6º) e que a oferta de assistência à saúde deverá ser universal e igualitária (art. 196), estruturada em um sistema único, o SUS.

A lei 8.080/1990, que concede eficácia plena ao dispositivo constitucional, dentre outras disposições, disciplina o SUS e prevê, já em seu art. 2º, que "a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício". A lei também reforça, dentre os seus princípios elencados em seu art. 7º, a universalidade que deve haver no acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência.

Percebe-se que, tanto do ponto de vista constitucional, quanto do ponto de vista legal, há a previsão do dever estatal de oferta universalizada e igualitária de saúde, o que significa dizer que a todos os brasileiros devem ser direcionadas ações de promoção, proteção e recuperação da saúde. Isso significa que o fato de uma pessoa estar cumprindo pena privativa de liberdade não lhe retira o direito ao acesso à saúde.

Inclusive a própria Lei de Execução Penal (lei 7.210/1984), que regulamenta a execução de penas por pessoas condenadas por crimes pela Justiça e se estende também aos presos provisórios, prevê o dever estatal de assistência à saúde à pessoa presa, a qual deverá ser de caráter preventivo e curativo e deverá compreender atendimento médico, farmacêutico e odontológico.

Têm sido empregados esforços pelo Poder Executivo no intuito de se fazer valer o direito dos presos à assistência à saúde e dever do Estado. Em 2003, o Ministério da Saúde e o Ministério da Justiça, instituíram o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP), por meio da portaria interministerial 1.777/2003 visando justamente "a inclusão da população penitenciária no SUS, garantindo que o direito à cidadania se efetive na perspectiva dos direitos humanos"10. Com o intuito de superar essas dificuldades, foi desenvolvida a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), por meio da portaria interministerial 1/2014.

Apesar das políticas estatais para erradicação da tuberculose, nota-se a disseminação cada vez maior desta doença entre a população carcerária, o que evidencia a existência de dois Estados paralelos: um atuante na defesa da dignidade e garantia do mínimo existencial e outro cujos direitos básicos não são ofertados e que sofrem com as severas consequências da negligência estatal.

Como visto, a prática está bem distante da teoria. Há precária estrutura de oferta de assistência à saúde de presos no que tange à disponibilidade de profissionais e insumos básicos, muito aquém da - muitas vezes criticada - assistência prestada à população geral pelo SUS. Além disso, as prisões são superlotadas e são péssimas as condições estruturais das unidades prisionais (malventiladas e mal-iluminadas). Estes fatores contribuem para as altas taxas de tuberculose nos presídios, como concluiu estudo da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)11.

Em outro estudo realizado recentemente por pesquisadores da Ensp - que analisaram as causas de mortes no Sistema Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro entre 2016 e 2017 -, identificou-se que as doenças infecciosas foram responsáveis por 30% das mortes na população carcerária, o número é três vezes superior ao verificado na população geral do Estado do Rio de Janeiro12. Dentre as mortes de presos causadas por doenças infecciosas, 40,7% foram decorrentes de tuberculose, atrás apenas da HIV/Aids.

Ao se tratar da tuberculose, a coordenadora do estudo, Alexandra Sánchez, destacou a falta de acesso do preso ao diagnóstico e tratamento, como principal fator para evolução da doença ao óbito, fazendo menção expressa à impossibilidade de acesso dos encarcerados aos serviços de saúde fornecidos pelo poder público fora do estabelecimento prisional.

A negativa de acesso ao mínimo existencial à população carcerária como produto da negligência das três esferas de poder público é reflexo do "Estado de Coisas Inconstitucional" em que se encontra o sistema prisional brasileiro. Esse Estado de Coisas trata de tese jurídica consolidada pela Corte Constitucional da Colômbia ("Sentencia de Unificación - SU 559, de 6/11/1997")13 e reporta situação na qual violação generalizada e sistêmica a direitos sociais básicos deriva da indevida formulação e implementação de políticas públicas, além de decisões judiciais – tanto na fase de conhecimento como execução – em que não há interpretação das normas penais de acordo com a Constituição.

A existência do Estado de Coisas Inconstitucional no sistema carcerário brasileiro foi institucionalmente reconhecido em precedente formalmente vinculante do STF, de modo que o Ministro Marco Aurélio de Mello, relator da ADPF 347, elucidou a situação precária e indigna que se encontra a população carcerária nacional, a qual é negada a noção de mínimo existencial, uma vez que as condições em que vivem os presos não são aptas a lhes assegurar sequer a existência digna, inviabilizada a fruição de direitos sociais básicos, tais como salubridade e higiene das celas em que permanecem reclusos:

A maior parte desses detentos está sujeita às seguintes condições: superlotação dos presídios, torturas, homicídios, violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida imprestável, falta de água potável, de produtos higiênicos básicos, de acesso à assistência judiciária, à educação, à saúde e ao trabalho, bem como amplo domínio dos cárceres por organizações criminosas, insuficiência do controle quanto ao cumprimento das penas, discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual. Com o déficit prisional ultrapassando a casa das 206 mil vagas, salta aos olhos o problema da superlotação, que pode ser a origem de todos os males. No Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, formalizado em 2009, concluiu-se que 'a superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso sanitário' (...) A responsabilidade do Poder Público é sistêmica, revelado amplo espectro de deficiência nas ações estatais. Tem-se a denominada 'falha estatal estrutural'. As leis existentes, porque não observadas, deixam de conduzir à proteção aos direitos fundamentais dos presos. Executivo e Legislativo, titulares do condomínio legislativo sobre as matérias relacionadas, não se comunicam. As políticas públicas em vigor mostram-se incapazes de reverter o quadro de inconstitucionalidades. O Judiciário, ao implementar número excessivo de prisões provisórias, coloca em prática a 'cultura do encarceramento', que, repita-se, agravou a superlotação carcerária e não diminuiu a insegurança social nas cidades e zonas rurais.14

A situação descrita pelo ministro Marco Aurélio vai ao encontro dos dados fornecidos pelo Ministério da Justiça no sentido de que no ano de 2019 a taxa de superlotação carcerária atingiu cerca de 166%, com  déficit de aproximadamente 300 mil presos15. As condições precárias de habitação e a taxa de substancial superlotação demonstram de forma objetiva e categórica situação fática que, ao contrário das metas estabelecidas pelo Poder Público, corroboram para o agravamento da situação sanitária relativa à tuberculose.

É evidente que o controle, a redução e a posterior erradicação da tuberculose passam pela extensão da implementação e efetiva aplicação das políticas de saúde pública à população carcerária. Todavia, a negligência estatal em assegurar o mínimo existencial constitucionalmente garantido a todos cidadãos, além de desumanizar aqueles que estão com sua liberdade privada, viola os compromissos a que o Poder Público está constitucionalmente vinculado, com reflexos nos compromissos assumidos perante a comunidade internacional.

Já em 2016, Rafael Franzini, representante do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC), afirmou: "O Brasil tem, claramente, uma epidemia de tuberculose concentrada na população privada de liberdade". Na sequência, destacou: "Se concentrarmos esforços nesse segmento da sociedade, certamente conseguiremos um controle mais efetivo da tuberculose no país".

Esse estudo concentrou-se na análise específica dos efeitos da debilitada oferta de assistência à  saúde a presos para prevenção e enfrentamento da tuberculose. Todavia, os fatores aqui apontados - falta de atendimento e estrutura, superlotação e insalubridade - também contribuem com a disseminação de outras doenças, traduzindo-se em números igualmente preocupantes16.

Enquanto o mundo está voltado ao combate de uma doença cujo primeiro caso no Brasil foi identificado em fevereiro de 2020, a população carcerária continua sob a ameaça de uma doença cuja cura já foi identificada e o tratamento é genericamente assegurado pela rede pública de saúde. Esse comparativo é suficiente para demonstrar não apenas a existência de dois Estados paralelos, mas da necessidade iminente de que essa separação se encerre.

A evolução da tuberculose nos estabelecimentos prisionais em contraposição a um plano detalhado de combate a ela anunciado nos últimos anos apenas demonstra de forma concreta a urgência de atuação estatal voltada a assegurar igualdade de acesso à população como um todo aos serviços públicos essenciais. Caso contrário, os programas estatais que anunciam "Tuberculose tem cura!" ou que propagam "Brasil Livre da Tuberculose" não passarão de cartas de intenções frágeis e voláteis, fundamentos de um estado de coisas inconstitucional.

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*Felipe César Lourenço é graduado em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduado em Direito Administrativo pela PUC-SP, advogado pleno, especializado em direito público com foco em licitações, contratos administrativos, projetos de infraestrutura e assuntos regulatórios no Felsberg Advogados e criador do projeto Pretos no Direito. 






*Guilherme Roberto Guerra é graduado em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, analista jurídico na 96ª Procuradoria Criminal do Ministério Público do Estado de São Paulo.


 
 
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