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A gratuidade nos transportes coletivos urbanos

Muito se tem discutido acerca da gratuidade nos transportes coletivos urbanos intermunicipais desde que o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro julgou inconstitucional a Lei Estadual nº 3.339/99, denominada “Lei do Passe-Livre”.

19/12/2003

 

A gratuidade nos transportes coletivos urbanos

 

Alexandre Vider*  

 

Muito se tem discutido acerca da gratuidade nos transportes coletivos urbanos intermunicipais desde que o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro julgou inconstitucional a Lei Estadual nº 3.339/99, denominada “Lei do Passe-Livre”.

 

Essa lei assegurava, no território do Estado do Rio de Janeiro, a gratuidade no transporte coletivo urbano intermunicipal para maiores de 65 anos, pessoas portadoras de deficiência física e estudantes de 1º e 2º graus da rede pública municipal, estadual e federal, elegendo como fonte de custeio o montante equivalente a 10% do lucro obtido na comercialização do vale-transporte.

 

Há, todavia, uma completa falta de informação adequada ao público em geral acerca da (ir)responsabilidade dos governantes e legisladores no que concerne à política de prestação de assistência social.

 

Releva assinalar, desde logo, que o legislador estadual, através da Lei nº 3.339/99, demitiu-se de suas obrigações orçamentárias de arcar com o dispêndio da assistência social, indicando uma (falsa) fonte de custeio às expensas das empresas permissionárias privadas de transporte coletivo urbano, deixando de prover a assistência social em prol de um assistencialismo de caráter populista.

 

Com efeito, toda gratuidade é um benefício social. E os benefícios sociais inserem-se forçosamente na política constitucional de assistência social, a qual, na forma do artigo 194 da Constituição Federal, é um ônus dos Poderes Públicos e da sociedade como um todo.

 

Nesse diapasão, é assinalável que a Constituição Federal estabelece a diretriz constitucional aplicável ao sistema de custeio da assistência social, qual seja, “a reserva do possível”. Em outras palavras, tais dispositivos prescrevem que a concessão dos benefícios sociais deve ser vinculada à disponibilidade orçamentária ou previsão de fonte de custeio.

 

Na esteira dessa diretriz constitucional, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, em seu artigo 112, §2º, proíbe, terminantemente e em dicção ampla, que seja objeto de deliberação legislativa “proposta que vise conceder gratuidade em serviço público prestado na forma indireta, sem a correspondente indicação da fonte de custeio”.

 

É nesse arcabouço legal que está inserida a concessão de gratuidade nos meios de transporte coletivo intermunicipal sob a modalidade de permissão. Entretanto, esse sistema legal de custeio da assistência social e não foi observado pela Lei Estadual nº 3.339/99, que indicou de forma constitucionalmente inválida a fonte de custeio da gratuidade no transporte coletivo intermunicipal.

 

De fato, o legislador estadual elegeu como fonte de custeio um percentual do lucro obtido na comercialização do vale-transporte, embora o repasse tarifário dos custos dessa comercialização seja expressamente vedado pela lei que instituiu o vale-transporte.

 

Percebe-se que, por imperativo legal, a comercialização do vale-transporte não pode gerar lucro para as permissionárias de transporte público, devendo essas empresas suportar os custos de emissão, comercialização e distribuição dos vales-transportes. Desse modo, é de se concluir que a “Lei do passe livre” indicou uma receita privada insuscetível de existir, desatendendo ao requisito de concessão de gratuidade em serviço público prestado de forma indireta, inserto na Constituição Estadual.

 

Por outro lado, esse suposto lucro das empresas transportadoras, caso existente, teria natureza particular. E, conforme a diretriz constitucional aplicável ao sistema da assistência social, a fonte de custeio há de ser necessariamente pública. A propósito, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, ao se referir à indicação de fonte de custeio, somente poderia estar se referindo à indicação de recursos e contribuições referidos no artigo 195 da Constituição Federal, nunca a uma fonte privada.

 

É de se consignar que a indicação de uma inexeqüível fonte privada para financiar o benefício da gratuidade nos transportes coletivos é uma perversa política do legislador estadual. Isso porque a isenção do pagamento concedida a alguns passageiros seria, ao final, rateada no custo do transporte entre os passageiros que não têm essa isenção.

 

Isto porque, sendo vedada à obtenção de lucro através da comercialização de vale-transporte, não há previsão de encargo com a concessão de gratuidades no cálculo de reajuste das tarifas intermunicipais. E, onerar-se as empresas com o custo dessas gratuidades é comprometer o equilíbrio econômico-financeiro das permissões outorgadas pelo Estado, o que ensejaria a revisão das tarifas cobradas pelas empresas permissionárias de modo a preservar-se esse equilíbrio contratual. 

 

De modo que, ocorrendo tal revisão tarifária, os benefícios sociais da gratuidade de transporte a determinados grupos seriam custeados apenas por uma pequena parcela da sociedade - os usuários que pagam pelo transporte -, subvertendo-se o princípio norteador da política nacional de assistência social, qual seja, a assunção de tais obrigações como um dever do Estado e da coletividade como um todo.

 

Todavia, e em que pese a Comissão de Constituição e Justiça da ALERJ ter concluindo pela constitucionalidade do Projeto de Lei nº 570/2003, o fato é que a fonte de custeio indicada na referida proposição permanece tendo um caráter privado e onerando as empresas permissionárias, o que, como já se expôs, é de todo inconstitucional.

 

É que o artigo 2º desse Projeto de Lei dispõe que as gratuidades deverão ser suportadas na proporção de 50% (cinqüenta por cento) por um fundo de custeio e compensação (composto de valores oriundos de parte da arrecadação de ICMS e de IPVA) e os outros 50% (cinqüenta por cento) suportadas pelos operadores dos transportes públicos intermunicipais.

 

Lamentavelmente, o referido Projeto de Lei, ao assim dispor, mantém a natureza particular quanto a essa parte da fonte de custeio. Portanto, permanece a frontal ofensa à diretriz constitucional aplicável ao sistema da assistência social.

 

Pode-se concluir que quaisquer normas infraconstitucionais que desatendam ao comando de indicação de fonte de custeio, na concessão de gratuidades ou que ao efetuarem a indicação da fonte de custeio, transfiram o ônus da concessão do benefício a apenas uma parte da sociedade, padecem do vício de inconstitucionalidade, como é o caso tanto da malsinada “Lei do passe livre” como do Projeto de Lei nº 570/2003.

 

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* Advogado do escritório Siqueira Castro – Advogados

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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