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Piratas, portos e pistolas - a contrafação da marca SMITH & WESSON no Brasil

Combater o fluxo de mercadorias pirateadas no Brasil não é tarefa fácil. O território brasileiro cobre oito milhões e meio de quilômetros quadrados e possui fronteiras com dez países na América Latina. Autoridades Alfandegárias enfrentam, portanto, as dificuldades naturais em policiar uma área tão vasta e, na maioria das vezes, a falta de recursos adequados para a tarefa, com a preocupação adicional de que em algumas ocasiões estão lidando com direitos de cidadãos e países estrangeiros.

17/12/2003

 

Piratas, portos e pistolas - a contrafação da marca SMITH & WESSON no Brasil

 

Denis Allan Daniel*

 

Combater o fluxo de mercadorias pirateadas no Brasil não é tarefa fácil. O território brasileiro cobre oito milhões e meio de quilômetros quadrados e possui fronteiras com dez países na América Latina. Autoridades Alfandegárias enfrentam, portanto, as dificuldades naturais em policiar uma área tão vasta e, na maioria das vezes, a falta de recursos adequados para a tarefa, com a preocupação adicional de que em algumas ocasiões estão lidando com direitos de cidadãos e países estrangeiros.

 

Tendo em vista a escassez de potencial humano e a vasta área a ser vigiada, os funcionários da Alfândega brasileira utilizam um sistema de inspeções ocasionais, prestando atenção especial às mercadorias vindas dos grandes exportadores asiáticos, como China, Taiwan e Coréia, os quais têm um histórico de fabricação e exportação de produtos falsificados para o Brasil. Este é um relato de uma operação que resultou na apreensão e destruição de mais de 100.000 réplicas de plástico das pistolas SMITH & WESSON, como pode-se ver abaixo, cujo destino poderia ter sido as ruas do Brasil ou de outros países da América Latina.

 

 

Esta apreensão foi o resultado de uma das inspeções mencionadas. As Autoridades Alfandegárias no porto brasileiro de Paranaguá, o qual abriga uma zona livre paraguaia, estavam fazendo uma inspeção rotineira em mercadorias que haviam sido transportadas para o Brasil a bordo do Izumu, um navio de carga proveniente do Porto de Sekou, Província de Guangdong, sul da China, em agosto de 2002, quando se depararam com 367 caixas de réplicas de plástico das pistolas SMITH & WESSON, com 288 pistolas em cada caixa, conforme ilustrado abaixo:

 

 

As pistolas de brinquedo, com sua aparência de autênticas, a ponto de virem completas com um mecanismo de carga e pentes de balas, iriam, provalmente, parar nas mãos de criminosos brasileiros e, não, nas mãos de inocentes crianças paraguaias. Uma Inspetora da Alfândega do porto de Paranaguá apreendeu inicialmente as pistolas porque é ilegal importar armas de brinquedo ou réplicas de armas de brinquedo para o Brasil. No entanto, a Inspetora acreditou não ter razões fortes o suficiente para deter mercadorias numa zona livre paraguaia, baseando-se, unicamente, na ilegalidade da importação de tais mercadorias para o Brasil.

 

Recordando-se de reportagens recentes na imprensa brasileira, sobre apreensões de mercadorias pirateadas com base em infrações de marcas, a Inspetora foi encorajada a buscar uma medida alternativa. Ela suspeitou que a Lei Brasileira de Marcas poderia fornecer o suporte adicional de que precisava para deter essas mercadorias em uma zona livre paraguaia, cujo destino era, aparentemente, o Paraguai. Dessa forma, a Inspetora decidiu realizar uma busca na base de dados on-line do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, referente ao nome “Smith & Wesson”, a qual revelou a existência da marca registrada SMITH & WESSON para armas de fogo. A busca também revelou o nome do advogado brasileiro que representa a proprietária da marca, Smith & Wesson Corp., no Brasil. Ela telefonou ao advogado brasileiro, o qual, então, entrou em contato com seu cliente nos Estados Unidos da América, que, por sua vez, autorizou o encontro do advogado com a Inspetora. No encontro, a Inspetora ressaltou que se não fosse apresentada uma reclamação em caráter de urgência, a mercadoria estaria, em breve, a caminho do Paraguai e, logo depois, seria, provavelmente, contrabandeada de volta para o Brasil, pela fronteira.

 

Uma petição foi rapidamente preparada pelo advogado e apresentada perante as Autoridades Alfandegárias, confirmando que as pistolas haviam sido fabricadas sem a autorização da Smith & Wesson Corp. Ao mesmo tempo, o importador paraguaio das pistolas estava pressionando a Alfândega para liberar os produtos. Um dos argumentos mais fortes utilizado pelo importador foi o de que a marca SMITH & WESSON encontra-se registrada no Brasil mas, não, no Paraguai, que era o destino final das pistolas. Como tanto o Brasil quanto o Paraguai são signatários da Convenção da União de Paris, através da qual as Autoridades Alfandegárias têm o poder de apreender mercadorias falsificadas, a petição do advogado continha dispositivos da Convenção que estabelecem que: “O produto ilicitamente assinalado por uma marca de fábrica ou de comércio ou por um nome comercial será apreendido ao ser importado nos países da União onde essa marca ou esse nome comercial tem direito à proteção legal e a apreensão será igualmente efetuada no país onde a aposição ilícita tenha sido feita ou no país onde o produto tenha sido importado.”

 

A petição também confirmou que SMITH & WESSON é marca registrada no Brasil e que trata-se de marca notoriamente conhecida, merecendo, assim, proteção especial. Dispositivos relevantes da atual Lei de Marcas Brasileira também foram citados, particularmente aqueles que declaram constituir crime a reprodução desautorizada de marca registrada e que produtos contrafeitos devem ser apreendidos por Autoridades Alfandegárias ou a pedido de terceiros interessados, toda vez que forem identificados por marcas falsificadas.

 

Esses dispositivos, aliados ao fato de que ambos os países também são signatários do TRIPS, sob a égide da Organização Mundial do Comércio, forneceram, às Autoridades Alfandegárias, as razões de que precisavam para apreender, definitivamente, as pistolas. O dossiê oficial do procedimento indica o nome do importador, localizado no Paraguai, como sendo Mei Fu Trading Limited Company S.R.L. e Chengai Huada Plastics Co. Ltd., localizada na China, como sendo a fabricante das pistolas. Uma vez que não foram apresentadas objeções formais contra a apreensão das mercadorias, as Autoridades Alfandegárias decidiram que podiam ir adiante e destruir as pistolas. A destruição poderia ter sido realizada localmente, no prédio da Autoridade Alfandegária, ou em Foz do Iguaçu, uma cidade localizada a muitos quilômetros de Paranaguá, onde a Alfândega possui uma máquina para destruir CDs pirateados. Embarcar as mercadorias para Foz do Iguaçu teria custado aproximadamente R$ 15.000,00, incluindo a contratação de “containers”, caminhões e pessoal para transportar e destruir o material. Tendo em vista que as Autoridades Alfandegárias do Porto de Paranaguá não possuem recursos para destruir mercadorias pirateadas ou falsificadas, elas dependem da boa vontade do Departamento de Obras Públicas daquele Município. Essa boa vontade consiste em mandar alguns tratores de grande porte para esmagarem os produtos colocados sobre o asfalto do pátio do prédio da Alfândega. Em pouco tempo, os tratores estavam passando por cima das 105.696 réplicas de plástico das pistolas SMITH & WESSON. O plástico quebrado e as molas de metal, mostrados abaixo, foram doados a uma entidade local de assistência a menores, que os venderia, depois, como sucata:

 

 

O atual Regulamento da Alfândega Brasileira, datado de 26 de dezembro de 2002, inclui dispositivos relacionados à contrafação de marcas, no que parece ser uma tentativa de adaptar-se ao TRIPS e seus “Requisitos Especiais Referentes a Limites de Fronteiras”. Embora o Regulamento disponha que a apreensão de mercadorias pode ocorrer a requerimento do proprietário da marca contrafeita ou ex officio, as mercadorias detidas só podem ser definitivamente apreendidas por ordem judicial. A necessidade dessa formalidade legal origina-se, aparentemente, do fato de que o Regulamento interpretou as palavras “autoridades competentes”, mencionadas no TRIPS, como sendo “autoridade judicial”, dando margem à necessidade de propositura de uma ação judicial com vistas à obtenção da ordem judicial.

 

Considerando que o Regulamento prevê que, em seguida à apreensão das mercadorias, as Autoridades Alfandegárias devem notificar o proprietário da marca, o qual terá um prazo de dez dias, prorrogável por mais dez dias, para tomar as medidas judiciais a fim de obter a aprovação judicial e apreensão das mercadorias, isso, certamente, complica e atrasa a tomada de medidas efetivas por parte da Alfândega.

 

No caso das pistolas falsificadas SMITH & WESSON, essa formalidade legal que antecede à efetiva destruição das pistolas não foi considerada necessária devido à proibição de importação de armas de brinquedo. Além disso, o fato de as pistolas terem sido identificadas por uma marca registrada no Brasil, que estava sendo usada sem autorização do legítimo titular, convenceu a Inspetora de que havia razões suficientes para apreender e destruir as pistolas.

 

Finalmente, este caso demonstra que a apreensão ocorrida no Brasil faz parte de um esforço global coordenado pela Smith & Wesson, através de seus procuradores, para, com dinamismo, identificar e processar infratores.

 

CONCLUSÃO

 

A partir do momento em que a Inspetora teve a iniciativa de entrar em contato com o advogado de marcas que representa a Smith & Wesson Corp., no Brasil, com vistas a destruição das pistolas, o procedimento foi rápido e efetivo. O que tornou a situação fora do comum foi a cooperação tripartite entre a Inspetora da Alfândega, o advogado de marcas e os funcionários do Departamento de Obras Públicas Municipais. Esse fato, tanto quanto a criatividade e o bom senso, levaram a um desfecho rápido e legalmente correto. É de se esperar que, eventos como este irão aumentar a cooperação entre autoridades e escritórios de advocacia, bem como entre as esferas públicas e privadas, num esforço comum para combater a pirataria e o crime. O resultado prático da apreensão das falsificações dos produtos importados com a marca SMITH & WESSON mostra que as Autoridades Alfandegárias brasileiras estão em posição de apreender e destruir produtos ilícitos que infrinjam direitos marcários. As ações que a Inspetora foi obrigada a tomar no presente caso ressaltam, entretanto, impropriedades no sistema brasileiro de controle de fronteiras, o qual requer melhorias urgentes para possibilitar que as autoridades ajam de modo a beneficiar, em primeiro lugar, a coletividade e os consumidores e, por último, os titulares de marcas. Os regulamentos da Alfândega que se encontram atualmente em vigor não parecem ser completamente satisfatórios, de forma a permitir que as autoridades das fronteiras sejam mais ágeis em fazer com que as contrafações parem de entrar no país. Por exemplo, no momento não há procedimento oficial que possibilite, aos titulares de marcas, cadastrarem suas marcas registradas perante as Autoridades Portuárias. Ademais, as disposições do Regulamento da Alfândega Brasileira deveriam ser mais detalhadas e específicas, e incluir uma lista dos requisitos necessários à apresentação de uma solicitação de apreensão perante a Alfândega. Isso poderia juntar-se à interação com o banco de dados on-line do Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Também seria necessário alterar o atual regulamento para excluir o requisito geral de propositura de ação judicial para a apreensão definitiva das mercadorias. Tal atitude contribuiria para tornar todo o sistema mais eficiente.

 

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* Advogado do escritório Daniel Advogados

 

 

 

 

 

 

 

 

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