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Breves notas sobre o cumprimento dos contratos de natureza civil e consumerista em tempos de coronavírus

O caso fortuito e a força maior podem ser entendidos como os acontecimentos que impedem o cumprimento do compromisso assumido pela parte contratante.

9/4/2020

O reconhecimento pela Organização Mundial de Saúde de um estado de pandemia global provocado pelo covid-19 (novo coronavírus), bem como as medidas correlatas do Estado brasileiro, em seus mais diversos níveis, que impôs restrições para a atividade econômica e o funcionamento dos serviços públicos,1 para evitar a rápida propagação da doença, têm trazido à lume discussões acerca do adimplemento das obrigações previstas nos contratos civis, já que parcela significativa das pessoas, naturais e jurídicas, sofreram/sofrerão significativos impactos em renda e patrimônio com a crise deflagrada.

Da situação, exsurgem questionamentos se os contratos se mantêm e se ainda deverão ser cumpridos nas mesmas condições de tempo, espaço e modo, ainda que em circunstâncias tão diferentes e inesperadas, que não faziam parte do imaginário dos contratantes no momento de assumir os seus compromissos. À falta de medidas legislativas específicas, até o momento, para enfrentamento da crise de adimplemento dos contratos de Direito Privado, regidos pela legislação civil, com raras exceções no que tange ao setor aeronáutico2 e no direito comparado3, torna-se necessário o enfrentamento da questão à luz das regras do Código Civil e do CDC.

Tradicionalmente, no Direito Civil, fala-se que os contratos são regidos pelo princípio da pacta sunt servanda, de modo que as obrigações e cláusulas contratuais deverão ser cumpridas assim como previstas originariamente. É difundido o entendimento de que o contrato faz lei entre as partes, sendo passível de sanção qualquer comportamento dos contratantes que divirja das regras livre e antecipadamente estipuladas. 4

Nada obstante, entre nós, o legislador infraconstitucional visou flexibilizar a regra da pacta sunt servanda, considerando que, na realidade social, podem ocorrer fatos excepcionais ou imprevisíveis que impeçam ou dificultem o adimplemento de obrigações.

Em tal esteira, na tentativa de flexibilização da regra do pacta sunt servanda, a legislação civil prevê os institutos (a) do caso fortuito e da força maior (art. 393 do Código Civil), (b) da exceção do contrato não cumprido (art. 476 et seq. do Código Civil), bem como (c) da resolução por onerosidade excessiva (art. 478 et seq. também do Código Civil, e art. 6º, V, do CDC).

O caso fortuito e a força maior podem ser entendidos como os acontecimentos que impedem o cumprimento do compromisso assumido pela parte contratante.5 São fatos ou atos estranhos à vontade do devedor, cujos efeitos não podem ser impedidos por este, como eventos da natureza (p. ex., fortes chuvas, ventos, raios, etc.) ou atos praticados por terceiros (p. ex., greve, guerra, roubo, etc.).6

Havendo o caso fortuito ou a força maior, o art. 393 do Código Civil estabelece que o devedor inadimplente – aquele que não realizou o pagamento no tempo, lugar e forma combinados - não responderá pelos prejuízos ocasionados a outra (credor) resultantes da sua inércia, salvo expressamente tenha se responsabilizado pelos acontecimentos alheios à sua vontade.

Por esta razão, o caso fortuito ou a força maior são indicados como hipótese de excludente de responsabilidade, por romperem o nexo de causalidade entre o inadimplemento do devedor e o dano experimentado pelo credor.7

Em termos de manutenção da relação obrigacional, o caso fortuito e a força maior podem gerar, ao menos, duas consequências: (i) a extinção da relação obrigacional, por impossibilidade absoluta do cumprimento da prestação (pense-se na perda total de um veículo automotor específico por enchentes), ou (ii) a manutenção da obrigação pelo devedor, pela possibilidade de cumprimento da prestação apesar do acontecimento excepcional (pense-se na impossibilidade, momentânea, de entrega do veículo por bloqueio da única via terrestre de acesso decorrente de uma greve).

Desta forma, se ainda possível o adimplemento, pela possibilidade jurídica da prestação, o contrato deve prevalecer, ainda que ocorra a excludente de responsabilidade pautada no caso fortuito e na força maior.

Na situação atual também parece ter notável relevância o instituto da exceção do contrato não cumprido. Em todo contrato bilateral, em que exista obrigações mútuas entre contratantes, nenhum deles poderá exigir o adimplemento da outra parte, antes de cumprida sua própria obrigação. Por exemplo, não se poderá exigir a entrega de uma mercadoria, se o comprador ainda não pagou por ela.

O art. 477 do Código Civil estabelece regra de aparente relevância para o contexto atual. O dispositivo prevê que o contratante poderá se recusar a adimplir o contrato, se verificar que o devedor teve diminuição patrimonial capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação a qual está obrigado.

Assim, desde que existam fortes provas objetivas (não apenas indícios) da situação patrimonial do devedor, razoável que o credor se recuse a cumprir sua prestação, se houver fortes dúvidas sobre a capacidade do devedor em honrar seus compromissos. Nesta hipótese, o credor poderá exigir o cumprimento da prestação do devedor em primeiro lugar ou exigir a prestação de uma garantia fidedigna (art. 477 do Código Civil), que poderá ser pessoal (fiança, aval, etc.) ou real (móvel ou imóvel).

Por último, mas não menos importante, vale a menção ao instituto da resolução por onerosidade excessiva. Segundo os arts. 478 e 479 do Código Civil, nos contratos de execução continuada8 ou diferida9, quando o contrato se tornar extremamente oneroso em virtude de "fatos extraordinários e imprevisíveis", trazendo "extrema vantagem para a outra", poderá ocorrer resolução (encerramento) ou, alternativamente, a modificação equitativa das condições do contrato.10

O instituto tem como fundamento e finalidade assegurar a justiça contratual, de modo a garantir o equilíbrio entre os benefícios e sacrifícios nos contratos comutativos em que há reciprocidade das prestações e estas são de prévio conhecimento dos contratantes.11

Como mencionado na própria lei, sua incidência tem como pressuposto a ocorrência de fatos extraordinários e imprevisíveis, inimagináveis no momento da formação do contrato.12 Ainda, importante esclarecer que sua aplicação dependerá de ordem judicial, que terá efeitos constitutivos (ex nunc, portanto), de modo que não retroagirão à data do acontecimento, mas à data da citação para o processo judicial, como ditado no art. 478 do Código Civil e reconhecido pela doutrina.

Ainda nesse campo, merece menção o preceito contido no art. 6º, V, do CDC, que admite a revisão das cláusulas em favor do consumidor nas relações de consumo, caso a prestação se torne excessivamente onerosa por fatos supervenientes. Em tese, o dispositivo é mais favorável ao consumidor, do que a previsão contida no Código Civil, na medida em que não condiciona a revisão contratual ao elemento da imprevisibilidade.

Como se pode notar, os três institutos ora analisados (caso fortuito e força maior, exceção do contrato não cumprido, e resolução por onerosidade excessiva, da legislação cível e consumerista) – que constituem uma forma de flexibilização da velha regra da pacta sunt servanda13 - serão, certamente, invocados nesse período excepcional, tanto em negociações entre particulares, como em futuras ações judiciais sempre que não for alcançada uma solução amigável.

De toda forma, importante ressaltar que, ainda que os três institutos em comento possam mitigar a rigidez dos contratos, a sua incidência deverá ocorrer por meio de efetiva prova do nexo de causalidade entre o fato ou ato extraordinário ou imprevisível e a impossibilidade de cumprimento da avença pelo devedor nas bases contratuais originais.

A revisão ou encerramento das obrigações contratuais, portanto, devem ser vistos como alternativas excepcionais, desde que haja comprovação do nexo entre a redução de capacidade do devedor (técnica, financeira, material, logística, etc.) com os fatos extraordinários ou imprevisíveis do atual cenário.

Também merece a ressalva de que os direitos adquiridos deverão ser preservados de modo que, se o devedor já recebeu sua contraprestação, ainda estará vinculado à remuneração do credor – não pode o locatário de imóvel se negar a reconhecer a exigibilidade do aluguel correspondente a mês já usufruído. De mais a mais, o encerramento do contrato, mesmo em caso da incidência dos institutos, deverá ser medida excepcional, devendo, ao máximo, tentar-se preservar a avença, ainda que com revisões pontuais, em decorrência do princípio da conservação (art. 421-A, inciso III, e 479 do Código Civil), salvo existente disposição contratual expressa em sentido contrário ou haja consenso posterior entre as partes.

Portanto, não podem os institutos ser invocados como mero pretexto de não cumprimento das obrigações contratuais, assim como qualquer discussão acerca do cumprimento do contrato não poderá atingir os direitos já adquiridos pela outra parte contratante.concretos, da calamidade. Afinal, muitas atividades econômicas continuam em funcionamento, de forma presencial ou remota.14 Assim, se houver o descumprimento contratual sem justa causa, o devedor ficará responsável por ressarcir os prejuízos decorrentes de sua mora, estando sujeito à aplicação das sanções legais e contratuais (p. ex., multa).

Em razão do imperativo da boa-fé, o devedor não poderá tentar se favorecer do cenário estarrecedor, se não sofreu os impactos individuais, diretos e De outro lado, se, de fato, o devedor se encontrar em situação de penúria ou grande dificuldade, objetivamente comprovável, caberá ao credor adotar postura compreensiva e cooperativa, de modo a tentar encontrar soluções para compatibilização dos interesses em jogo, com base no mesmo princípio da boa-fé, mantendo a avença, preferencialmente.15

Será, portanto, antes de tudo, necessária negociação entre os contratantes, para aferirem a real situação do devedor, e discutirem alterações contratuais pontuais, sob os critérios da justiça contratual (equilíbrio entre prestações), proporcionalidade e da boa-fé, evitando, assim, a provocação dos juízos estatais ou arbitrais.

Salvo raras exceções, a autocomposição será o melhor caminho a ser tomado pelos contratantes, na medida em que (i) decisões adjudicadas, tomadas por juízes ou árbitros, podem dar solução inadequada às situações concretas, que desagradem ambas as partes, (ii) os efeitos das decisões terão eficácia limitada no tempo e nem sempre retroagirão, deixando de oferecer o alívio esperado pelo devedor, e (iii) a provocação do juiz ou árbitro poderá trazer significativo ônus financeiro e demorar demasiado tempo, diante da burocracia procedimental, sendo certo que as soluções negociadas poderão ser muito mais baratas e céleres.

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1 Destaque para os seguintes atos normativos no âmbito federal, sem a pretensão de esgotamento: (i) a Lei Federal 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas de enfrentamento do Coronavírus; e o Decreto Legislativo 6/2020, que reconhece o estado de calamidade pública e define sua duração; (ii) as medidas provisórias do Executivo federal, dentre as quais, a MP 927/2020, que dispõe sobre medidas relacionadas às relações trabalhistas no período de calamidade pública; e (iii) a Resolução 313/2020 do CNJ, órgão pertencente ao Judiciário, que determina a suspensão de expediente e prazos na Justiça, exceto no que tange ao STF e à Justiça Eleitoral, implementando o regime de plantão judicial extraordinário.

No âmbito do Estado e Município de São Paulo, respectivamente, foram publicados o Decreto Estadual 64.881/2020 e o Decreto Municipal 59.298/2020, que estabeleceram a quarentena para restrição de atividades de comércio presenciais, salvo as consideradas essenciais.

2 A exceção relacionada ao setor de aviação é tratada por meio da Medida Provisória 925/2020 da Presidência da República.

3 Cf. Otavio Luiz Rodrigues Jr. Alemanha aprova legislação para controlar efeitos jurídicos da Covid-19. Consultor Jurídico. 25 de mar. de 2020. 

4 "O contrato faz lei entre as partes. Trata-se do princípio da "pacta sunt servanda" que tem por fim último assegurar aos contratantes segurança nas relações jurídicas, evitando-se assim surpresas quando do cumprimento do contrato. Deste modo, as cláusulas contratuais devem ser cumpridas tal como foram convencionadas, sob pena de desrespeito à ordem jurídica vigente." (TJSP; Apelação Cível 0006431-11.2012.8.26.0655; Relator Des. Teixeira Leite; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, julgado em 31.8.2016)

5 Por isso, mais importante que promover a diferenciação entre caso fortuito ou força maior, ponto de divergência jurisprudencial e doutrinária diante da omissão legal, é considerar que ambas as figuras têm como características mais importantes a inevitabilidade do acontecimento (não pode ser impedido pelo devedor) e a ausência de culpa do devedor na produção do evento (Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil brasileiro. 24. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. 2, p. 386).

6 Dentro dos limites da proporcionalidade e da razoabilidade. Não se pode exigir do devedor que, por exemplo, impeça um assalto à mão armada, como já decidido pelo TJSP (TJSP, Apelação 4.928.364.400, rel. Salles Rossi, julgado em 17.6.2009).

7 Cf. Hamid Charaf Bdine Jr. In: PELUSO, Cezar. Código Civil comentado. 13.ª ed. Barueri/SP: Manole, 2019. p. 374.

8 P. ex., contratos de locação de imóvel, de prestação de serviços, mandato, etc.

9 Contratos cujo cumprimento é prolongado no tempo e não pode ser exigido imediatamente. Por exemplo, os contratos sujeitos a um termo, evento futuro e certo.

10 Discute-se, na doutrina, acerca da possibilidade de o Judiciário revisar o contrato, malgrado a ausência de pedido expresso do réu (cf. Flávio Luiz Yarshell. Resolução do contrato por onerosidade excessiva: uma nova hipótese de ação dúplice? In: YARSHELL, Flávio Luiz et ali. (coord.). Estudos em homenagem a Professora Ada Pellegrini Grinover. 1. ed. São Paulo: DPJ, 2005).

11 Cf. Nelson Rosenvald. In: PELUSO, Cezar. Código Civil comentado. 13.ª ed. Barueri/SP: Manole, 2019. p. 521.

12 Cabe destacar que o presente artigo era praticamente inutilizado ante a dificuldade da jurisprudência em encontrar um fato efetivamente imprevisível a ocasionar a modificação contratual, sendo que houve rara aplicação na hipótese de super desvalorização do real frente ao dólar (STJ, REsp 1217057/TO, Terceira Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 19.4.2016).

13 Expressão em latim que pode ser traduzida, livremente, para “acordos devem ser mantidos”.

14 Conforme se depreende dos decretos editados pelos chefes do Executivo, nos diversos níveis da Federação, algumas atividades econômicas não estão impedidas de funcionamento no período da quarentena em caráter absoluto, mas apenas relativo.

15 Tem-se notícia de juiz que, no âmbito de tutela cautelar antecedente, suspendeu pagamento de aluguel mínimo em locação no âmbito de shopping center (processo nº 0709038-25.2020.8.07.0001, em curso perante a 25ª Vara Cível de Brasília, TJDFT).

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*Laíse Souza Cestari é mestre em Direito Civil pela FDUSP.

*Pedro Augusto de Jesus é advogado no Facury Advogados. Mestre em Direito Processual pela FDUSP.

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