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A contratualidade do acordo de colaboração premiada no pacote anticrime

Com a edição do pacote anticrime (lei 13.964/19), com vigência a partir de janeiro de 2020, a matéria voltou à tona, demonstrando, de forma inexorável, a aproximação entre os ramos do Direito acima mencionados

19/2/2020

Em outro ensaio anteriormente publicado falei sobre a aproximação entre o Direito Penal e o Direito Contratual, no artigo intitulado “Delação/colaboração premiada: breves considerações sobre a aproximação entre o Direito Contratual e o Direito Penal”, publicado em 19 de novembro de 2019.

Com a edição do pacote anticrime (lei 13.964/19), com vigência a partir de janeiro de 2020, a matéria voltou à tona, demonstrando, de forma inexorável, a aproximação entre os ramos do Direito acima mencionados.

Não resta dúvida da necessidade de conhecimento da matéria contratual para uma boa negociação e elaboração de um acordo de colaboração premiada válido e adequado.

Assim, com a edição do pacote anticrime, a lei 12.850/13 (Lei de Organizações Criminosas) passou a sofrer as alterações operadas, cujos artigos mais relevantes para o tema sob debate adiante serão comentados.

Diz a lei 13.964/19:

Art. 14. A Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, passa a vigorar com as seguintes alterações:

 “‘Seção I

Da Colaboração Premiada’

‘Art. 3º-A. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos.’

Negócio jurídico é termo do Direito Contratual, intimamente ligado aos atos volitivos contratuais. Nesse sentido a doutrina de Arnaldo Rizzardo:

Os variados modos pelos quais os Estados soberanamente constituídos e os indivíduos adquirem, resguardam, transferem, modificam ou extinguem direitos são negócios jurídicos do direito estrito.

Os contratos ocupam o primeiro lugar entre os negócios jurídicos e são, justamente, aqueles por meio dos quais os homens combinam os seus interesses, constituindo, modificando ou solvendo algum vínculo jurídico.1

Com base no que foi acima transcrito, não resta dúvida de que o acordo de colaboração premiada é um contrato, o que demonstra a aproximação entre o Direito Contratual e o Direito Penal.

Como contrato o acordo de colaboração deve obedecer aos ditames aplicáveis ao instituto jurídico civil, embora a persecução seja um instituto de Direito Penal.

Diz a lei:

Art. 3º-B. O recebimento da proposta para formalização de acordo de colaboração demarca o início das negociações e constitui também marco de confidencialidade, configurando violação de sigilo e quebra da confiança e da boa-fé a divulgação de tais tratativas iniciais ou de documento que as formalize, até o levantamento de sigilo por decisão judicial.

Os termos em destaque são eminentemente de Direito Contratual.

A proposta é o início da formação do vínculo contratual. A proposta, quando expedida, vincula o proponente a todos os seus termos, salvo as hipóteses previstas no art. 428 do CC.

Deve ser salientado que proposta difere de tratativa.

As tratativas são as negociações preliminares e, em tese, não geram, vinculação contratual, podendo gerar algumas responsabilidades, como no caso da lei, sigilo e confidencialidade.

Um ponto importante a ser observado é a obediência à boa-fé (Princípio da Boa-fé). Nesse caso não resta dúvida de que a norma fala de boa-fé objetiva.

Esse princípio, que atualmente é basilar no Direito Contratual, pressupõe que as partes devem agir de forma clara e autêntica, proba e honesta, de modo a que o contrato seja dotado de validade e credibilidade.

Subterfúgios são repelidos por esse princípio.

Em crimes ligados a agentes políticos, por exemplo, não raras vezes para fins de acordos de colaboração exige-se que o político renuncie ao mandato eletivo para que seja viabilizado o acordo, o que demonstra a total ausência de boa-fé do proponente do acordo.

Art. 3º-C. A proposta de colaboração premiada deve estar instruída com procuração do interessado com poderes específicos para iniciar o procedimento de colaboração e suas tratativas, ou firmada pessoalmente pela parte que pretende a colaboração e seu advogado ou defensor público.

§ 1º Nenhuma tratativa sobre colaboração premiada deve ser realizada sem a presença de advogado constituído ou defensor público.

Exige-se o mandato no acordo de colaboração premiada, o que demonstra, mais uma vez, a ligação entre o Direito Contratual e o Direito Penal.

Poderes específicos são aqueles que extrapolam os atos de mera administração ordinária do interesse. Se o acordo for firmado com a procuração sem poderes gera, em tese, não vinculação do mandante aos termos do acordo.

Mas em se tratando de Direito Penal, a falta de poderes específicos na procuração, salvo melhor juízo, pode ser suprida pela manifestação de vontade do colaborador ratificando expressamente os termos da colaboração.

Portanto, embora a lei utilize a expressão deve, a ausência de procuração com poderes especiais não terá o condão de macular o acordo de delação.

Salienta-se o fato de se exigir a presença do advogado para a realização do acordo, de modo que todos os profissionais que atuam nessa seara devem estar atentos aos estudos do Direito Contratual.

§ 4º Incumbe à defesa instruir a proposta de colaboração e os anexos com os fatos adequadamente descritos, com todas as suas circunstâncias, indicando as provas e os elementos de corroboração.

Fato estranho ao direito dos contratos é essa previsão de necessidade de instrução do contrato. Primeiramente porque há fatos que não possuem prova documental para a sua demonstração. Segundo porque a instrução e a formação de provas dos fatos supostamente criminosos compete à acusação.

Ao que tudo indica se trata de uma inversão do ônus da prova, mas em desfavor da parte mais fraca, o que, em tese, contraria as normas contratuais atuais.

§ 7º Realizado o acordo na forma do § 6º deste artigo, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação:

I - regularidade e legalidade;

II - adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§ 4º e 5º deste artigo, sendo nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do art. 33 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo § 5º deste artigo;

III - adequação dos resultados da colaboração aos resultados mínimos exigidos nos incisos I, II, III, IV e V do caput deste artigo;

IV - voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares.

§ 7º-A O juiz ou o tribunal deve proceder à análise fundamentada do mérito da denúncia, do perdão judicial e das primeiras etapas de aplicação da pena, nos termos do CP e do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), antes de conceder os benefícios pactuados, exceto quando o acordo prever o não oferecimento da denúncia na forma dos §§ 4º e 4º-A deste artigo ou já tiver sido proferida sentença.

§ 7º-B. São nulas de pleno direito as previsões de renúncia ao direito de impugnar a decisão homologatória.

Essa passagem da lei trabalha com nulidades.

No âmbito penal, a nulidade decorre de vício processual pela não observância de exigências previstas em lei. Essas exigências têm como finalidade manter a formalidade no processo penal e parear as partes, zelando pelos princípios e formas corretas de se desenvolver o processo.

É a sanção, uma pena ou recompensa com que se tenta garantir a execução da lei, aplicável ao processo, ou ato processual, realizado com o descumprimento da forma devida, ou proibida pela lei processual.

Previstas nos artigos 563 a 573, sua existência provém da necessidade que a movimentação processual possa transcorrer em concordância com as normas exigidas para o ato processual, pois elas garantem às partes de um processo apto ou regular, trazer à tona a verdade substancial. A nulidade pode invalidar atos ou até processos, de forma parcial ou integral.

No caso da lei em comento, a nulidade, ao que parece, macula o acordo de colaboração por dizer respeito ao objeto do negócio, não permitindo negociação acerca dos regimes de cumprimento de sanção e progressão de regime.

Como todo contrato o acordo pressupõe enlace de vontades livre (voluntariedade), caso contrário seu conteúdo se sujeitará a anulação, nos termos da lei civil.

Renúncias não são bem vistas, conforme proibição do art. 424 do CC: “Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza do negócio.”.

§ 17. O acordo homologado poderá ser rescindido em caso de omissão dolosa sobre os fatos objeto da colaboração.

Como forma de encerramento do acordo a lei usou a expressão rescisão, sendo uma faculdade a sua extinção.

Para que ocorra a extinção exige-se o dolo para a sua ocorrência. O dolo seria a intenção deliberada de omitir fatos que deveriam fazer parte da colaboração.

Omissões culposas (não intencionais) não tem o condão de extinguir o acordo de delação, salvo melhor juízo.

Portanto, sob o ponto de vista dos contratos, os pontos acima são os principais de aproximação entre o Direito Contratual e o Direito Penal no pacote anticrime, no que toca ao assunto colaboração premiada, demonstrando, de maneira indubitável, a ligação multidisciplinar entre o cível e o penal.

___________________________________________________________________________

Rizzardo, Arnaldo. Contratos, 16ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2017.

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*Alneir Fernando S. Maia é advogado sócio do Escritório ANDRADA Sociedade de Advogados; Mestre em Direito pela UFMG; professor na Universidade FUMEC; professor de Direito Penal da Escola Superior de Advocacia da OAB/MG; membro da Comissão de Direito Penal Econômico da OAB/MG.

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