Migalhas de Peso

Uma causa excludente de ilicitude na Lei Maria da Penha

E, aqui, fica a pergunta: há crime quando o descumprimento das medidas protetivas se dá por ato voluntário da vítima?

24/1/2020

É necessária a inserção de um parágrafo 4º ao artigo 24-A da Lei Maria da Penha. O caput do artigo supracitado trata do crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas na lei 11.340/06 é crime, cuja pena é de detenção de 3 meses a 2 anos.

No entanto, não raras vezes, após o deferimento das medidas protetivas, a vítima e o agressor restabelecem contato, reafirmam a relação, voltam a morar juntos. Os menos imprudentes têm o cuidado de, após descumprirem a decisão judicial, solicitar a designação de audiência para revogação das medidas. E, claro, isso é feito. Já, os mais imprudentes permanecem com as medidas estipuladas no mundo do dever ser e as descumprem reiteradamente no mundo do ser.

E, aqui, fica a pergunta: há crime quando o descumprimento das medidas protetivas se dá por ato voluntário da vítima?

Os nossos Tribunais entendem que sim. O descumprimento das medidas por vontade das partes não desnatura a infração. A vontade das partes não revoga decisão judicial. Porém, se aplicado a todas as situações tal entendimento, tem-se a mecanização da justiça penal e a violação de sua finalidade.

Defendo a inclusão de causa excludente de ilicitude ao artigo 24-A, por meio de um parágrafo 4º, nos seguintes termos:

§4º Não há crime quando o descumprimento da decisão que deferiu as medidas protetivas de afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida e de proibição de aproximação e de contato com a ofendida se dá por iniciativa da vítima, sendo esta plenamente capaz.

Perceba: não estão todas as medidas protetivas abarcadas pelo parágrafo, mas apenas as que afastam o ofensor do lar e que proíbem seu contato e aproximação da vítima.

O descumprimento de medidas como a suspensão da posse ou a restrição do porte de armas continua caracterizando crime. Ainda, em caso de concessão de medida de restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, a retomada do contato com a ofendida não pode implicar retorno ao lar, caso isso signifique violação à medida citada, sob pena de crime.

O que se pretende aqui não é desproteger a vítima, mas evitar uma intervenção absolutamente desnecessária do Direito Penal, quando o bem jurídico tutelado pela norma, em primeira ordem, não foi violado.

A fim de exemplificar, peço licença para descrever caso por mim julgado, já transitado em julgado e, obviamente, sem a exposição das partes.

Em dia corriqueiro, chego à audiência em Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Começo a ler a denúncia: “Fulano de Tal entrou e permaneceu contra a vontade de sua ex-companheira, na residência desta, desde 05 de agosto de 2018 até 25 de dezembro de 2018. Assim, Fulano de Tal praticou os crimes de descumprimento de medida protetiva e violação de domicílio”.

Finda a leitura, pensei em acionar o Guinness World Records. Estávamos diante, provavelmente, da maior violação de domicílio da história. Alguém permaneceu na casa de outrem, contra a sua vontade, por quase 5 meses. Mas, antes de acionar os responsáveis pela edição anual de recordes, fomos ouvir a vítima.

O que a vítima nos explicou? Logo após a concessão das medidas, eles reataram e voltaram a morar juntos. Passados 4 meses e 20 dias, após a ceia do natal, o casal discutiu. Não houve violência, não houve ameaça, não houve injúria. Houve uma discussão entre eles. Ela, nervosa, acionou a polícia militar e comunicou o descumprimento da medida. Ele foi preso em flagrante: violação de domicílio e descumprimento de medidas protetivas.

A razão maior da Lei Maria da Penha é a proteção da Mulher, é “coibir a violência doméstica e familiar contra ela”, em todas as suas formas. Se a proteção da mulher não foi colocada em risco e ela deu início ao restabelecimento do contato com o suposto ofensor, mesmo que, depois, o contato tenha se perpetuado por condutas de ambos, não há crime. Não há ofensa ao bem jurídico. O direito penal existe para proteger bem considerados essenciais à sociedade, e não para punir automaticamente quem preenche os elementos de um tipo incriminador.

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*Samer Agi é juiz de direito substituto do TJ/DF, mestrando em ciências jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa, autor do livro “Comentários à Nova Lei de Abuso de Autoridade” e coautor de “Os 23 pontos da sentença penal”, ambos pela editora CP Iuris.

 

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