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O STJ e a criminalização da inadimplência tributária do ICMS próprio

A virada jurisprudencial do STJ sobre a criminalização da inadimplência do ICMS próprio não condiz com a sistemática de apuração desse tributo, o que afasta qualquer hipótese de apropriação indébita, tal como pretendido pela interpretação aplicada.

28/5/2019

O perigo mora nos detalhes. 

Antes de 2018 o STJ entendia que a inadimplência do ICMS próprio se caracterizava apenas como uma irregularidade tributária, e não um ilícito criminal. A Corte da Cidadania mudou seu entendimento (HC 399.109, julgado em 22/8/18), passando a criminalizar a inadimplência do ICMS próprio, tecnicamente conhecido como regime de apuração normal

Será que a novel jurisprudência do STJ está correta? Este é o ponto a ser analisado neste trabalho. 

Deve-se registrar que o relator do HC 399.109, ministro Rogério Schietti Cruz, em seu voto, destacou a existência de divergência entre a 5ª e a 6ª Turmas, ambas compondo a 3ª Seção do STJ, âmbito em que foi realizado o julgamento sob análise. Apontou que a 6ª Turma fazia uma distinção entre o ICMS substituição tributária e o ICMS próprio, criminalizando a inadimplência apenas do primeiro. E relatou que a 5ª Turma criminalizava a inadimplência nas duas hipóteses, desde que comprovado o dolo. 

Exatamente por isso é que, de forma louvável, decidiu levar o caso ao plenário da 3ª Seção, visando a uniformizar a jurisprudência entre as duas turmas.

A norma de regência da conduta é o art. 2º, inciso II, da lei federal 8.137/90, que estabelece constituir crime contra a ordem tributária

“deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.

No âmbito tributário há uma nítida diferença entre ICMS próprio e ICMS por substituição.

O Supremo Tribunal Federal STF, no RE 999.425, relatado pelo ministro Lewandowski e julgado com repercussão geral em 2/3/17, reafirmou sua jurisprudência no sentido de que tal norma penal incriminadora é constitucional, deixando apenas a análise da estrutura típica, referente à conduta praticada pelo contribuinte inadimplente. 

No âmbito tributário há uma nítida diferença entre ICMS próprio e ICMS por substituição, que é o detalhe, que escapou ao STJ na apreciação do caso.

O ICMS próprio tem seu amparo constitucional no art. 155, e é regulado nacionalmente pela LC 87/96. O aspecto material de sua incidência é a circulação de mercadorias, além de certos serviços específicos, sendo que cada Estado possui legislação própria para impor sua cobrança. 

O ICMS próprio é não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas operações anteriores pelo mesmo ou outro Estado (art. 19, LC 87/96). Aqui reside um aspecto importantíssimo para distinguir as duas sistemáticas de tributação, pois, nem todas as operações com ICMS próprio, destacado nas notas fiscais, representam dívidas fiscais. Isto porque a dívida não surge com uma única operação comercial, mas ao final do período de apuração do tributo, fruto de uma sucessão de operações comerciais. 

Um exemplo pode ajudar a compreender: nos meses de outubro e novembro é usual que os comerciantes comprem mais mercadorias do que vendam, pois visam a reforçar seus estoques para as vendas natalinas. Logo, adquirindo mais do que vendem, acumulam créditos e não há ICMS próprio a pagar nesses meses. Assim, mesmo que nas notas fiscais de compra venha destacado o ICMS, é comum ocorrer de nada ser devido ao final desses dois meses – o que é revertido em dezembro. Exatamente por isso não se pode depreender ipso facto a existência de dívidas fiscais após cada operação comercial. 

Isso aponta para o fato de que, embora o sujeito passivo seja o contribuinte, e o ICMS próprio esteja embutido no preço da mercadoria, aquele montante não pertence ao Fisco estadual. Assim sendo, não se há de falar de apropriação indébita, pois o comerciante não está se apropriando do que é do Fisco, mas daquilo que, apenas potencialmente pode vir a ser do Fisco, que será apurado em razão da apuração nos livros fiscais, decorrentes do créditos e débitos do ICMS próprio estabelecido. Logo, retornando ao tipo penal descrito na norma, nada existe “descontado ou cobrado [...] que deveria recolher aos cofres públicos”. 

Levemos esse raciocínio ao extremo, para ver sua pertinência. Suponhamos um comerciante arrojado, que decida fazer um estoque natalino de refrigeradores no Polo Norte (supondo, claro, a sistemática de tributação brasileira por lá). Tudo indica que passaria dezembro e não teria conseguido desovar seus estoques – consequentemente o Fisco nada teria a receber, e o arrojo do comerciante certamente o levaria à falência. Na apuração de seus livros fiscais, ele teria créditos contra o Fisco, e não débitos. 

A situação é distinta no ICMS cobrado pelo regime de substituição tributária, conhecido no jargão por ICMS-ST. Trata-se do mesmo tributo, apenas o regime de cobrança é modificado. O amparo constitucional está no art. 150, § 7º, e é também regulado nacionalmente pela lei complementar 87/96. 

A grande diferença entre os dois sistemas está em que a lei (em caso de operações internas) ou o convênio (nas operações interestaduais – art. 9º, LC 87/96) preveem uma espécie de cobrança antecipada do ICMS em algum momento de sua cadeia econômica, como substituição da incidência das etapas posteriores. Isso existe para facilitar a arrecadação tributária. 

Um bom exemplo encontra-se no setor de combustíveis. O ICMS é devido no momento em que se adquire combustível em um posto de gasolina, afinal, o adquirente do combustível é o sujeito passivo da operação comercial. Contudo, é mais difícil fiscalizar milhares de postos de gasolina espalhados ao longo do território nacional do que concentrar a fiscalização nas poucas refinarias existentes. Assim, modifica-se a regra de tributação, antecipando-se a cobrança do tributo que seria devida ao final de uma cadeia econômica, para o ponto inicial, isto é, no “produtor”, no caso, a refinaria. Toda a operação de débitos e créditos é descartada, através do regime de substituição tributária, para antecipar a cobrança. 

Nesta hipótese, aquele agente econômico que faz o papel de antecipar a arrecadação do ICMS tem em suas mãos valores devidos ao Fisco, pois não existe a sistemática de créditos e débitos, usual no regime de apuração normal. Logo, poder-se-ia estar defronte de uma apropriação indébita no caso de inadimplência daquele ICMS-ST, pois haveria tributo “descontado ou cobrado [...] que deveria recolher aos cofres públicos”.

Todavia, mesmo esta hipótese deve ser relativizada após a decisão do STF no RE 593.894, com repercussão geral, relatado pelo ministro Fachin e julgado em 19/10/16, que garantiu aos contribuintes substituídos a possibilidade de haver restituição do ICMS pago a maior pelo consumidor  final, o que torna impreciso o montante antecipadamente recolhido.

Um exemplo pode permitir melhor compreender a situação: uma distribuidora de medicamentos teve seu estoque completamente destruído por um incêndio, tendo sido integralmente pago o ICMS pelo regime de substituição tributária. A empresa se tornou credora do Fisco, e não sua devedora, pois o fato gerador presumido não se realizou. 

Observe-se que nada muda no que acima foi relatado com a decisão proferida pelo STF no RE 574.706 com repercussão geral, relatado pela ministra Cármen Lúcia e julgado em 9/3/17, afastando o ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, que foi mencionado pelo STJ no julgamento do HC 399.109. Foi afirmado que o tributo estadual pertence ao Fisco, motivo pelo qual os tributos federais não podem sobre ele incidir. É verdade, considerando, contudo, que o ICMS próprio indica um montante que potencialmente pode vir a ser do Fisco estadual, porém dele só se tornará após a apuração, se surgirem valores a pagar.

O fato de uma base de cálculo não poder se sobrepor à outra em nada modifica a exposição acima efetuada. 

Todos os detalhes acima expostos apontam para o perigo da modificação jurisprudencial realizada pelo STJ no HC 399.109, firmado pela maioria da 3ª seção do STJ, que julgou o não recolhimento de ICMS em operações próprias devidamente declaradas ao Fisco como crime previsto no art. 2º, inciso II, da lei 8.137/90.

O voto do ministro relator fundou-se na importância do bem jurídico protegido pela norma penal – a ordem tributária –, bem como nas consequências econômico-sociais especialmente negativas de sua ofensa para interpretar o alcance de sentido dos verbos “descontar” e “cobrar” de forma ampla, apta a alcançar casos diversos dos de substituição tributária. Assim, sob o argumento de que o termo “cobrado” não encontraria identidade com o técnico-tributário e tampouco seria equivalente ao conteúdo estrito da rubrica “apropriação indébita”, poderia ser associado às relações tributárias havidas com tributos indiretos, “mesmo aqueles realizados em operações próprias, visto que o contribuinte de direito, ao reter o valor do imposto ou contribuição devidos, repassa o encargo para o adquirente do produto”.1 E se o autor do fato agiu ou não com a intenção de ofender o bem jurídico protegido, conforme se decidiu, seria questão estranha ao julgamento do HC, a ser identificada durante a instrução processual.

Ao proibir e punir determinados comportamentos, o Direito Penal expressa-se por meio de normas.

 

Não se pretende questionar a importância do bem jurídico tutelado pela lei 8.137/90 para a consecução de políticas estatais voltadas à materialização de direitos fundamentais e ao desenvolvimento econômico e social. De outro lado, não se trata de discutir se houve ou não dolo na conduta praticada pelo agente. Na verdade, a discussão do caso há de centrar-se na verificação da tipicidade objetiva, estando vinculada ao complexo tema dos limites da leitura hermenêutica dos tipos penais em correlação com os regimes tributários de apuração do ICMS.

Em palavras mais simples, a questão central reside em estabelecer quais sejam as fronteiras de interpretação dos elementos normativos típicos “tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação”, contidos no art. 2º, inciso II, da lei 8.137/90, no contexto de um Estado Democrático de Direito.

Ao proibir e punir determinados comportamentos, o Direito Penal expressa-se por meio de normas, correspondendo à lei sua fonte imediata de produção, em obediência ao princípio da legalidade. A fundamentação normativa do sistema jurídico leva, então, à necessidade de análise dos critérios determinantes para a desvaloração dos comportamentos incriminados e, portanto, da racionalidade valorativa dos enunciados jurídico-penais concretos, sob pena de se converter o Direito Penal em puro fenômeno de poder. 

Afastando-se, porém, do romantismo iluminista, em que se acreditava, a partir de um positivismo legalista, ser possível definir toda a realidade por meio da narrativa clara de uma conduta, foi-se gradualmente tomando consciência de que a busca de uma descrição absoluta e inequívoca é insensata, porque impossível. Justifica-se, então, a presença dos denominados elementos normativos do tipo, tais como “tributo descontado” ou “tributo cobrado”, demandando especial valoração pelo intérprete.

Diante da denominada acessoriedade administrativa a caracterizar de forma crescente o Direito Penal, é bem verdade que ocorre uma especial “pulverização da lei”, que resta menos taxativa e mais dependente de complementação por outras normas. Nesse contexto, os juízes passam a desempenhar um papel central na própria definição do conteúdo dos tipos penais, projetando sua atuação em um espaço cada vez maior de discricionariedade, o que leva à erupção de uma dimensão judicial do Direito Penal e, assim, ao questionamento sobre a própria divisão de poderes no âmbito do Estado.

Em âmbito penal, a substituição de um Direito legal por um Direito judicial revela-se especialmente perigosa, na medida em que, por meio de uma atividade interpretativa excessivamente ampla e fundada em critérios pragmáticos e/ou subjetivos, podem ser inseridas na zona de proibição normativa hipóteses concretas que não correspondem ao seu enunciado original, sob a justificativa de uma intervenção estatal pretensamente mais eficaz, ferindo de morte toda a sistemática penal pós-iluminista.

Há de se questionar como é possível transformar-se, por meio de interpretação, a inadimplência de operação tributária sob o regime de apuração normal do ICMS em um crime. Seguramente a decisão judicial fundou-se em uma interpretação econômica, que é insuficiente para a identificação do tipo penal. Poder-se-ia até discutir sua adequação tributária, embora com poucos adeptos; porém é inegável a inadequação interpretativa penal na presente hipótese. 

A solução objetiva da questão está condicionada ao exame de critérios de deontologia hermenêutica, voltados a orientar e limitar a discricionariedade judicial.

Um primeiro critério fundamental de limitação à interpretação dos elementos normativos do tipo reside no próprio princípio da legalidade. De fato, no âmbito penal, a gravidade das sanções exige que os textos legais estabeleçam de forma precisa e clara os limites de liberdade de atuação dos indivíduos, sendo os limites da estrutura linguística do tipo penal insuperáveis e prevalentes sobre a ideia de flexibilidade das normas em relação aos fins sociais.4 E os sentidos literais possíveis da norma penal são limitados não só por meio da linguagem, como também por seu conteúdo técnico-jurídico penal ou extrapenal. 

Assim, em observância ao princípio da legalidade, a interpretação de elementos normativos do tipo penal não deve ir além do âmbito de referência jurídico a que aqueles remetem, o que, aliás, caso fosse permitido, constituiria uma sobreposição indevida da intervenção penal sobre outros mecanismos de controle social. Portanto, a vinculação do intérprete penal ao sentido jurídico original do elemento deve ser respeitada, não sendo possível que, na aplicação da norma penal, o julgador adote conceitos mais amplos do que aqueles reconhecidos pelo próprio campo jurídico extrapenal a que o tipo se refere. 

Retomando o exame da decisão, no contexto de nítida acessoriedade administrativa a caracterizar a lei 8.137/90, a interpretação dos elementos normativos dos respectivos tipos penais deverá logicamente ser buscada no âmbito do Direito Tributário. Assim, o tipo penal do art. 2º, inciso II, do mencionado diploma legal não pode ser lido sem o necessário conhecimento da matéria tributária. 

Verifica-se, então, in casu, que não há apropriação indébita nas operações com ICMS próprio, semelhante ao que ocorre nas operações envolvendo contribuições previdenciárias. E nada é descontado do contribuinte de fato, embora haja o fenômeno da repercussão econômica dos tributos indiretos, o que é outra prosa. Quanto à expressão cobrado, também deve-se ter muita cautela, em face da efetiva conta-corrente mensal que se identifica no ICMS próprio, pois tais registros podem estar a débito no final de um mês, porém, no outro, estar a crédito, sendo que nada deve ser pago nesta hipótese. 

Com efeito, tratando-se de ICMS devido em operações próprias, a ocorrência do fato imponível apenas cria para o contribuinte (vendedor) uma obrigação pecuniária de entregar certa quantia sua ao Estado, sem tornar alheia tal quantia. E mesmo o repasse do ônus econômico do tributo ao comprador – que, aliás, é bastante comum também em relação a outros tributos embutidos no preço dos produtos – não transforma esse último em contribuinte. Logo, a sistemática do ICMS próprio é avessa ao tipo penal pretendido e utilizado pelo STJ no caso em apreço. 

O segundo critério de deontologia hermenêutica inescapável é a orientação conforme à Constituição, que traz importantes valorações conforme o pressuposto político-social democrático. Na hipótese aqui examinada, impossível deixar de observar a vedação constitucional da prisão por dívida (Constituição Federal, art. 5º, inciso LXVII) como critério fundamental de orientação da interpretação da norma penal. Nesse sentido, aliás, ao se posicionar recentemente sobre a constitucionalidade das normas incriminadoras contidas na lei 8.137/90, no âmbito do já mencionado ARE 999.425, o STF concluiu acertadamente que as condutas tipificadas naquele diploma não se referem simplesmente ao inadimplemento tributário, mas sim aos atos praticados pelo contribuinte com o fim de sonegar o tributo devido, consubstanciados em fraude, omissão, prestação de informações falsas às autoridades fazendárias e outros ardis.5

Não é função de um Direito Penal que se pretenda democrático garantir o adimplemento de dívidas de qualquer natureza.

 

Não é legítimo, portanto, punir a inadimplência do contribuinte, ou seja, apenas a dívida com o Fisco, como pretende o STJ, haja vista não ser possível encontrar tal sentido na lei penal, conforme acima exposto. 

Finalmente, deve acrescentar-se um filtro teleológico específico de limitação da interpretação dos elementos normativos do tipo a partir dos princípios fundamentais que regem o Direito Penal, de forma a evitar que a interpretação constitucional leve a uma expansão punitiva, sob o argumento da pretensa defesa de interesses sociais ou do “bem comum”.

Em razão do enorme custo à liberdade que representa, a intervenção penal deve, em um Estado Democrático de Direito, limitar-se ao seu papel subsidiário, evitando a pretensão de assumir uma função promocional de desenvolvimento social que não lhe compete e nem mesmo lhe seria possível concretamente desempenhar. A arrecadação tributária, como mecanismo fundamental de garantia dos cidadãos nas mais diversas esferas sociais, há de ser regulada pela lei, e atualmente há instrumentos de controle formal suficientes para tal fim. 

Não é função de um Direito Penal que se pretenda democrático garantir o adimplemento de dívidas de qualquer natureza, muito menos incentivar os indivíduos a serem bons pagadores. Sua missão está em evitar, sob ameaça de pena, a prática de condutas especialmente desvaloradas, porque voltadas a burlar a ordem tributária, o que não é o caso de meras dívidas com o Fisco. Esse é o único sentido possível de interpretação dos termos “tributo cobrado” e “tributo descontado”. Esse é o limite insuperável da política criminal, que não pode se converter em mera política arrecadatória no âmbito tributário, mesmo sob a pretensa justificativa de busca de atenuação dos problemas econômicos do Estado. Desse modo, não há espaço de discricionariedade possível ao legislador, e menos ainda ao aplicador do Direito, para a criminalização de situações concretas já bem reguladas por outros ramos jurídicos potencialmente eficazes e menos drásticos, sob pena de configurar uma política criminal disfuncional e irracional. 

Na verdade, o movimento político-criminal arrecadatório não é novo e está sempre a tentar se estabelecer em épocas de crise econômica. Ocorre que, para além de sua ilegitimidade, a criminalização da mera inadimplência tributária potencializa o problema, aumentando a crise; afinal, nessa hipótese não se deixa de pagar tributos porque se quer, mas porque não se consegue fazê-lo, mesmo sob o risco das pesadas sanções monetárias estabelecidas, algumas das quais bastante superiores a 200% do valor do tributo devido. É de todos sabido que existe uma espécie de gradação empresarial no pagamento de suas dívidas, ficando sempre em primeiro lugar o capital humano, que deve ser valorizado e pago pontualmente. Porém, em um cenário de criminalização da mera inadimplência tributária, ao se colocar no lugar do empresário, indaga-se qual pagamento qualquer indivíduo privilegiaria: o do Fisco ou o dos trabalhadores? Não há muita dúvida de que a opção não seria a segunda, deixando claro que a criminalização da inadimplência tributária apenas potencializará a crise do desemprego, aumentando os 13 milhões de pessoas que já se encontram nessa situação. 

Há mais de um século, já afirmava Franz von Liszt que o Direito Penal, entendido como Direito positivado, constitui a “barreira insuperável da política criminal” (LISZT, 1905, p. 80), deixando claro que a primeira tarefa da política criminal é configurar um Direito Penal altamente formalizado, de modo a impedir qualquer reação visceral ou conjuntural de caráter penal, que não seja a prevista previamente pelo legislador na lei penal como expressão da vontade geral. 

Se o Direito – assim como também o Direito Penal – tem estreito vínculo com a política, não é possível nem tolerável que esta possa suplantá-lo em seus limites principiológicos e técnicos, sob pena de provocar insegurança jurídica e, sobretudo, injustiça nos casos concretos. O limite à intervenção punitiva do Estado será sempre a lei, que deve ser interpretada à luz dos princípios penais fundamentais no contexto do Estado Democrático.  

Enfim, a atribuição de responsabilidade penal ao indivíduo diante da prática de uma conduta delitiva não pode perfazer-se a partir da mera decisão argumentativa do julgador, tampouco se funda em conceitos ou deveres jurídicos abertos e abstratos. O atraso ou descumprimento da obrigação de recolher tributo próprio que já foi regularmente declarado pelo contribuinte constitui inadimplência fiscal que configura ilícito administrativo passível de sanções pecuniárias e cobrável pelos meios cabíveis. E é só. Considerar de outra maneira, expandindo a intervenção penal, abre portas, de forma preocupante, a uma intervenção penal sem legitimidade material, fundada apenas na ameaça de pena como instrumento político de poder do Estado. E aí a passagem de qualquer um à condição de criminoso é só uma questão de tempo. 

Em síntese, a virada jurisprudencial do STJ sobre a criminalização da inadimplência do ICMS próprio não condiz com a sistemática de apuração desse tributo, o que afasta qualquer hipótese de apropriação indébita, tal como pretendido pela interpretação aplicada. O STJ não esteve atento aos perigos que circundavam os detalhes dessa interpretação e, assim, acabou por cair em uma cilada hermenêutica, igualando situações completamente desiguais, e laborando em erro, que se espera ver corrigido. 

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1 Cf. STJ, 3ª Seção, HC 399.109, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. em 22/8/18. Voto do relator disponível aqui. Acesso em: 24 ago. 2018.

2 No mesmo sentido, v. SILVA SÁNCHEZ, 2008, p. 205-206.

3 Sobre os limites de interpretação dos elementos normativos do tipo, v. BECHARA, 2018. 

4 Cf. VIOLA; ZACCARIA, 2007, p. 287-293.

5 STF, ARE 999425, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 2/3/17.

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BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Valor, norma e injusto penal: considerações sobre os elementos normativos do tipo objetivo no Direito Penal contemporâneo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018.

LISZT, Franz von. Über den Einfluss der soziologischen und antropologischen Forschungen auf die Grundbegriffe des Strafrechts. In: Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge. v. II. Berlin: J. Guttentag, 1905.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La interpretación de las leyes y la cultura de los juristas. In: MONTEALEGRE LYNETT, Eduardo; CARO JOHN, José Antonio (Ed.). El sistema penal normativista en el mundo contemporáneo. Libro homenaje al profesor Günther Jakobs en su 70 aniversario. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2008. 

VIOLA, Francesco; ZACCARIA, Giuseppe. Derecho e interpretación: elementos de teoría hermenéutica del derecho. Tradução de Ana Cebeira. Madrid: Dykinson, 2007.

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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de abril de 2019.

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*Fernando Facury Scaff é professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP, professor titular de Direito Financeiro e Tributário da UFPA. advogado.

*Ana Elisa Bechara é professora titular de Direito Penal da USP.

 

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