Em 2015 foi promulgada a lei 13.146, Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), que alterou alguns dispositivos do CC, especialmente os artigos 3º e 4º, retirando da lista dos incapazes as pessoas com deficiência.
O EPD trouxe muitos problemas, pois não forma um sistema coerente com o CC e o CPC. Por essa razão, a tarefa de qualquer juiz se mostra ingrata ao apreciar essas questões de deficiência, curatela, interdição etc.
Prova de que as contradições ainda estão longe de se aclarar é o recente acórdão da 3ª turma de Direito Privado do TJ/SP. Vamos ao caso.
Na cidade de Guarujá, Estado de São Paulo, foi proposta ação de interdição em face de uma pessoa com deficiência.
Em primeira instância, após laudo pericial de psiquiatra que diagnosticou a pessoa com "retardo mental severo", a juíza reconheceu sua incapacidade absoluta e lhe indicou curador.
A pessoa com deficiência, devidamente representada, recorreu da sentença sob o argumento de que "se ficar comprovada a necessidade de definição da curatela, ela deve ser limitada a atos de natureza patrimonial e negocial específicos, bem como a incapacidade eventualmente declarada deve ser apenas relativa."
O TJ/SP reformou parcialmente a sentença para reconhecer que, embora a interdição tenha sido adequada, não poderia a sentença de 1º grau reconhecer a incapacidade absoluta, sendo "admissível tão somente a decretação de incapacidade relativa".
Há, pois, uma grave contradição no acórdão. Em um momento, o acórdão do Tribunal afirma que, caso se reconheça a incapacidade absoluta, "estar-se-ia negando completa vigência ao disposto nos artigos 3º e 4º do CC, que, diante da modificação legislativa promovida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência [...] passaram a restringir a incapacidade absoluta a uma única hipótese: as pessoas menores de 16 anos." Entendeu-se, assim, que o dispositivo do art. 3º é taxativo – numerus clausus – e que sua interpretação deve ser restritiva, não aceitando outras hipóteses de incapacidade absoluta.
Em outro momento, os magistrados consideraram a pessoa com deficiência como relativamente incapaz. O interessante é que, assim como o art. 3º não menciona a pessoa com deficiência como absolutamente incapaz, o art. 4º também não a contempla como relativamente incapaz, nem o EPD. No entanto, o acórdão a coloca neste rol, fazendo uma interpretação ampliativa do art. 4º, que não faz menção alguma à pessoa com deficiência.
Por que o art. 3º não aceita outras hipóteses de incapacidade absoluta, mas o art. 4º aceitaria outras hipóteses de incapacidade relativa, como a da pessoa com deficiência, que não consta expressamente de sua listagem?
A saída foi dizer que a pessoa com deficiência pode se encaixar no inciso III do art. 4º, que expressa serem relativamente incapazes: "aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”. O Tribunal colocou a pessoa com deficiência como relativamente incapaz porque ela não pode exprimir a sua vontade. Mas será este o caso da pessoa com deficiência? Ela não pode exprimir a sua vontade?
Se não pode exprimir a sua vontade, é de se estranhar o fato de que essa pessoa com deficiência poderá emitir sua vontade validamente em atos existenciais, posto que, como relata o acórdão, a interdição dessa pessoa preserva "a esfera existencial ao livre domínio da pessoa".
Além disso, o EPD é expresso em estabelecer que a "deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa" (art. 6º), o que ainda é reafirmado nos arts. 83 e 84.
Um último questionamento sobre o julgado: quais os limites da curatela que foi deferida pelo Tribunal?
Como estabelece o art. 1.772 do CC: "O juiz determinará, segundo as potencialidades da pessoa, os limites da curatela, circunscritos às restrições constantes do art. 1.782, e indicará curador." Essa delimitação da curatela é importante na sistemática do EPD, pois a curatela é medida excepcional e deve, sempre, ter seus limites expressamente indicados. Todavia, essa delimitação não foi realizada.
A decisão mostra o quanto é difícil a situação, como somos despreparados para mudanças de inserção social e como as próprias mudanças não são bem preparadas.
Decisão completa.
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*Bruno Torquato de Oliveira Naves é advogado, doutor e mestre em Direito pela PUC/MG. Professor do mestrado em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara. Professor nos Cursos de Graduação da PUC/MG e da Escola Superior Dom Helder Câmara. Coordenador do Curso de Especialização em Direito Urbanístico e Ambiental da PUC/MG Virtual. Pesquisador do CEBID.