Com o advento da lei 13.129/15, as arbitragens que tenham como parte o Poder Público passarão a observar algumas premissas básicas como condição de validade do procedimento de resolução de conflitos.
Uma das mais relevantes destas condições é a submissão da arbitragem ao princípio da publicidade, o que a priori poderia causar certa estranheza, na medida em que um dos grandes atrativos da arbitragem refere-se justamente à confidencialidade do seu procedimento. O presente artigo busca traçar sucintamente uma evolução da confidencialidade dentro da arbitragem, de modo a demonstrar que ainda que seja um ativo valioso para os procedimentos arbitrais em geral, há uma tendência generalizada de flexibilizar esta característica, sem que o instituto da arbitragem seja desqualificado. Desta maneira, pretende-se expor a maleabilidade do paradigma da confidencialidade em direção a uma maior transparência dos procedimentos arbitrais; e, a partir dessa transparência, o movimento para a publicidade em determinados casos.
Com efeito, é necessário avaliar a seguinte indagação: como conciliar a arbitragem com os princípios da publicidade e transparência? Para que seja possível responder, há uma pergunta subjacente e prejudicial: a confidencialidade faz parte da natureza do instituto da arbitragem? Se a resposta for positiva, então a arbitragem será inconciliável com a questão da publicidade, e, por corolário, inviável de ser utilizada pela Administração. Porém, como tentaremos demonstrar, a confidencialidade não possui esse caráter de essencialidade para a arbitragem.
Em relação aos conceitos de privacidade e confidencialidade e à distinção entre eles, percebe-se um maior status da confidencialidade, pois ela diz respeito ao sigilo dos fatos, dos documentos trazidos aos autos, das alegações das partes e das decisões do Tribunal Arbitral, especialmente da sentença. Já a privacidade denota um dever de não interferência no local em que a arbitragem é processada e em seus atos, por exemplo, nas audiências1. Daí o entendimento de que a publicidade estaria em oposição à confidencialidade, e não exatamente à privacidade. Já no que se refere à distinção entre publicidade e transparência, a última está relacionada à possibilidade de conhecimento de alguns aspectos dos procedimentos arbitrais por parte da comunidade arbitral e dos novos players que pretendam se inserir nesse mercado, enquanto à publicidade diz respeito ao conhecimento por parte da sociedade em geral de questões que sejam de relevante interesse social.
Sobre este último aspecto, enquanto no Judiciário prevalece a regra da publicidade dos litígios que lhe são submetidos, a Arbitragem conta com o sigilo do procedimento, de modo que a lide não prejudique a imagem de uma das partes envolvidas. Denota-se que a confidencialidade está mais relacionada à estruturação do procedimento pelas partes do que condição essencial do instituto. Ainda que considerado um ativo da arbitragem, a regra do sigilo passou a ser objeto de reflexão nas principais jurisdições do Commom Law2.
No Brasil, a Lei Geral de Arbitragem nada dispõe quanto ao regime da confidencialidade, porém consta uma referência explícita ao dever de discrição dos árbitros (art. 13,§ 6º)3. A legislação nacional consagrou a vontade das partes, na medida em que deixou à sua livre escolha as regras essenciais do procedimento. E por isso, a despeito das principais Câmaras de Arbitragem do país disporem em seus regimentos sobre a confidencialidade dos litígios, nada impede que o acordo das partes afaste esta previsão. Vale mencionar, por outro lado, que o Novo Código de Processo Civil4 pressupôs a possibilidade da confidencialidade para qualquer tipo de litígio arbitral, podendo ensejar segredo de justiça nos processos judicializados desde que comprovada a vontade pelo sigilo do procedimento.
Em franca evolução, todavia, uma tendência de modulação dos efeitos da confidencialidade na arbitragem em geral. As preocupações internacionais com a regra da confidencialidade identificaram uma necessidade de aprimoramento do próprio instituto da arbitragem, enquanto mecanismo litigioso de resolução de conflitos. Pugna-se por maior transparência em prol da comunidade arbitral, de modo a conferir maior accountability aos Tribunais Arbitrais e legitimidade nas decisões arbitrais concomitantemente à expansão do conhecimento dos efeitos da arbitragem, possibilitando, por consequência, a entrada de novos players. Na medida em que os objetivos da transparência vêm sendo paulatinamente absorvidos dentro desta nova agenda internacional5, são notados efeitos positivos nos procedimentos, ao promover maior confiança para as instituições arbitrais, árbitros e inclusive às partes que submeteriam o seu litígio a este procedimento. Mais do que isso, os alcances desta abertura do conteúdo das decisões ensejam a criação de banco de dados de sentenças arbitrais6. Questiona-se, todavia, se a função destes precedentes poderia vincular uma decisão. Certamente não é este o escopo, mas sim garantir mais segurança ao árbitro, de modo a orientá-lo no momento da decisão: portanto, uma finalidade “terapêutica”7.
No ICSID, identifica-se a previsão de mecanismos que integram as Additional Facility Rules and Arbitration (AF Rules). Por meio destas normas, as partes podem ajustar a transparência e a confidencialidade do procedimento “sob medida” (tailor-made). As partes podem concordar, por exemplo, em tornar públicos os documentos e as audiências. HAFNER- BURTON e STEINER-THRELKELD8 apontam que, a depender do tipo de investimento, existe uma relação entre maior e menor publicidade do procedimento. Na visão dos autores, as arbitragens envolvendo investimentos de curto prazo (franquia) tendem a possuir aspectos da publicidade mais acentuados, enquanto aquelas que envolvem investimentos de longo prazo (concessões), por suas características de custos e riscos, tendem a criar barreiras quanto à transparência acentuada dos procedimentos.
Todavia, quando a arbitragem tenha por objeto uma lide que envolva o Poder Público, seria este sentido de transparência suficiente? Com a recente reforma da Lei de Arbitragem, a publicidade passou a ser exigida nos procedimentos em que a Administração Pública figure como parte. Esta exigência decorre da própria Constituição, ao estabelecer o princípio da publicidade enquanto máxima a ser observada pelo Poder Público, mormente nos contratos administrativos que celebra. No âmbito infraconstitucional, a Lei de Acesso à Informação (lei 12.527/11) visa ampliar os instrumentos de controle social por meio da divulgação de dados referentes ao Poder Público, embora, ressalve o sigilo nos casos imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado (art. 23). Ainda em relação ao sigilo de dados do Poder Público, o decreto 7.724/12 permite que a divulgação de dados de estatais exploradoras de atividade econômica tenha menor abrangência, com o intuito de assegurar sua competitividade bem como os interesses de seus acionistas.
Fato é que apesar destes casos excepcionalíssimos, a publicidade tem a razão de ser em um mandamento de otimização para a Administração Pública, por dois motivos. O primeiro em decorrência de sua natureza enquanto gestora dos interesses e bens coletivos; o segundo, porque a publicidade é medida propulsora da transparência, e fator indispensável para a accountability dos agentes públicos9.
Em face do exposto, convém responder a inicial questão prejudicial, quanto à confidencialidade enquanto requisito fundamental da Arbitragem. Não parece que esta assertiva seja verdadeira. A questão do sigilo tem uma proximidade maior em relação à estruturação do procedimento, vez que consagra a autonomia da vontade das partes, pressuposto fundamental para convencionar a arbitragem. Vimos também, que a depender da natureza do litígio ou do seu objeto (como nos casos de arbitragem societária que envolva fato relevante), o sigilo pode ser relativizado, admitindo-se certo grau de publicidade.
Portanto, é possível sustentar que a arbitragem é conciliável com a transparência e publicidade, mas sem sombra de dúvida, isso acarretará problemas de ordem prática, considerando que o litígio engloba uma série de peculiaridades carreadas pelo Direito Público. Assim, diversos serão os questionamentos na fase de implementação da nova exigência de publicidade nos procedimentos arbitrais em que o Poder Público seja parte, por exemplo: (i) somente o laudo arbitral deverá ser público?; (ii) quais atos do procedimento arbitral se submeteriam a nova exigência da publicidade?; (iii) é possível a intervenção do Ministério Público?; (iv) os órgãos de controle da Adminsitração devem ser participados da arbitragem?; (v) é possível a intervenção de entidades associativas como amicus curiae?; (vi) as Câmaras Arbitrais também passam a observar o dever de publicidade?
Muitos são os desafios para se conhecer a extensão e a intensidade da publicidade nos processos arbitrais envolvendo o Poder Público. Há parâmetros internacionais, transnacionais e de direito estrangeiro que poderão servir de referência para o contexto brasileiro. Todavia, somente a prática e o dia-a-dia da arbitragem, no âmbito da reforma da Lei de Arbitragem, estarão aptas a solucionar estes questionamentos em nosso espaço doméstico, valendo registrar por ora que eventuais posicionamentos da comunidade arbitral, do Judiciário e da doutrina nacional deverão primar pela razoabilidade e prevenção de excessos, a fim de evitar a descaracterização do instituto da arbitragem. Sigamos em frente!
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1 Nas palavras de Selma Lemes: “A privacidade está relacionada com o local em que a arbitragem é processada e quanto à matéria discutida, no sentido de não permitir a presença de pessoas estranhas nas audiências. Por sua vez, o sigilo (confidencialidade), refere-se à sentença arbitral e aos documentos apresentados no processo, vinculando as pessoas que gerenciaram o processo, os árbitros, procuradores e até as partes” (LEMES, Selma. Arbitragem na Concessão de Serviços Públicos – Arbitrabilidade Objetiva. Confidencialidade ou Publicidade Processual? In RDM 134:148/163, abr./jun., 2004).
2 Neste sentido, Alejandro Garro, Professor da Columbia Law School, em entrevista concedida à CAMARB, observou quanto ao sigilo e a publicidade do processo judicial: “Uma corte inglesa sustentou que o dever implícito de sigilo se estende a todos os documentos envolvidos na arbitragem, enquanto uma corte americana defende que, a não ser que haja acordo das partes, nenhum sigilo envolve os documentos apresentados ou produzidos na arbitragem” (Boletim Informativo CAMARB, 1º trimestre de 2003).
3 Lei Federal nº 9.307/96, art. 13, § 6º: “No desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição”.
4 Lei Federal nº 13.105/2015, art. 189: “Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos: (...) IV - que versem sobre arbitragem, inclusive sobre cumprimento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo”.
5 Um exemplo dessa abertura foram os modelos de BITs norte-americano e Espanha-México, NAFTA e CAFTA. Como consequência, o ICSID também passou a incorporar algumas regras de transparência e de publicidade do procedimento arbitral, mas sempre conferindo às partes o poder de decidir a esse respeito.
6 Destaca-se a relevância de instituições internacionais como a Arbitrator Intelligence, liderada pela CEO Catherine Rogers, que teve a honra de detalhar melhor as atividades da instituição durante o Congresso Anual do CBAr, deste ano. A instituição tenta compilar informações sobre a atividade dos árbitros com o intuito de promover a transparência e aproximar o instituto da arbitragem da comunidade jurídica.
7 Nesse sentido, LEMES, Selma. Arbitragem na Concessão de Serviços Públicos – dArbitrabilidade Objetiva. Confidencialidade ou Publicidade Processual? In RDM 134:148/163, abr./jun., 2004.
8 HAFNER-BURTON, Emilie Marie; STEINERT-THRELKELD, Zachary; VICTOR, David G.Transparency of Investor-State Arbitration. Available at SSRN 2431522, 2014.
9 “Seguramente, o maior receio presente na discussão referente à utilização da arbitragem em relação a contratos administrativos é de ela servir como um meio de neutralizar os mecanismos de accountability aos quais deve democraticamente estar submetida toda a ação do Poder Público. Imagina- se sua utilização para isolar, em um campo privado e confidencial, decisões que deveriam estar submetidas ao controle público” (SALLES, Carlos Alberto de. Arbitragem em Contratos Administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 2011).
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*Gustavo Justino de Oliveira é professor Doutor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP e árbitro especializado em Direito Público. Sócio-fundador do escritório Justino de Oliveira Advogados.
*Caio Cesar Figueiroa é advogado do escritório Justino de Oliveira Advogados. Especialista em Direito Administrativo e Econômico pela Faculdade de Direito da FGV/SP.