Reforma tributária e incentivo à cultura:
Cultura não é instrumento da guerra fiscal
Fábio de Sá Cesnik*
Desde 1990, com a drástica redução do apoio federal às políticas culturais levadas à cabo pelo governo Collor, o setor cultural passa a buscar mecanismos que aperfeiçoassem a já conhecida Lei Sarney, corrigissem seus erros, e passassem a iniciar novamente o processo de fomento da atividade cultural. O primeiro município a ganhar uma lei de incentivo é São Paulo, que renuncia parte de seus impostos para que a iniciativa privada participe do processo de investimento à cultura. Repetem a fórmula a União, com a Lei Rouanet em 1991 e uma série de outros Estados e Municípios.
A iniciativa é vencedora. Os números de investimento em cultura ao longo dessa mais de uma década são bastante significativos e os resultados estão estampados na mídia da quase totalidade das produções em todas as áreas e nas obras de preservação de nossa memória. Os divergentes das leis de incentivo em nenhum momento propõem a sua extinção, mas o aperfeiçoamento de seus critérios e prioridades.
As leis de incentivo à cultura têm na sua justificativa de criação dois princípios fundamentais, aqui considerados as razões políticas e jurídicas de sua existência. A primeira delas é de fomentar nas empresas e pessoas físicas uma "cultura de investimento em cultura". Está presente aqui um interesse do Estado em orientar um comportamento do setor privado, contribuindo por meio de benefícios fiscais para ações de interesse público. Em segundo plano, a lei se justifica por uma necessidade de se direcionar recursos para o setor cultural, historicamente carente de recursos que fomentem sua atividade.
Nesse elenco de prioridades, a União, os Estados e Municípios assumiram papéis diferentes com seus mecanismos de financiamento. As leis federais passaram a atender ações de cunho nacionais, demandando empresas maiores participando do investimento. Grande parte da vitoriosa produção cinematográfica dos últimos anos só foi possível graças às leis federais. As leis estaduais e municipais foram responsáveis pelo financiamento das ações regionais, até por se valerem de impostos pagos sobre faturamento, que naturalmente englobam um volume maior de empresas alvo para captação. As leis federais somente podem ser utilizadas por empresas tributadas no lucro real, restringindo o espectro que possuem as leis estaduais e municipais.
A reforma tributária altera basicamente os impostos dos Estados e afeta, portanto, o funcionamento das leis estaduais de incentivo à cultura. A proposta de emenda à constituição apresentada pelo Presidente da República prevê que os Estados estão proibidos de conceder incentivos fiscais. Um dos objetivos da medida do Governo é a uniformização das regras para evitar a já conhecida guerra fiscal, que certamente não se pratica com os incentivos à cultura.
A medida foi introduzida pela proposta de alteração do artigo 155, VII, que acrescenta redação completamente nova às competências dos Estados e Distrito Federal para instituição de impostos: "não será objeto de isenção, redução de base de cálculo, crédito presumido ou qualquer outro incentivo ou benefício fiscal ou financeiro que implique sua redução, exceto para atendimento ao disposto no artigo 170, IX1, hipótese na qual poderão ser aplicadas as restrições previstas nas alíneas "a" e "b" do inciso II".
Quer-se subtrair do texto constitucional a possibilidade de o Estado, em lei complementar, poder conceder qualquer tipo de subsídio ou benefício fiscal. Este é o conteúdo da proposta para a alteração do artigo 92 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Se aprovada, não poderão ser concedidos novos incentivos fiscais.
Quanto aos benefícios fiscais já existentes, a reforma estipula uma data limite para a extinção das leis estaduais de cultura. O projeto propõe acrescentar o artigo 90 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que exige que sejam fixados prazos máximos de vigência para incentivos fiscais, definindo também as regras do sistema vigente à época da concessão que permanecerão aplicáveis.
Além de limitar o prazo de existência dos benefícios, o projeto prevê ainda sanções aplicáveis aos Estados e ao Distrito Federal, ou aos seus agentes, por descumprimento da legislação do imposto, especialmente no que se refere à isenção, redução de base de cálculo, crédito presumido ou qualquer outro incentivo ou benefício fiscal ou financeiro que impulsione sua redução.
A lei de incentivo à cultura sempre teve um princípio de funcionamento sui generis em relação a outros benefícios fiscais que compõe as armas da guerra fiscal. Ao invés de beneficiar a empresa para sua instalação no Estado, que funciona como instrumento de cooptação, a lei de incentivo à cultura beneficia simplesmente àquelas empresas que efetivamente investirem em projetos culturais pré-aprovados pelo Governo. Eles são concedidos como prêmio ao empresário consciente que aplica seus recursos na cultura. Na prática os produtores atuam, em graus diferenciados, como executores de ações de interesse público. Tornam-se espécies de substitutos do Estado na realização de funções culturais – um dever constitucional do Poder Público.
Os benefícios proporcionados pelas leis de incentivo estaduais são complementares aos concedidos pela União e pelos Municípios. Eles compõem o sistema básico de financiamento de milhares de projetos culturais em todo o Brasil. E mais: projetos de fomento a iniciativas e utilização de mão-de-obra regional; possibilidade de pequenos produtores realizarem contratos de co-produção com grandes ações nacionais; e mecanismo já incorporado na teia de investimentos de várias importantes empresas patrocinadoras e presente na carteira de planejamento de um grande número de produtores.
Certamente que a reforma tributária será competente para corrigir distorções consagradas pela prática da guerra fiscal. Todavia, focos diferenciados não podem ser atingidos com uma mesma estratégia. Os incentivos à cultura, por não terem relação com a atividade econômica direta da empresa, não são mecanismos para atrai-las a um Estado ou outro, mas são políticas transversais de base social, com beneficiários dispersos em uma sociedade. O processo de sedimentação da produção cultural é lento e gradativo e as leis de incentivo estadual cumprem papel estratégico. Nessa linha, a ausência da ressalva para os incentivos culturais no texto das reformas só pode ser vista como um lapso de esquecimento que será rapidamente corrigida.
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1 O artigo 170, IX, trata dos tratamentos favorecidos para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.
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*Advogado sócio do escritório Azevedo, Cesnik, Quintino & Salinas Advogados, especializado em cultura e terceiro setor; autor de livros, dentre eles "Guia do Incentivo à Cultura". Diretor do Instituto Pensarte.
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