Migalhas de Peso

Considerações preliminares sobre o PL 183/15 do Senado e sua incorporação ao PLC 15/15 (37/15 na Casa de origem) da Câmara dos Deputados

Poderem os Estados e Municípios dispor dos depósitos judiciais para pagar suas dívidas ou garantir compromissos surge como algo que bem revela o padrão ético que orienta a criatividade legislativa nacional.

23/7/2015

1 Introdução

O Projeto de Lei 183/15 do Senado Federal, de autoria do Senador paulista José Serra, foi gestado com o expresso propósito de criar uma nova receita destinada a aliviar a crise fiscal dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios brasileiros. Segundo consta da sua justificação:

"Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios estão em grave situação fiscal. As receitas próprias e as transferências do governo central, mesmo constitucionais, sustentam um desempenho pífio, em linha com a dinâmica da atividade econômica. Além disso, houve piora importante dos indicadores de endividamento.

A situação tende a se agravar no futuro próximo em razão das baixas expectativas quanto ao desempenho da economia brasileira, sendo esperada uma retração das receitas públicas para todos os entes federados em 2015. Nesse contexto, os valores depositados na rede bancária referentes a litígios judiciais e administrativos em andamento constituem uma importante receita em potencial.

O reconhecimento de parte destes valores como receita corrente é uma forma de aumentar a arrecadação a um custo baixo. Isto porque a alternativa seria captar recursos no mercado a juros relativamente altos, por meio de operações de crédito internas e externas." (os grifos não constam no original)

A relatora do Projeto de Lei Complementar 15/15 da Câmara (37/2015, na Casa de origem, de iniciativa do Deputado Leonardo Picciani, que altera a Lei Complementar 148 de 25/11/14), Senadora Marta Suplicy, incorporou o PL 183/15 como emenda nº 02, sendo esse texto, com revisão e emendas, aprovado em 28/4/15 e reenviado à Câmara dos Deputados onde foi adotado sem novas alterações e remetido à sanção da Presidente da República, com a seguinte redação:

"Altera a Lei Complementar 148, de 25 de novembro de 2014; revoga as Leis 10.819, de 16 de dezembro de 2003, e 11.429, de 26 de dezembro de 2006, e dá outras providências.

O CONGRESSO NACIONAL decreta:

Art. 1º A Lei Complementar 148, de 25 de novembro de 2014, passa a vigorar com as seguintes alterações:

"Art. 2º A União adotará, nos contratos de refinanciamento de dívidas celebrados entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, com base, respectivamente, na Lei 9.496, de 11 de setembro de 1997, e na Medida Provisória 2.185-35, de 24 de agosto de 2001, e nos contratos de empréstimo firmados com os Estados e o Distrito Federal ao amparo da Medida Provisória 2.192-70, de 24 de agosto de 2001, as seguintes condições, aplicadas a partir de 1º de janeiro de 2013.

..................................................................................................................(NR)

"art. 3º A União concederá descontos sobre os saldos devedores dos contratos referidos no art. 2º, em valor correspondente à diferença entre o montante do saldo devedor existente em 1º de janeiro de 2013 e aquele apurado utilizando-se a variação acumulada da taxa Selic desde a assinatura dos respectivos contratos, observadas todas as ocorrências que impactaram o saldo devedor no período." (NR)

"art. 4º ............................................................................................................

Parágrafo único. A União terá até 31 de janeiro de 2016 para promover os aditivos contratuais, independentemente de regulamentação, após o que o devedor poderá recolher, a título de pagamento à União, o montante devido, com a aplicação da Lei, ficando a União obrigada a ressarcir o devedor os valores eventualmente pagos a maior." (NR)

Art. 2º Os depósitos judiciais e administrativos em dinheiro referentes a processos judiciais e administrativos, tributários ou não, nos quais o Estado, o Distrito Federal ou os Municípios sejam partes, deverão ser efetuados em instituição financeira oficial federal, estadual ou distrital.

Art. 3º A instituição financeira oficial transferirá para a conta única do Tesouro do Estado, do Distrito Federal ou do Município 70% (setenta por cento) do valor atualizado dos depósitos referentes aos processos judiciais ou administrativos de que trata o art. 2º, bem como os respectivos acessórios.

§ 1º Para implantação do disposto no caput deste artigo, deverá ser instituído fundo de reserva destinado a garantir a restituição da parcela transferida ao Tesouro, observados os demais termos desta Lei Complementar.

§ 2º A instituição financeira oficial tratará de forma segregada os depósitos judiciais e os depósitos administrativos.

§ 3º O montante dos depósitos judiciais e administrativos não repassado ao Tesouro constituirá o fundo de reserva referido no § 1º deste artigo, cujo saldo não poderá ser inferior a 30% (trinta por cento) do total dos depósitos de que trata o art. 2º desta Lei Complementar, acrescidos da remuneração que lhes foi atribuída.

§ 4º Até 10% (dez por cento) da parcela destinada ao fundo de reserva de que trata o § 1º deste artigo poderão ser utilizados, por determinação do Poder Executivo do Estado, do Distrito Federal ou do Município, para constituição de Fundo de Reserva Garantidor de Parcerias Público-Privadas (PPPs) ou de outros mecanismos de garantia previstos em lei, dedicados exclusivamente a investimentos de infraestrutura.

§ 5º Os valores recolhidos ao fundo de reserva terão remuneração equivalente à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – Selic para títulos federais.

§ 6º Compete à instituição financeira gestora do fundo de reserva de que trata este artigo manter escrituração individualizada para cada depósito efetuado na forma do art. 2º, discriminando:

I – o valor total do depósito, acrescido da remuneração que lhe foi originalmente atribuída; e

II – o valor da parcela do depósito mantido na instituição financeira, nos termos do § 3º deste artigo, a remuneração que lhe foi originalmente atribuída e os rendimentos do disposto no § 5º deste artigo.

Art. 4º A habilitação do ente federado ao recebimento das transferências referidas no art. 3º é condicionada à apresentação ao órgão jurisdicional responsável pelo julgamento dos litígios aos quais se refiram os depósitos do termo de compromisso firmado pelo Chefe do Poder Executivo que preveja:

I – a manutenção do fundo de reserva na instituição financeira responsável pelo repasse das parcelas do Tesouro, observado o disposto no § 3º do art. 3º desta Lei Complementar;

II – a destinação automática ao fundo de reserva do valor correspondente à parcela dos depósitos judiciais mantida na instituição financeira nos termos do § 3º do art. 3º, condição esta a ser observada a cada transferência recebida na forma do art. 3º desta Lei Complementar;

III – a autorização para a movimentação do fundo de reserva para fins do disposto nos arts. 5º e 7º desta Lei Complementar;

IV – a recomposição do fundo de reserva pelo ente federado, até quarenta e oito horas, após comunicação da instituição financeira, sempre que o seu saldo estiver abaixo dos limites estabelecidos no § 3º desta Lei Complementar.

Art. 5º A constituição do fundo de reserva e a transferência da parcela dos depósitos judiciais e administrativos acumulados até a data de publicação desta Lei Complementar, conforme dispõe o art. 3º, serão realizadas pela instituição financeira até quinze dias após a apresentação de cópia do termo de compromisso de que trata o art. 4º.

§ 1º Para identificação dos depósitos, cabe ao ente federado manter atualizada na instituição financeira a relação de inscrições no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica – CNPJ dos órgãos que integram a sua administração pública direta e indireta.

§ 2º Realizada a transferência de que trata o caput, os repasses subsequentes serão efetuados em até dez dias após a data de cada depósito.

§ 3º Em caso de descumprimento dos prazos estabelecidos no caput e no § 2º deste artigo, a instituição financeira deverá transferir a parcela do depósito acrescida da taxa referencial do Selic para títulos federais mais multa de 0,33 (trinta e três centésimos por cento) por dia de atraso.

Art. 6º São vedadas quaisquer exigências por parte do órgão jurisdicional ou da instituição financeira além daquelas estabelecidas nesta Lei Complementar.

Art. 7º Os recursos repassados na forma desta Lei Complementar ao Estado, ao Distrito Federal ou ao Município, ressalvados os destinados ao fundo de reserva de que trata o §3º do art. 3º, serão aplicados, exclusivamente, ao pagamento de:

I – precatórios judiciais de qualquer natureza;

II – dívida pública fundada, caso a lei orçamentária do ente federativo preveja dotações suficientes para o pagamento da totalidade dos precatórios judiciais exigíveis no exercício e não remanesçam precatórios não pagos referentes aos exercícios anteriores;

III – despesas de capital, caso a lei orçamentária do ente federativo preveja dotações suficientes para o pagamento da totalidade dos precatórios judiciais exigíveis no exercício, não remanesçam precatórios não pagos referentes aos exercícios anteriores e o ente federado não conte com compromissos classificados como dívida fundada;

IV – recomposição dos fluxos de pagamento e do equilíbrio atuarial dos fundos de previdência referentes aos regimes próprios de cada ente federado, nas mesmas hipóteses do inciso III.

Parágrafo único. Independentemente das prioridades de pagamento estabelecidas no caput deste artigo, poderá o Estado, o Distrito Federal ou o Município utilizar até 10% (dez por cento) da parcela que lhe for transferida nos termos do caput do art. 3º para constituição de Fundo Garantidor de PPPs e de outros mecanismos de garantia previstos em lei, dedicado exclusivamente a investimentos de infraestrutura.

Art. 8º Encerrado o processo litigioso com ganho de causa para o depositante, mediante ordem judicial ou administrativa, o valor do depósito efetuado nos termos desta Lei Complementar acrescido da remuneração que lhe foi originalmente atribuída será colocado à disposição do depositante pela instituição financeira responsável, no prazo de 3 (três) dias úteis, observada a seguinte disposição:

I – a parcela que foi mantida na instituição financeira nos termos do §3º do art. 3º acrescida da remuneração que lhe foi originalmente atribuída será de responsabilidade direta e imediata da instituição depositária; e

II – a diferença entre o valor referido no inciso I e o total devido ao depositante nos termos do caput será debitada do saldo existente no fundo de reserva de que trata o § 3º do art. 3º.

§ 1º Na hipótese de o saldo do fundo de reserva após o débito referido no inciso II ser inferior ao valor mínimo estabelecido § 3º do art. 3º, o ente federado será notificado para recompô-lo na forma do inciso IV do art. 4º.

§ 2º Na hipótese de insuficiência de saldo no fundo de reserva para o débito do montante devido nos termos do inciso II, a instituição financeira restituirá ao depositante o valor disponível no fundo acrescido do valor referido no inciso I.

§ 3º Na hipótese referida no § 2º deste artigo, a instituição financeira notificará a autoridade expedidora da ordem de liberação do depósito, informando a composição detalhada dos valores liberados, sua atualização monetária, a parcela efetivamente disponibilizada em favor do depositante e o saldo a ser pago depois de efetuada a recomposição prevista no § 1º deste artigo.

Art. 9º Nos casos em que o ente federado não recompuser o fundo de reserva até o saldo mínimo referido no § 3º do art. 3º, será suspenso o repasse das parcelas referentes a novos depósitos até a regularização do saldo.

Parágrafo único. Sem prejuízo do disposto no caput, na hipótese de descumprimento por três vezes da obrigação referida no inciso IV do art. 4º, será o ente federado excluído da sistemática de que trata esta Lei Complementar.

Art. 10. Encerrado o processo litigioso com ganho de causa para o ente federado, ser-lhe-á transferida a parcela do depósito mantida na instituição financeira nos termos do § 3º do art. 3º acrescida da remuneração que lhe foi originalmente atribuída.

§ 1º O saque da parcela de que trata o caput deste artigo somente poderá ser realizado até o limite máximo do qual não resulte saldo inferior ao mínimo exigido no §3º do art. 3º.

§ 2º As situações previstas no caput serão transformados em pagamento definitivo, total ou parcial, proporcionalmente à exigência tributária ou não tributária, conforme o caso, inclusive seus acessórios, os valores depositados na forma do caput do art. 2º acrescidos da remuneração que lhes foi originalmente atribuída.

Art. 11. O Poder Executivo de cada ente federado estabelecerá regras de procedimentos, inclusive orçamentários, para execução do disposto nesta Lei Complementar.

Art. 12. Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 13. Ficam revogadas as Leis 10.819, de 16 de dezembro de 2003, e 11.429, de 26 de dezembro de 2006."

A simples leitura deste PLC – cuja finalidade inicial era alterar a Lei Complementar 148, de 25/11/14, esta, por sua vez, editada para modificar a Lei Complementar 101, de 4/5/00, e dispor sobre os critérios de indexação dos contratos de refinanciamento da dívida celebrados entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios – revela que, em decorrência da incorporação antes referida, como já se tornou prática comum do Legislador Nacional, terminou regulando matéria diversa na medida em que 12 dos seus 13 artigos tratam de depósitos judiciais e administrativos, tributários ou não tributários, "nos quais o Estado, o Distrito Federal ou os Municípios sejam parte" (?) para revogar integralmente as Leis Ordinárias 10.819 de 16/12/03 e 11.429 de 26/12/06.

Essa técnica legislativa, cujo DNA tem a marca do "jeitinho brasileiro" de proceder, abriu espaço para permitir que regras constantes de um projeto de lei ordinária, tratando de depósitos judiciais, fossem transplantadas e incorporadas, por via de emenda, a um projeto de lei complementar, que versa sobre contratos de refinanciamento de dívidas celebrados entre a União e os entes federados, esquecendo-se o legislador de que, no estado democrático de direito brasileiro, como modelado pela Constituição de 1988, não existe discricionariedade legislativa com amplitude que permita tal acomodação sem cair no abismo da inconstitucionalidade.

Estas notas objetivam examinar, em caráter introdutório, as mais notórias afrontas aos princípios e regras constitucionais decorrentes deste mais novo arranjo legislativo brasileiro, esforço que se justifica por quatro motivos:

i) há várias leis em vigor, no âmbito federal e estadual, que permitem ao Poder Executivo, com autorização legislativa, utilizar-se de recursos depositados em processos judiciais ou administrativos de natureza tributária, restringindo, no primeiro caso, a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário;

ii) o assunto não está pacificado pelo Supremo Tribunal Federal que, embora já tendo tratado da matéria, não encerrou definitivamente a questão, até porque continua sendo suscitada a constitucionalidade ou não de atos legislativos similares como, verbi gratia, na ADI 5072 (Relator Ministro Gilmar Mendes), na ADI 5080 (Relator Ministro Luiz Fux) e na ADI 5099 (Relatora Ministra Carmen Lúcia), todas com rito abreviado (Lei 9.868/99: art. 12), vale dizer, afetadas para julgamento pelo Plenário sem análise do pedido cautelar;

iii) no caso do projeto de lei complementar em tela, como será melhor visto adiante, autoriza-se o levantamento dos depósitos judiciais – tributários ou não, e sem distinção de terem sido voluntariamente feitos pelas partes ou decorrerem de apreensão judicial – pelo Poder Executivo dos Estados e Municípios diretamente por ato do banco, ou seja, sem qualquer controle ou autorização do Poder Judiciário, o que extingue, na prática, o instituto do depósito judicial;

iv) ao autorizar a transferência de 70% (setenta por cento) do valor atualizado dos depósitos referentes aos processos judiciais, bem como dos respectivos acessórios, para a conta única do Tesouro do Estado, do Distrito Federal e do Município (art. 3º do PLC) e permitir que até 10% (dez por cento) do Fundo de Reserva criado para garantir a restituição dos valores correspondentes às partes, em caso de sucumbência destes entes federativos, sejam "por determinação do Poder Executivo do Estado", usados na constituição de um Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (art. 3º, §§ 1º e 4º), o Projeto põe em risco à eficácia das decisões judiciais.

Encerrando estas linhas introdutórias – e para desarmar os sempre presentes críticos de plantão –, deixa-se expressos dois alertas: o primeiro visando a esclarecer que, na demonstração das inconstitucionalidades adiante apontadas, serão mantidas, mesmo correndo o risco de a exposição vir a ser a considerada superficial, a simplicidade e concisão, de modo a assegurar maior facilidade à leitura; e o segundo para deixar igualmente transparente que, embora possam ser mencionadas disposições específicas do PLC, estas considerações iniciais objetivam destacar vícios que maculam a validade constitucional de todos os dispositivos que decorreram da incorporação do PL 183/15.

Na mesma linha metodológica, bem ainda em concordância com a advertência feita por Richard Posner (Para além do direito. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2009, p. 2) de que a nota de rodapé é uma "maldição dos escritos jurídicos", esse recurso será evitado ao máximo possível.

2 Violação ao disposto no art. 5º, caput, da Constituição da República

O PLC ofende o art. 5º, caput, da Constituição da República, por escandalosamente maltratar o direito de propriedade garantido pelos incisos XXII e LIV, parte final, deste mesmo dispositivo.

Com efeito, os depósitos judiciais são constituídos com recursos de propriedade dos litigantes e confiados à guarda do Poder Judiciário, não podendo, evidentemente, os entes federativos dispor deles – nem mesmo a título de empréstimo – senão em caso de decisão definitiva e vitoriosa da lide.

Por essa razão, o PLC autoriza uma antecipação inconstitucional na medida em que, como em face de qualquer outro credor, o litigante que efetiva o depósito judicial não renuncia a sua propriedade, objetivando apenas ser desobrigado ao final do processo e manter seu patrimônio no todo íntegro ou com o menor desfalque possível.

Como acentuou o douto Procurador Geral da República, Dr. Rodrigo Janot Monteiro de Barros, na inicial da ADI 5099, alvejando diploma similar em exame (Lei Complementar Estadual 159, de 25/7/13, do Paraná):

"Destinar recursos de terceiros, depositados em conta à disposição do Judiciário, à revelia deles, para custeio de despesas do Executivo e para pagamento de dívidas da Fazenda Pública estadual com outras pessoas, constitui apropriação do patrimônio alheio, com interferência na relação civil do depósito e no direito de propriedade dos titulares dos valores depositados..."

Ademais, como as regras constantes do Projeto possibilitam que não só os Estados, mas, também, todos os Municípios brasileiros possam dispor de elevada parcela dos valores depositados em Juízo, há sério e concreto risco de ineficácia da decisão judicial que reconheça não ser o depositante devedor e, por que não dizer?, de inúmeros calotes.

Sim, inúmeros e previsíveis calotes, porque, diante da situação financeira de alguns Estados e inúmeros Municípios, é o que se pode esperar.

3 Violação ao disposto no art. 24, § 1º, da Constituição da República

A incorporação das regras constantes do PL 183/15 ao PLC 15/15 (37/2015 na Casa de origem), que visava a alterar a Lei Complementar 148/2014 – e, mais do que isso, o propósito declarado na justificação apresentada pelo seu autor, de criar uma receita para os Estados e Municípios aumentando "a arrecadação a custo baixo" que evite a alternativa de "captar recursos no mercado a juros relativamente altos, por meio de operações de crédito internas e externas" – deixa evidente a natureza financeira da matéria tratada por ambas as iniciativas.

Acontece, porém, que matéria dessa índole se encaixa, por força do disposto no art. 24, I, da Constituição, na competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal e cujo tratamento pela União, conforme dispõe o § 1º dessa mesma deixa constitucional, é limitado ao estabelecimento de normas gerais.

Ora, sendo óbvio que as regras constantes de PL 183 não constituem, pelo seu conteúdo e abrangência, normas gerais – tanto que seu autor, certo da compreensão de que estava criando uma alternativa de arrecadação ao empréstimo bancário1 não apresentou um PLC –, resulta evidente que a manobra legislativa de incorporá-las ao PLC 15/15 (37 na Casa de origem) transgrediu o § 1º do Art. 24 da Constituição, sendo, em consequência, manifestamente inconstitucional.

Importa salientar que, embora as disposições sobre a constituição e custódia dos depósitos judiciais situem-se nos ambientes do Direito Civil e Processual Civil, a respeito dos quais cabe à União dispor conforme estabelece o art. 22, I, da Constituição, o PLC em tela tratou, sem margem para dúvida, de aspectos financeiros deles decorrentes e o fez em dissonância com o art. 24, §1º, da Constituição da República.

5 Violação ao disposto no art. 100, caput, da Constituição da República

Este ponto também já foi demonstrado, pelo douto Procurador da República, na inicial da antes mencionada ADI 5099, ao enfatizar:

"Outra incompatibilidade da lei complementar .... com a Constituição da República decorre de o caput do art. 100 desta prever que os pagamentos devidos pelas fazendas públicas, em virtude de sentença judicial, se farão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos. A expressão "à conta dos créditos respectivos" corresponde às receitas correntes do Estado, o que impede a apropriação de recursos de terceiros e, portanto, a utilização de valores existentes em depósitos judiciais e extrajudiciais para pagamento de condenações judiciais.

Essa compreensão é reforçada pelos §§ 2º e 3º do art. 97 do ADCT/1988, os quais, de modo expresso, aludem às receitas correntes líquidas como a fonte das verbas passíveis de utilização para pagamento de precatórios."

Na justificação do PL 183/15, seu autor, tentando buscar fundamento, afirma que "os valores depositados na rede bancária referentes a litígios judiciais e administrativos em andamento constituem uma importante receita em potencial". Acontece, porém, que os valores dos depósitos judiciais são custodiados sob responsabilidade e ordem do Poder Judiciário, não podendo, em consequência, os bancos depositários movimentá-los senão por determinação judicial. E, de outra banda, ninguém pode gastar "receita potencial", pelo simples fato de que é uma receita até suscetível de existir, mas, como expressa o próprio adjetivo potencial, sem existência real.

Acresce considerar, em complemento e mesmo de passagem, que a disposição por Estados e Municípios dos valores financeiros de terceiros depositados judicialmente em razão de litígios com os mencionados entes federativos, ou seja, de recursos que estão apenas entregues à guarda do Poder Judiciário por quem não se acha devedor, no todo ou parte, da Fazenda Pública – especialmente para pagar precatórios, os quais nada mais são do que dívidas judicialmente reconhecidas e que aqueles entes resistiram, quase sempre por muitos anos, em liquidar – ofende, também, o princípio da moralidade administrativa.

6 Violação do art. 148 da Constituição da República

Conforme anteriormente mencionado em nota de rodapé, a liberação antecipada em favor dos Estados e Municípios de valores depositados pela parte em litígio com esses entes federativos – como alternativa ao empréstimo bancário – tal como mencionado na justificação no PL 183/15 e incorporado no PLC enviado à sanção presidencial – constitui uma disfarçada forma de empréstimo compulsório, o que esbarra na proibição constante do art. 148 da Lei Fundamental.

Realmente, outra não pode ser a conclusão, na medida em que foi concebida no PL, e assim permaneceu com a incorporação no PLC, como uma antecipação compulsória restituível e que, portanto, tem a mesma natureza da mencionada espécie tributária cuja instituição só tem cabimento pela União nas hipóteses restritas mencionadas no art. 148 de Constituição República.

A designação de receita potencial, utilizada na justificação do PL, constitui na verdade uma manobra retórica para justificar, sem que isso caracterize confisco, a expropriação de bens pecuniários alheios que estão depositados em uma instituição financeira, porque acautelados em Poder da Justiça. Acontece, porém, que não sendo a receita potencial propriamente uma espécie de receita pública, por faltar-lhe concretude necessária, a antecipação regulada no diploma em comento ajusta-se ao conceito de empréstimo compulsório, o que só é constitucionalmente admitido em favor da União.

7 Violação do art. 167, inciso VII, da Constituição da República

O PLC enviado à sanção presidencial, ao pura e simplesmente incorporar as regras constantes do PL 183 de 2015, dispondo que a instituição oficial que detém, por conta e ordem dos órgãos do Poder Judiciário, os depósitos judiciais (valores de propriedade de partes que litigam com os Estados e Municípios), transferirá um elevado percentual (70%) desses depósitos transgredindo o disposto no art. 167, VII, da Constituição que veda a utilização de créditos ilimitados.

A fixação de um percentual para o avanço na pecúnia de propriedade das partes, evidentemente, não limita os créditos a serem feitos em favor dos Estados e dos Municípios pela simples razão de que não há uma determinação dos valores sobre os quais esse percentual incidirá, eis que os depósitos têm montante variável e mutável no correr de um exercício.

A compreensão sistemática do art. 167, VII, da Constituição conduz à interpretação de que a vedação nele contida objetiva assegurar o equilíbrio fiscal que não pode existir na companhia da possibilidade de créditos ilimitados, vale dizer, sem prévia determinação de valor.

8 Conclusão

Como expresso nas considerações introdutórias, estas notas foram elaboradas sem qualquer pretensão de esgotar as razões e fundamentos pelos quais o conjunto de regras do PL 183/15 incorporadas, por emenda do Senado Federal, no PLC 15/15 da Câmara dos Deputados (37/2015 na Casa de origem), são inconstitucionais.

Embora tenham sido apontadas cinco violações ao Texto Constitucional, resultantes dessas regras, a primeira delas, isto é, a desconsideração ao direito de propriedade, assegurado pelo art. 5º, incisos XXII e LIV, parte final, da Constituição da República, admite considerações complementares a pretexto de concluir.

Poderem os Estados e Municípios dispor dos depósitos judiciais para pagar suas dívidas ou garantir compromissos, vale dizer, lançar mão de recursos alheios, pertencentes àqueles que, por qualquer razão de direito, litigam com esses entes federativos, para além das motivações jurídicas que impossibilitam tamanha afronta a um dos mais fundamentais direitos consagrados na Constituição, surge como algo que bem revela o padrão ético que orienta a criatividade legislativa nacional.

As razões práticas dessa inventiva foram bem expostas na justificação do PL 183/15: "o reconhecimento de parte destes valores como receita corrente é uma forma de aumentar a arrecadação a um custo baixo. Isto porque a alternativa seria captar recursos no mercado a juros relativamente altos, por meio de operações de crédito internas e externas". Essa alternativa, porém, ainda que única, não justifica a lei autorizar os Estados e Municípios se apropriarem de bens alheios, pois no estado democrático de direito o pragmatismo tem limites que se encontram exatamente firmados nos princípios e regras constitucionais.

Encerrando, e para evitar possíveis tentativas de desqualificar estas notas, sob o argumento de que motivadas pelo escondido propósito de defender o spred que os Tribunais de Justiça contratualmente recebem das instituições financeiras que detêm os depósitos custodiados à disposição do Judiciário Estadual, cumpre deixar claro que: essa remuneração adicional que os bancos pagam aos Tribunais já foi objeto de acurado exame quanto à sua legalidade pelo Conselho Nacional de Justiça; e o fato de existir ou deixar de existir em nada interfere substancialmente nas inconstitucionalidades aqui examinadas. Portanto, para quem isso tente, basta reproduzir o velho dístico: honi soit qui mal y pense.

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1 Mas, sem possibilidade de configuração diversa, um disfarçado empréstimo compulsório conforme será mencionará adiante.

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*Milton Nobre é desembargador Presidente do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça do Brasil.

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