Fazendo um caminho que rotineiramente escolhi, em cruzamento dotado de sinalização semafórica de quatro tempos, observei que na ilha que divide a avenida, uma pessoa de idade, maltrapilha, pedia esmolas, passando por todos os motoristas ali enfileirados, com as mãos em concha, na posição correta para receber qualquer donativo. Chamou-me a atenção, principalmente porque o pedinte nada falava e as pessoas, de forma costumeira, pareciam conhecer a intenção do novato naquele ponto, considerado nobre para a categoria e, por incrível que pareça, com visível placa aconselhando a não dar esmolas e sim trabalho. Mas, mesmo assim, algumas pessoas, movidas por sentimento de solidariedade ou outro, acabavam despejando seu donativo.
Em outras oportunidades passei pelo mesmo cruzamento e ali se encontra o pedinte com as mãos em concha, não tão maltrapilho e agora cumprimentando amistosamente muitos motoristas, como praticasse um ato de comércio. Pensei cá comigo, busquei meus arquivos e ponderei que aquela conduta era reprovável, pelo menos de acordo com o pacto social estabelecido.
Não que eu fosse contra o pedinte, inofensivo e simpático, figura presencial em nossa sociedade. Muitas <_st13a_verbetes w:st="on">vezes vem <_st33a_sinonimos w:st="on">acompanhado de <_st13a_verbetes w:st="on">filhos <_st13a_verbetes w:st="on">menores, outras expondo <_st13a_verbetes w:st="on">doenças, <_st13a_verbetes w:st="on">aleijões <_st13a_verbetes w:st="on">ou <_st13a_verbetes w:st="on">qualquer <_st13a_verbetes w:st="on">outro <_st13a_verbetes w:st="on">recurso <_st23a_dm w:st="on">para <_st23a_hm w:st="on">enternecer as <_st13a_verbetes w:st="on">pessoas e <_st23a_hm w:st="on">obter a <_st13a_verbetes w:st="on">tão desejada <_st23a_dm w:st="on">esmola <_st13a_verbetes w:st="on">que, na <_st23a_dm w:st="on">realidade, <_st13a_verbetes w:st="on">geralmente, é <_st13a_verbetes w:st="on">um <_st13a_verbetes w:st="on">valor <_st13a_verbetes w:st="on">em <_st23a_dm w:st="on">dinheiro. Há <_st13a_verbetes w:st="on">aqueles <_st13a_verbetes w:st="on">que optam <_st13a_verbetes w:st="on">pela <_st33a_sinonimos w:st="on">mendicidade <_st13a_verbetes w:st="on">temporária <_st13a_verbetes w:st="on">como o <_st23a_dm w:st="on">último <_st13a_verbetes w:st="on">recurso de se <_st23a_hm w:st="on">obter <_st13a_verbetes w:st="on">algum <_st13a_verbetes w:st="on">ganho <_st23a_dm w:st="on">para <_st23a_hm w:st="on">satisfazer <_st13a_verbetes w:st="on">suas <_st13a_verbetes w:st="on">necessidades, <_st13a_verbetes w:st="on">mas há <_st13a_verbetes w:st="on">também os <_st13a_verbetes w:st="on">aproveitadores, <_st13a_verbetes w:st="on">aqueles <_st13a_verbetes w:st="on">que fazem da mendicância uma habitualidade, <_st13a_verbetes w:st="on">um <_st13a_verbetes w:st="on">modo de <_st23a_hdm w:st="on">ganhar a <_st13a_verbetes w:st="on">vida, <_st13a_verbetes w:st="on">sem <_st23a_hdm w:st="on">ter <_st13a_verbetes w:st="on">necessidade de <_st23a_hm w:st="on">trabalhar, <_st13a_verbetes w:st="on">com <_st13a_verbetes w:st="on">saúde e <_st13a_verbetes w:st="on">condições <_st23a_dm w:st="on">para <_st13a_verbetes w:st="on">tanto. É <_st23a_dm w:st="on">bem <_st13a_verbetes w:st="on">possível <_st13a_verbetes w:st="on">que num <_st13a_verbetes w:st="on">cruzamento de <_st13a_verbetes w:st="on">grande <_st13a_verbetes w:st="on">fluxo de veículos, o mendicante <_st13a_verbetes w:st="on">consiga <_st23a_hm w:st="on">obter dos <_st13a_verbetes w:st="on">motoristas uma arrecadação <_st23a_dm w:st="on">bem <_st13a_verbetes w:st="on">superior à daquele contratado <_st13a_verbetes w:st="on">por <_st13a_verbetes w:st="on">um <_st23a_dm w:st="on">comerciante <_st23a_dm w:st="on">para <_st23a_hm w:st="on">distribuir <_st13a_verbetes w:st="on">panfletos de <_st13a_verbetes w:st="on">propaganda. <_st13a_verbetes w:st="on">Um <_st13a_verbetes w:st="on">trabalha, o <_st13a_verbetes w:st="on">outro arrecada.
Fui ao Código Penal e resvalei para a Lei das Contravenções Penais, editada em 1941, por Getúlio Vargas, que traz uma série de medidas protetivas à pessoa, patrimônio, paz pública, fé pública, polícia de costumes e outras mais. O delito-anão, assim carinhosamente chamado por Nelson Hungria, seria uma forma de coibir condutas que antecedem e gravitam em torno de outras mais graves, já consideradas crimes. Alojei-me no artigo 60 que trata da mendicância. Lembrava-me ainda quando frequentava os bancos acadêmicos, que a contravenção se consumava de duas formas: <_st13a_verbetes w:st="on">por <_st13a_verbetes w:st="on">ociosidade <_st13a_verbetes w:st="on">ou <_st13a_verbetes w:st="on">cupidez. O <_st13a_verbetes w:st="on">legislador <_st13a_verbetes w:st="on">penal <_st13a_verbetes w:st="on">sempre se preocupou <_st13a_verbetes w:st="on">em <_st43a_infinitivo w:st="on">conceituar a <_st13a_verbetes w:st="on">ociosidade. <_st13a_verbetes w:st="on">Tanto é <_st23a_dm w:st="on">verdade <_st13a_verbetes w:st="on">que o <_st13a_verbetes w:st="on">documento <_st13a_verbetes w:st="on">mais <_st13a_verbetes w:st="on">importante <_st13a_verbetes w:st="on">que o <_st13a_verbetes w:st="on">cidadão deveria <_st23a_hm w:st="on">trazer consigo, na época getulista, <_st13a_verbetes w:st="on">era a <_st13a_verbetes w:st="on">carteira de <_st23a_dm w:st="on">trabalho. Nela, <_st13a_verbetes w:st="on">além de <_st13a_verbetes w:st="on">sua <_st13a_verbetes w:st="on">identificação, <_st13a_verbetes w:st="on">vinha <_st13a_verbetes w:st="on">expresso o <_st13a_verbetes w:st="on">vínculo trabalhista, demonstrando a <_st13a_verbetes w:st="on">ocupação <_st13a_verbetes w:st="on">lícita. <_st13a_verbetes w:st="on">Ocioso seria, <_st13a_verbetes w:st="on">portanto, <_st13a_verbetes w:st="on">aquele <_st13a_verbetes w:st="on">que, reunindo todas as <_st13a_verbetes w:st="on">condições <_st23a_dm w:st="on">para o <_st23a_dm w:st="on">trabalho, queda-se inerte de <_st23a_dm w:st="on">forma habitual, <_st13a_verbetes w:st="on">sem <_st23a_hdm w:st="on">prover <_st13a_verbetes w:st="on">sua <_st13a_verbetes w:st="on">própria <_st13a_verbetes w:st="on">subsistência, <_st13a_verbetes w:st="on">mediante <_st13a_verbetes w:st="on">ocupação <_st13a_verbetes w:st="on">que seja considerada <_st13a_verbetes w:st="on">lícita. Pode <_st23a_hm w:st="on">trabalhar, <_st13a_verbetes w:st="on">mas <_st13a_verbetes w:st="on">não <_st13a_verbetes w:st="on">quer. <_st13a_verbetes w:st="on">Assim, a <_st13a_verbetes w:st="on">indigência e o <_st13a_verbetes w:st="on">estado de <_st33a_sinonimos w:st="on">pobreza <_st13a_verbetes w:st="on">não <_st13a_verbetes w:st="on">são <_st13a_verbetes w:st="on">fatores que, obrigatoriamente, conduzem à <_st33a_sinonimos w:st="on">mendicidade. Essa se revela <_st13a_verbetes w:st="on">quando a <_st23a_dm w:st="on">pessoa <_st13a_verbetes w:st="on">apela e implora <_st13a_verbetes w:st="on">pela <_st13a_verbetes w:st="on">caridade <_st13a_verbetes w:st="on">pública. A <_st13a_verbetes w:st="on">cupidez, e o conceito fui buscar no <_st13a_verbetes w:st="on">Plácido e Silva, <_st13a_verbetes w:st="on">nada <_st13a_verbetes w:st="on">mais é "do <_st13a_verbetes w:st="on">que a <_st13a_verbetes w:st="on">cobiça de se <_st23a_hm w:st="on">obter <_st13a_verbetes w:st="on">maiores <_st13a_verbetes w:st="on">ganhos, utilizando-se desse <_st13a_verbetes w:st="on">meio de <_st23a_hdm w:st="on">pedir <_st13a_verbetes w:st="on">ou <_st23a_hdm w:st="on">suplicar <_st13a_verbetes w:st="on">auxílios". Quer dizer, seria uma forma de estelionato para ludibriar a generosidade do cidadão e obter vantagem indevida.
Qual não foi minha surpresa ao ler, de forma taxativa e lacônica, que a contravenção foi revogada pela lei 11.983/2009 e perdeu seu caráter proibitivo. Desalojada como um sem-terra ou sem-teto, sem qualquer outra conduta para substituí-la. Passou-me rapidamente a aula de um professor de Direito Penal, que se rebelava contra as contravenções. Dizia ele que se punir pela prática de um crime é difícil, principalmente agora com a categoria do pequeno potencial lesivo, fica totalmente sem sentido qualquer norma contravencional, que carrega condutas de pouca relevância numa sociedade de alto índice de criminalidade.
Num rápido ajuste de ideias refleti e conclui que talvez a revogação teve como suporte a prática de políticas públicas para o seguimento dos pedintes. Afinal, o país precisa urgentemente remar em favor da prosperidade e abandonar a vala da miséria oferecendo oportunidades de inclusão social, com as mais variadas bolsas. Passei a achar oportuna a revogação, tendo em vista o objetivo maior que era de engajamento da população, com a consequente oferta de trabalho.
Parei no cruzamento e lá estava o mendigo. Já chamava muitos motoristas pelo nome, alguns por apelidos, com um visual mais alegre, de prosperidade, e, disfarçadamente, consegui ver um aparelho celular preso em sua cinta, coberto pela camisa. Aproveitei o tempo do sinal e rapidamente falei para ele a respeito das políticas públicas de inserção social, aconselhando-o a se cadastrar para receber os benefícios.
Em tom baixo de voz, curvado sobre minha porta, cautelosamente afirmou: já tenho uma bolsa. Isto aqui é um bico.
Lastimei a revogação da contravenção. Era um caso de adequação típica na modalidade de cupidez.