O órgão da moral
Atahualpa Fernandez*
Desde que Hanna Damasio e seus colaboradores ressuscitaram o caso de Phineas Gage, o engenheiro que, no século XIX, sofreu lesões cerebrais que não lhe mataram, mas que arruinaram sua vida por lhe haverem provocado déficits na toma de decisões (1994), se pôs de manifesto à importância das conexões cerebrais existentes entre o córtex frontal e o sistema límbico para poder levar a cabo uma conduta útil em termos de adaptação social (como expressão sutil do tipo de inteligência própria de nossa espécie, a denominada “hipótese do marcador somático”). Mediante o estudo de pacientes com lesões cerebrais se estabeleceu que a amígdala e outras zonas ventrais do cérebro são elementos necessários à hora de realizar juízos sobre a vida social, ainda que seus papéis respectivos sejam distintos nesse processo (Adolphs, Tranel, & Damasio, 1998; Bechara et al, 1999).
Por sua parte, e graças à técnica da ressonância magnética funcional (fMRI) que mede o consumo de oxigênio provocado pelo trabalho dos neurônios, Alan Sanfey e seus colaboradores (2003) identificaram em sujeitos, esta vez sanos, a ativação de uma zona que está relacionada com as emoções - a ínsula anterior - e outra zona frontal encarregada de ã Pós-doutor em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofia Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California,Santa Barbara;Research Acholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Research Scholar em Antropologia y Evolución Humana do Laboratório de Sistemática Humana da Universidad de las Islas Baleares/Espanha; Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Titular da Unama/PAeCesupa/PA; Professor Colaborador Honorífico da Universitat de les Illes Balears/Espanha; Procurador do Trabalho (aposentado); Advogado.
Múltiplas funções entre as que se encontram os juízos realizados frente às alternativas existentes para a ação - o córtex pré frontal dorsolateral.
Em todos estes estudos se dá por suposto o fato de que o cérebro é o gerador, mediante seus estados funcionais, do que chamamos consciência ou mente. Mas existe uma diferença sensível entre falar da atividade cerebral em termos vagos e estabelecer quais são as redes neuronais inter-relacionadas em um determinado processo cognitivo. Por desgraça a precisão temporal da fMRI não é muito alta, da ordem de entre 2 e 6 segundos, quando os processos de ativação cerebral se medem em milisegundos.
Nesse aspecto, então, o que nos estão indicando a fMRI e a tomografia de emissão de posítrons (PET) respeito da ativação cerebral relacionada com juízos que implicam em certa forma o uso de valores morais?
Os resultados dos diferentes estudos já realizados são um tanto dispersos devido, provavelmente, aos diferentes objetivos e supostos de partida dos diferentes grupos de investigadores, coisa que leva a se questionar acerca da validez e adequação de alguns dos desenhos experimentais que lhes serviram de base.
O trabalho de Joshua Greene e colaboradores (2001) se centrou na busca de correlatos neuronais diferenciais para a resolução de dois grupos diferentes de dilemas que se distinguiam pelo modo de chegar a um mesmo resultado. Os exemplos paradigmáticos acerca dos dois tipos diferentes de juízo moral foram os seguintes: um em que os sujeitos se encontram implicados pessoalmente em uma determinada ação (footbridge) e outro que implica uma maior distância pessoal para quem julga a ação (trolley). Greene et al denominam ao primero “moral-personal dilemma” e ao segundo “moral-impersonal dilemma”, sendo, contudo bastante duvidoso que estas denominações sejam efetivamente as mais adequadas e corretas.
No primeiro caso, de dilema moral impessoal, ao participante no experimento se lhe colocou ante a seguinte situação: dilema tipo trolley - um trem sem controle matará a cinco pessoas se segue seu trajeto. Um sujeito, situado em uma local distante dos fatos, pode desviá-lo, mediante o simples movimento de uma alavanca, para outro trajeto no qual só há uma pessoa, a qual sem dúvida o veículo matará. É correto acionar a alavanca?
No segundo caso (dilema tipo footbridge), de juízo moral pessoal, o dilema segue um padrão parecido, com a diferença de que agora o sujeito está situado em uma ponte sobre a estrada de ferro e tem a seu lado a uma pessoa estranha. Para salvar as cinco pessoas que serão atropeladas o sujeito pode empurrar o estranho desde a ponte para a estrada de ferro – que seguramente morrerá-, detendo assim o trem. É correto obrar assim?
A busca de correlatos neuronais diferenciais teve sua origem em que as respostas aos dilemas por parte dos distintos sujeitos implicados no experimento variavam de maneira substancial. Em resumo, a maior parte dos participantes respondia que no primeiro caso é apropriado desviar o trem lançando-o em direção ao indivíduo solitário, enquanto que no segundo caso, também de forma majoritária, se opinava que não é apropriado jogar à via ao estranho. Tudo isso pese à obviedade de que o resultado final de ambos dilemas é o mesmo: salvar a vida de cinco pessoas em troca da vida de um só indivíduo.
Para levar a cabo o estudo a equipe de Greene acrescentou aos grupos de dilemas tipo trolley - aos que chamou dilemas morais impessoais - e aos tipo footbridge - ou dilemas morais pessoais - um terceiro grupo de dilemas neutros com o propósito de que estes últimos servissem como linha base para comparar os resultados dos outros dois. A heurística utilizada para construir uns e outros foi a de partir dos dilemas paradigmáticos e criar variações sobre eles, processo pelo qual se chegou a estabelecer que os dilemas pessoais deviam conter necessariamente três elementos: 1) implicar um dano corporal; 2) a um indivíduo ou grupo de indivíduos particular e 3) de tal forma que o dano não seja uma “desviação“ de um dano préexistente, senão mais bem o resultado da intervenção expressa de quem julga (noção de agência). Os dilemas que carecessem de ao menos um dos elementos anteriores seriam considerados impessoais, de conter juízos morais, ou neutros se referiam a outro tipo de juízo como pode ser o de utilizar um determinado tipo de ingredientes em uma receita de torta que exigem outros.
O interessante não é tanto a resposta que deram os participantes do experimento, mas sim as zonas cerebrais que se lhes ativaram de forma distinta quando se enfrentavam aos dilemas morais pessoais, os dilemas morais impessoais e os dilemas sem conteúdo moral. De acordo com os resultados obtidos por Greene e colaboradores (2001), a condição pessoal (footbridge) ativou de maneira significativamente maior o giro medial frontal (áreas de Brodmann – BA - 9 e 10), o giro posterior cingulado (BA 31) e o giro angular nos dois hemisférios (BA 39). Todas essas áreas se consideram relacionadas com o processamento das emoções.
Pelo contrário, os dilemas morais impessoais (trolley) e os neutros moralmente ativaram de maneira significativamente maior o giro medial frontal direito (BA 46) e o lóbulo parietal de ambos hemisférios (BA 7/40), áreas que se relacionam com a memória de trabalho. O resultado indica, pois, uma implicação das emoções nos juízos sobre dilemas pessoais frente ao cálculo presente nos impessoais e os neutros. O trabalho original de Greene e colaboradores foi ampliado mais tarde (Greene et al, 2004) tendo em conta esta vez as respostas dos indivíduos aos dilemas pessoais mas sem diferenças dignas de maior comentário.
É possível destacar algumas sombras na interpretação do desenho experimental de Greene e colaboradores (2001). Em primeiro lugar, os correlatos neuronais do juízo associado a dilemas impessoais e neutros foram na prática idênticos com a ressalva de alguns pontos da área BA 7/20 do hemisfério direito. Para completar, o ponto chave onde poderia haver sido possível buscar diferenças adicionais, o córtex orbifrontal, não se pôde estudá-lo devido a certos artefatos criados pela suscetibilidade magnética. Mas também existem algumas dúvidas de conceito. Ainda que os sujeitos dos experimentos optem por uma solução distinta no caso da alavanca e no da ponte, é mais duvidoso – como sugerem, por outra parte, os próprios autores ao final de seu artigo - que se possa chamar de “impessoal” à ação quando se obriga a sacrificar uma pessoa, e ainda mais digno de suspeita que essas ações impessoais ativem os mesmos circuitos no cérebro que os juízos não morais ao estilo de se é correto utilizar nozes normais em uma receita pensada para nozes de macadâmia. Ou bem a inteligência humana esconde uns certos traços de perversidade e indiferença com relação à sorte de nossos congêneres, ou bem o experimento põe de manifesto chaves mentais distintas à de um juízo moral.
O trabalho de Jorge Moll e colaboradores (2002) ofereceu a tal respeito algumas pistas usando dilemas que implicavam juízos morais (exemplo: o juiz condenou a um inocente), juízos não morais neutros (as crianças obesas devem seguir dieta), juízos não morais mas desagradáveis (limpou a retrete com a língua) e juízos sem nenhum sentido (o turno vital dos sapatos bebidos era irmão). Os juízos morais ativaram o córtex medial orbitofrontal, o pólo temporal e o sulco temporal superior do hemisfério esquerdo enquanto que os não morais, mas desagradáveis o fizeram respeito da amígdala esquerda, o giro lingual e o giro lateral orbital.
Em opinião dos autores, a coincidência neste último caso com as zonas que Greene e colaboradores indicavam como próprias dos juízos morais pessoais aponta à ativação de zonas emotivas não tanto pela necessidade de decidir a moralidade de uma ação como pelas circunstâncias desagradáveis das condutas que se sugerem no experimento, de evidente importância à hora de empurrar a uma pessoa desde uma ponte. Pelo que se refere à ativação ligada ao juízo moral, o trabalho de Moll e colaboradores confirmou pautas já conhecidas como é o da implicação do córtex medial orbitofrontal. Mas o fato de que os juízos morais utilizados não ativassem zonas límbicas e sim zonas occipitais relacionadas com a visão demonstra a necessidade de se levar a cabo novos experimentos com mais sujeitos e em condições melhor controladas.
O desenho do cérebro que está aparecendo graças aos estudos da engenharia cerebral aponta já algumas pistas dignas de menção. Em primeiro lugar, a confirmação aquelas hipóteses lançadas por Crick e Koch (1990) acerca da consciência como uma atividade sincronizada de neurônios que se encontram situados em lugares distintos do córtex cerebral, coisa que acaba por colocar em cheque algumas das idéias mais firmes do funcionalismo computacional e da concepção estrita da suposto modularidade dos processos cognitivos (Fodor, 1983), como por exemplo: o de um processador central e um progresso bottom-up da percepção até chegar aos processos superiores.
No que chamamos "conhecimento" intervêm seqüências de ativação complexas cujas dimensões espaciais e, sobretudo, temporais não puderam ser postas de manifesto até o desenvolvimento de técnicas tão precisas como a da magnetoecefalografia, capaz de detectar a ativação neuronal em lapsos de centésimos de segundo.
Por outro lado, a caracterização neurológica da moral sim que parece compatível com uma psicologia evolucionista que entenda que uns mesmos processos cognitivos intervenham em diferentes tarefas ou para resolver diferentes problemas (Shapiro & Epstein,1998).
Estamos longe ainda de contar com um mapa preciso das ativações espaço temporais relacionadas com os processos cognitivos, mas parece que vamos trilhando um bom caminho para começar a fazê-lo e a compreendê-lo. Em termos gerais vai aparecendo um panorama em que o córtex pré-frontal joga um papel de primeira ordem respeito do que são os processos cognitivos superiores, coisa que, por outra parte, havia sido já sugerida, ainda que fosse a título de hipóteses especulativa, pelos paleoantropólogos (Deacon, 1996; 1997).
Seja como for, e ainda que não saibamos grande coisa acerca do funcionamento dos correlatos cerebrais que ditam o sentido da moral e da justiça, converter esse mar de especulações em certeza é decerto a tarefa que se espera da ciência, no preciso sentido de que uma compreensão mais profunda das causas últimas (radicadas em nossa natureza) do comportamento moral e jurídico humano poderá ser de grande utilidade para averiguar quais são os limites e as condições de possibilidade da ética e do direito no contexto das sociedades contemporâneas.
Referências:
Adolphs, R., Tranel, D., & Damasio, A. (1998).
Bechara, A., Damasio, H., Damasio, A. R., & Lee, G. P. (1999). Different contributions of the human amygdala and ventromedial prefrontal cortex to decision-making. J Neurosci, 19, 5473-5481.
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Damasio, H., Grabowski, T., Frank, R., Galaburda, A. M., & Damasio, A. R. (1994). The Return of the Phineas Gage: Clues About the Brain from the Skull of a Famous Patient. Science, 264, 1102-1105.
Deacon, T. (1997). The Symbolic Species. New York, NY: W.W. Norton & Company.
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Fischer, R. (1990). Why the Mind is not in the Head but in the Society's Connectionist Network. Diogenes, 151, 1-24.
Fodor, J. A. (1983). The Modularity of Mind. Cambridge, MA: M.I.T Press.
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*Advogado membro do ICED - Instituto Comportamento, Evolução e Direito
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