A flexibilização dos princípios constitucionais de acesso universal, igualitário e gratuito à saúde
Louise Emily Bosschart*
Trata-se da lei complementar 1.131/10 (clique aqui), de autoria do governador do Estado de São Paulo, que permite que estabelecimentos públicos de saúde destinados à prestação de serviços especializados e/ou de alta complexidade, como é o caso do INCOR, do Instituto do Coração e do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, reservarem 25% de sua capacidade operacional para atender pacientes usuários do sistema privado e conveniado.
A nova lei encontra-se em linha com a lei Federal 9.656/98 (clique aqui) e com a lei do Estado de São Paulo 9.058/94 (clique aqui), que igualmente preveem a possibilidade de o sistema público de saúde pleitear o reembolso de despesas incorridas com pacientes pertencentes ao sistema conveniado. A diferença entre as referidas leis é que a lei complementar se destina a um grupo seleto de estabelecimentos, enquanto que as demais abrangem o sistema público de saúde como um todo, sem qualquer distinção.
A despeito da aparente boa intenção das referidas normas, que, segundo consta, não visam restringir o acesso ao sistema público de saúde pela parcela menos favorecida da população, mas, ao contrário, angariar recursos de forma a incrementar a quantidade e a qualidade dos serviços públicos de saúde, o fato é que representam uma nítida e perigosa flexibilização dos princípios constitucionais de acesso universal, igualitário e gratuito à saúde e dever do Estado em provê-la.
A Constituição Federal de 1988 (clique aqui) elevou o direito à saúde à condição de direito fundamental do homem, cabendo ao Estado adotar as medidas necessárias à sua promoção, extensiva a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, independentemente de sua situação econômica.
Ao reservar parcela do atendimento público de saúde a setores privados da sociedade, o Poder Público está em outras palavras retirando de tais pacientes o direito de receberem tratamento gratuito por parte do Estado, em literal ofensa aos princípios constitucionais que norteiam o direito à saúde. Da mesma forma, ao prever a possibilidade de o sistema público de saúde ser financiado diretamente por setores privados da sociedade, o Estado está relativizando o dever de prestação do aludido direito fundamental, de responsabilidade exclusiva do Estado.
Sob a aparência de uma norma que tem por objetivo alcançar um bem maior à sociedade, o que se vislumbra é um perigoso precedente à flexibilização de outros direitos fundamentais devidos pelo Estado ao cidadão. Hoje é o direito à saúde, amanhã poderão ser outros direitos fundamentais do homem, que, sob a eterna desculpa da falta de recursos, serão paulatinamente transferidos à esfera de responsabilidade de setores privados da sociedade.
Em um mundo ideal, onde os altos impostos pagos ao Estado fossem efetivamente revertidos ao fim a que se destinam, e a páginas dos jornais não amanhecessem repletas de denúncias envolvendo o desvio de recursos públicos, muito provavelmente não se estaria diante dessa inversão de papéis, onde o Estado está a transferir ao particular todos os ônus da sociedade, reservando para si o papel de monarca absoluto, destituído de quaisquer deveres e obrigações, mas apenas de direitos.
A constitucionalidade da lei 9.656/98 vem sendo questionada perante o Poder Judiciário, seja no âmbito de ações individuais ajuizadas contra a rede pública de saúde, seja no âmbito de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal, a quem cumprirá a palavra final sobre o assunto.
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*Sócia do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados, com expertise na área contenciosa geral, com destaque para as áreas de litígios complexos envolvendo responsabilidade civil e Direito do Consumidor
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