Migalhas Quentes

Sobre coisas e pessoas

3/12/2009


Sobre coisas e pessoas

Eça de Queirós - personagens e cenas jurídicas de um homem do Direito

"Mudava de amos mas não mudava de sorte".

Era assim que Juliana - a empregada doméstica de "O Primo Basílio" - definia seu fado.

Complexa, multifacetada, pode-se dizer que esta é a personagem mais bem acabada deste romance de Eça de Queirós. Se por um lado sua história começa por incutir no leitor a sensação de piedade, em vista da condição de exploração e abandono afetivo em que vive, por outro termina gerando ódio, e talvez um certo desprezo, à medida que a revolta da personagem com sua sorte na vida a conduzem à maldades.

Uma delas, quanto chantageava Luísa, a patroa.

E é justamente ao confrontar Juliana e Luísa, que Eça de Queirós chama a atenção para a relação entre classes. Para pensarmos sobre esse assunto e entender a trajetória de Juliana na trama, retomemos algumas das cuidadosas descrições que acompanham toda a narrativa do livro sobre as condições de trabalho e tratamento da doméstica.

Vale saber que Juliana tinha já seus 40 anos. Era bastarda, feia, solteirona e doente. Há vinte anos trabalhava servindo os outros. Como ela mesma lamentava :

"vinte anos a dormir em cacifos, a levantar-se de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saúde !".

Na casa de Luísa, Juliana estava servindo há mais de um ano. Servira primeiro a tia de Jorge, marido de Luísa, e com a morte desta passara à casa do sobrinho. O lugar que lhe cabia ali era o sótão. Ali dormia.

"O quarto era baixo, muito estreito, com o teto de madeira, inclinado; o sol, aquecendo todo o dia as telhas por cima, fazia-o abafado como um forno; havia sempre à noite um cheiro requentado de tijolo encandecido. Dormia num leito de ferro, sobre um colchão de palha mole coberto de uma colcha de chita".

Juliana não era a única empregada da casa, mas era a única a almejar um destino diferente. Tinha seus sonhos, queria ter seu próprio comércio, servir somente a si mesma. Como não conseguira, tomou-lhe conta a amargura.

Mas quando descobriu a proibida relação amorosa de Luísa e Basílio, e teve em mãos as correspondências que provavam efetivamente a relação adúltera da patroa, viu nisso um passaporte para mudar seu destino. Estava em suas mãos a arma da chantagem. Enfim, mudaria de vida !

Assim, numa certa manhã, quando Jorge, o marido traído, havia saído para o trabalho, Juliana entrou no quarto de Luísa, fechou a porta devagarinho e com a voz muito amável iniciou o diálogo da vingança social :

— Eu desejava falar à senhora uma coisa.

E começou a dizer — que o seu quarto em cima no sótão era pior que uma enxovia ; que não podia lá continuar ; o calor, o mau cheiro, os percevejos, a falta de ar, e no inverno a umidade, matavam-na ! Enfim, desejava mudar para baixo, para o quarto dos baús.

O quarto dos baús tinha uma janela nas traseiras ; era alto e espaçoso; guardavam-se ali os oleados de Jorge, as suas malas, os paletós velhos, e veneráveis baús do tempo da avó, de couro vermelho com pregos amarelos, os quais davam nome ao aposento.

— Ficava ali como no céu, minha senhora!

— E... aonde se haviam de pôr os baús?

— No meu quarto, em cima. E com um risinho: — Os baús não são gente, não sofrem...

Não vamos adiante na história, leitor, pois você bem se lembra do desfecho. Caso não se recorde, eis uma boa oportunidade para revisitar a obra.

Hoje em dia, não é mais necessário nenhum tipo de chantagem ou vingança para se conseguir os simples benefícios a que almejava Juliana.

De fato, o ministério do Trabalho regulamenta o trabalho doméstico e assegura os direitos e deveres tanto do empregador como também do empregado (clique aqui). Dentre esses estão as condições mínimas de saúde e conforto.

E se o empregado doméstico for contratado de modo a morar na mesma casa em que os patrões, a habitação deve ter sua capacidade dimensionada de acordo com o número de moradores e possuir, entre outras coisas, exatamente o que Juliana pleiteava : ventilação e iluminação suficientes ; pisos, paredes e cobertura adequados ; e portas e janelas capazes de proporcionar vedação suficiente. Tudo isso, evidentemente, sem descontos no vencimento do empregado.

O que nos perguntamos é : será que Luísa não sabia das condições do quarto em que dormia a empregada ?

A beleza do diálogo criado por Eça de Queirós está em expor a inversão do valor que se dá, em alguns casos, para as coisas e para as pessoas. Ou seja, a patroa preocupava-se mais com o bem-estar do baú do que da empregada. No que rapidamente Eça, pela boca de Juliana, advertiu : "os baús não são gente, não sofrem...".

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Leia mais

  • 8/12/09 - Crônica de um sonho - clique aqui.
  • 7/12/09 - República - clique aqui.

  • 4/12/09 - Correspondência - clique aqui.

  • 3/12/09 - Sobre coisas e pessoas - clique aqui.

  • 2/12/09 - Médico ou advogado? - clique aqui.

  • 1º/12/09 - Crime do padre, Amaro ou Mouret - clique aqui.

  • 30/11/09 - Juridiquês - clique aqui.

  • 27/11/09 - Lei de Imprensa - clique aqui.

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