Sobre coisas e pessoas
Eça de Queirós - personagens e cenas jurídicas de um homem do Direito
Era assim que Juliana - a empregada doméstica de "O Primo Basílio" - definia seu fado.
Complexa, multifacetada, pode-se dizer que esta é a personagem mais bem acabada deste romance de Eça de Queirós. Se por um lado sua história começa por incutir no leitor a sensação de piedade, em vista da condição de exploração e abandono afetivo em que vive, por outro termina gerando ódio, e talvez um certo desprezo, à medida que a revolta da personagem com sua sorte na vida a conduzem à maldades.
Uma delas, quanto chantageava Luísa, a patroa.
E é justamente ao confrontar Juliana e Luísa, que Eça de Queirós chama a atenção para a relação entre classes. Para pensarmos sobre esse assunto e entender a trajetória de Juliana na trama, retomemos algumas das cuidadosas descrições que acompanham toda a narrativa do livro sobre as condições de trabalho e tratamento da doméstica.
Vale saber que Juliana tinha já seus 40 anos. Era bastarda, feia, solteirona e doente. Há vinte anos trabalhava servindo os outros. Como ela mesma lamentava :
"vinte anos a dormir em cacifos, a levantar-se de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saúde !".
Na casa de Luísa, Juliana estava servindo há mais de um ano. Servira primeiro a tia de Jorge, marido de Luísa, e com a morte desta passara à casa do sobrinho. O lugar que lhe cabia ali era o sótão. Ali dormia.
"O quarto era baixo, muito estreito, com o teto de madeira, inclinado; o sol, aquecendo todo o dia as telhas por cima, fazia-o abafado como um forno; havia sempre à noite um cheiro requentado de tijolo encandecido. Dormia num leito de ferro, sobre um colchão de palha mole coberto de uma colcha de chita".
Juliana não era a única empregada da casa, mas era a única a almejar um destino diferente. Tinha seus sonhos, queria ter seu próprio comércio, servir somente a si mesma. Como não conseguira, tomou-lhe conta a amargura.
Mas quando descobriu a proibida relação amorosa de Luísa e Basílio, e teve em mãos as correspondências que provavam efetivamente a relação adúltera da patroa, viu nisso um passaporte para mudar seu destino. Estava em suas mãos a arma da chantagem. Enfim, mudaria de vida !
Assim, numa certa manhã, quando Jorge, o marido traído, havia saído para o trabalho, Juliana entrou no quarto de Luísa, fechou a porta devagarinho e com a voz muito amável iniciou o diálogo da vingança social :
— Eu desejava falar à senhora uma coisa.
E começou a dizer — que o seu quarto em cima no sótão era pior que uma enxovia ; que não podia lá continuar ; o calor, o mau cheiro, os percevejos, a falta de ar, e no inverno a umidade, matavam-na ! Enfim, desejava mudar para baixo, para o quarto dos baús.
O quarto dos baús tinha uma janela nas traseiras ; era alto e espaçoso; guardavam-se ali os oleados de Jorge, as suas malas, os paletós velhos, e veneráveis baús do tempo da avó, de couro vermelho com pregos amarelos, os quais davam nome ao aposento.
— Ficava ali como no céu, minha senhora!
— E... aonde se haviam de pôr os baús?
— No meu quarto, em cima. E com um risinho: — Os baús não são gente, não sofrem...
Não vamos adiante na história, leitor, pois você bem se lembra do desfecho. Caso não se recorde, eis uma boa oportunidade para revisitar a obra.
Hoje em dia, não é mais necessário nenhum tipo de chantagem ou vingança para se conseguir os simples benefícios a que almejava Juliana.
De fato, o ministério do Trabalho regulamenta o trabalho doméstico e assegura os direitos e deveres tanto do empregador como também do empregado (clique aqui). Dentre esses estão as condições mínimas de saúde e conforto.
E se o empregado doméstico for contratado de modo a morar na mesma casa em que os patrões, a habitação deve ter sua capacidade dimensionada de acordo com o número de moradores e possuir, entre outras coisas, exatamente o que Juliana pleiteava : ventilação e iluminação suficientes ; pisos, paredes e cobertura adequados ; e portas e janelas capazes de proporcionar vedação suficiente. Tudo isso, evidentemente, sem descontos no vencimento do empregado.
O que nos perguntamos é : será que Luísa não sabia das condições do quarto em que dormia a empregada ?
A beleza do diálogo criado por Eça de Queirós está em expor a inversão do valor que se dá, em alguns casos, para as coisas e para as pessoas. Ou seja, a patroa preocupava-se mais com o bem-estar do baú do que da empregada. No que rapidamente Eça, pela boca de Juliana, advertiu : "os baús não são gente, não sofrem...".
_________
________
-
9/12/09 - Migalhas de Eça de Queirós - clique aqui.
7/12/09 - República - clique aqui.
4/12/09 - Correspondência - clique aqui.
3/12/09 - Sobre coisas e pessoas - clique aqui.
2/12/09 - Médico ou advogado? - clique aqui.
1º/12/09 - Crime do padre, Amaro ou Mouret - clique aqui.
30/11/09 - Juridiquês - clique aqui.
27/11/09 - Lei de Imprensa - clique aqui.
26/11/09 - Jogo de Xadrez - clique aqui.
25/11/09 - Saudosismo - clique aqui.
24/11/09 - Relíquias à venda - clique aqui.
23/11/09 - Cara ou coroa ? - clique aqui.
20/11/09 - Crime : matar a esposa - Pena : varrer as ruas - clique aqui.
19/11/09 - Com seus botões, obrigatoriamente - clique aqui.
18/11/09 - Farpas contra a censura - clique aqui.
17/11/09 - Trajetória de um gênio - clique aqui.
_________