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Ministro Rafael Mayer relembra 1988

Um dos momentos mais vívidos da memória do ministro Luiz Rafael Mayer, de Luiz Rafael Mayer - Consultoria Jurídica, é o dia 5 de outubro de 1988 – data em que a atual Constituição Federal, conhecida como "Carta Cidadã", foi promulgada.

8/10/2008


Carta Cidadã

Presidente do Supremo entre 1987 e 1989 lembra a promulgação da Carta Cidadã

Um dos momentos mais vívidos da memória do ministro Luiz Rafael Mayer, de Luiz Rafael Mayer - Consultoria Jurídica, é o dia 5 de outubro de 1988 – data em que a atual Constituição Federal, conhecida como "Carta Cidadã", foi promulgada.

Nessa época, como presidente do STF, este paraibano de Monteiro representou o Poder Judiciário no juramento à Lei Maior, da qual o STF é o maior guardião. Na mesa da Câmara dos Deputados, com Ulysses Guimarães, presidente da Assembléia Nacional Constituinte, e o então presidente José Sarney, Rafael Mayer pronunciou o histórico juramento em que os representantes dos Três Poderes da República prometeram fidelidade às leis ali apresentadas.

Nesta entrevista, realizada no Recife, em Pernambuco – cidade onde Rafael Mayer começou a carreira e para onde voltou no ano passado com a família –, o ministro aposentado relembra as circunstâncias que envolveram a aprovação da Carta que, no domingo, completa 20 anos de vigência. Uma Constituição que representou a volta da democracia e do Estado de Direito moderno.

Qual era a necessidade de uma nova Constituição no final dos anos 80?

Ministro Luiz Rafael Mayer – O governo militar teve, da sua maneira, a sua legitimidade: seguiu uma Constituição e teve presidentes eleitos pelo Congresso. Mas havia restrições às liberdades individuais e houve os atos e períodos de exceção, a exemplo do AI-5 (Ato Institucional nº 5). Castelo Branco (o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco) era um democrata que pretendia colocar o País em ordem e imediatamente devolvê-lo ao controle civil, mas outros dentro do governo, como o Costa e Silva (marechal Artur da Costa e Silva), se aproveitaram e levaram o regime a demorar mais do que era preciso e previsto. Por isso o País teve de reivindicar eleições diretas e novas leis em certo ponto da história. O movimento “Diretas Já” foi um clamor pela legalidade, pelo voto direto e pelo Estado Democrático de Direito.

Como o senhor descreve o relacionamento entre aquela Assembléia Constituinte e o Supremo?

Rafael Mayer – O relacionamento do Supremo com o Poder Legislativo era ótimo. Procurei ser presente defendendo as posições de interesse institucional do STF no resguardo das suas competências, prerrogativas e valores. Ulysses Guimarães sempre foi atento às reivindicações do STF em relação ao texto. O relator do Capítulo sobre o Poder Judiciário era o deputado pernambucano Egídio Ferreira Lima. Ele foi interlocutor entre o Supremo e a Assembléia. Foi dessa relação que tomou forma a idéia de se criar o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Como foi presidir o Tribunal num período de transição do ordenamento jurídico?

Rafael Mayer – O período de transição de um para outro ordenamento jurídico-constitucional não foi tumultuado, mas tranqüilo e espaçado no tempo. Como dirigente do STF, eu quase o não senti, nem tive, nem eu nem o Ttribunal, de adotar providências específicas para atender ao transitório. O Supremo atuou de acordo com as atribuições e competências definidas na ordem constitucional anterior. Somente em abril, quando eu já não era presidente (Rafael Mayer se aposentou em março de 1989), foi instalado o Superior Tribunal de Justiça, sob a presidência do Supremo.

Houve uma sensação de insegurança jurídica nos acórdãos durante a Assembléia Nacional Constituinte, uma vez que o poder constituinte originário não preserva, necessariamente, direito adquirido, coisa julgada e o ato jurídico perfeito?

Rafael Mayer – O espírito que presidiu a Assembléia Constituinte foi o de criar e reconhecer direitos e garantias da ordem jurídica precedente, não de suprimi-los; por isso, em todo o texto constitucional, só se encontra um dispositivo em que há o exercício do mencionado poder constituinte originário (que tira os direitos adquiridos), assim mesmo inspirado no princípio da moralidade administrativa. É o artigo 17 do Ato das Disposições Constitucionais Provisórias que limita vencimentos, remuneração, vantagens e os subsídios, bem como os proventos de aposentadoria, percebidos em desacordo com a Constituição não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título. Para suprimir o direito adquirido é que o faça expressa e especificamente, pois, se não o faz, estará a valer e ser eficaz o seu próprio preceito que confere essas garantias individuais. Cito o ministro Gilmar Mendes, em sua obra “Curso de Direito Constitucional”, na página 201: “O STF passou a entender que somente quando a nova norma constitucional claramente ressalva uma situação, que seria agora inválida, mas criada licitamente antes dela, somente nesses casos a situação merece continuar a ser protegida. De toda sorte, os efeitos dos atos praticados anteriormente que se exauriram antes da nova norma constitucional não sofrem a influência da nova norma constitucional, a não ser que esta seja expressa nesse sentido. Em suma, a norma superveniente do poder constituinte originário, a não ser quando diz o contrário, tem aplicação sobre situações constituídas antes de sua vigência, exatamente sobre os efeitos que o ato praticado no passado tenderia a produzir sob a vigência da nova norma constitucional".

E como a criação do STJ refletiu no dia-a-dia do Supremo?

Rafael Mayer – Antes do STJ, o Supremo acumulava as funções de julgar as matérias infraconstitucionais e constitucionais. Com a criação desse tribunal superior, as questões infraconstitucionais passaram para a esfera do STJ, o que alterou em muito as competências da Corte Suprema. Podemos dizer que o STJ é um desdobramento do Supremo, com uma importância enorme. O STJ saiu das entranhas do STF, tanto isso é verdade que, no período de transição, os dois funcionaram num mesmo prédio.

Por que a Constituição é chamada de Carta Cidadã?

Rafael Mayer – Ulysses Guimarães, um homem extraordinário, fez um notabilíssimo discurso na promulgação da Constituição e ali a chamou de cidadã referindo-se à intensa participação popular na elaboração do texto – porque quem quis se manifestou e foi acolhido. Além disso, ela fortaleceu direitos e garantias individuais que, até então, haviam sido suprimidos.

Quais as maiores conquistas da Carta?

Rafael Mayer – O estabelecimento do Estado Democrático de Direito, sem dúvida. O cidadão se sentiu seguro e protegido diante do Estado. Muita gente reclama por ser uma Carta muito detalhista. Mas isso é, de certa forma, muito bom, porque mais assuntos se tornaram constitucionais e realmente ajudaram na transformação histórica e social do Brasil.

O senhor pode dar exemplos?

Rafael Mayer – Questões de raça e de meio ambiente, por exemplo, precisavam estar no texto constitucional para produzir os efeitos que vemos hoje e até para transformar as mentalidades.

O que a Constituição mudou no que diz respeito ao controle de constitucionalidade?

Rafael Mayer – Na Carta de 1967 havia menos matérias no texto constitucional. Com isso, não eram tão comuns os questionamentos sobre a constitucionalidade das leis, já que vários assuntos não eram abrangidos por ela. Em 1988, muitos assuntos viraram constitucionais por estarem contemplados na Lei Magna. Outra diferença é que hoje um número maior de pessoas pode levantar uma ação de inconstitucionalidade. Antes, apenas o titular do cargo equivalente ao do Procurador-Geral da República poderia fazê-lo.

E quais as conseqüências da criação do Ministério Público a partir de 1988?

Rafael Mayer – Hoje ele tem enormes poderes dentro da Constituição para atuar em defesa das instituições, dos interesses coletivos ou difusos ou quando não há quem os defenda, como é o caso, por exemplo, dos índios.

A Constituição atendeu aos interesses do País naquela época?

Rafael Mayer – Certamente. E está atendendo até hoje, seja pelo texto original ou pelas emendas constitucionais (hoje elas somam 56).

Por que a Constituição sofre tantas emendas?

Rafael Mayer – Emendas são necessárias para acompanhar o processo de evolução da sociedade. São feitas quando ocorrem fatos que levam o legislador derivado a perceber necessidades específicas na lei. Por exemplo: houve uma emenda estabelecendo como hediondos os crimes de racismo. Essa foi uma resposta a manifestações racistas ocorridas depois da promulgação da Carta. O importante é que a própria Constituição estabeleceu critérios rígidos e maiorias qualificadas para a mudança do seu texto – e ainda trouxe as cláusulas imutáveis, ou pétreas, que representam um núcleo inalterável.

Como o senhor avalia os 20 primeiros anos de vigência da Constituição Federativa de 1988?

Rafael Mayer – A avaliação é muito positiva. A Constituição atende aos anseios do povo brasileiro e garante direitos. Também dá espaço para o Ministério Público agir amplamente na defesa dos interesses do povo brasileiro.

É possível avaliar o Supremo de hoje comparando-o com o da sua época?

Rafael Mayer – Os ministros atuantes hoje julgam em uma outra época e outro ambiente – e nenhum deles sequer foi meu contemporâneo. Eu não avalio o STF de hoje, eu procuro entender. O volume de matérias hoje é muito maior, e a ampliação das atribuições da Corte aumentou o interesse público em relação ao seu trabalho. Julgamentos como a demarcação das terras indígenas e dos fetos anencéfalos trazem a sociedade para dentro da Corte.

A imagem do deputado Ulysses Guimarães promulgando a Constituição faz parte da memória cultural do País. O que foi o dia 5 de outubro de 1988 para o senhor?

Rafael Mayer – Eu jurei fidelidade à Constituição em nome do Poder Judiciário e eu me emociono em me lembrar daquele momento até hoje. Marcou muito. A gente passa por essa vida, deixa algumas marcas e leva muitas saudades. Essa é uma delas.

Biografia do Ministro Luiz Rafael Mayer

Nascido em Monteiro, cidade da Serra da Borborema, Luiz Rafael Mayer foi cedo estudar na capital pernambucana. Primogênito dos sete irmãos, ele sonhava ser agrônomo para lidar com as terras da caatinga, que hoje define como "uma paisagem pobre, mas amável". Mas foi estimulado a aprender as leis pelos padres do colégio interno.

Em março próximo fará 90 anos e, com invejável lucidez, é capaz de lembrar detalhes da vida de moço – como o som da sanfona de Januário, pai de Luiz Gonzaga, que tocava nas festas do interior do estado, em cidades onde Mayer exercia a função de promotor público.

Virou prefeito da cidade natal e Procurador de Justiça de Pernambuco. Nos estudos, especializou-se em Direito Administrativo, embora hoje destaque o conhecimento do Direito Civil como "o mais completo e prático de todos". Nos assuntos que mais o interessavam, está o direito dos índios. Ele participou da Fundação Nacional do Índio e da redação do Estatuto dos Povos Indígenas. E justifica razões familiares para defender os antigos donos das terras brasileiras: "Dizem que a minha bisavó era índia e foi pega a dente de cachorro para casar com o seu bisavô", brinca.

No governo de João Goulart, foi assessor do ministro da Fazenda, Carvalho Pinto, no Rio de Janeiro, onde morou por dez anos até chegar a Brasília, em 1970, dirigindo um fusca azul 58. "Era tanta poeira que os carros andavam nas nuvens de terra vermelha", lembra.

Quando foi indicado pelo general Ernesto Geisel ao STF, Mayer era Consultor-Geral da República, cargo hoje equivalente ao de Advogado-Geral da União. Ele acredita que ser juiz é uma tarefa divina "que Deus repassa a alguns homens". E cita a passagem bíblica em que Jesus Cristo aconselha que não se julgue para não ser julgado. "Então julgar é uma tarefa conferida e delegada por Deus", compara Mayer.

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