Com mais de 80 milhões de processos em trâmite, segundo dados de 2023 do CNJ, a desembargadora aposentada Christine Santini descreveu a realidade da Justiça brasileira como “um verdadeiro milagre”, considerando as dificuldades que o excesso de demandas impõe aos magistrados e advogados.
Para enfrentar esses desafios, Christine destacou, durante o evento Inteligência Artificial na Prática Jurídica, realizado pelo portal Migalhas, que o Direito precisa adotar novas tecnologias com a mesma agilidade observada em áreas como a Medicina, em que a IA já é amplamente utilizada.
“No Direito tudo evolui muito lentamente, há apego a formalidades, a processos há muito solidificados. Na Medicina, ao contrário, esse desenvolvimento é absurdamente rápido.”
Christine destacou que, apesar da necessidade urgente de inovação, a adoção da IA no Direito deve ser feita com cautela e transparência para evitar o “Black Boxing".
O que é “Black Boxing”?
Para a tecnologia, é o processo de tornar o funcionamento interno de sistemas complexos, como algoritmos ou dispositivos, opaco ou invisível para o usuário. Isso significa que as pessoas veem os resultados sem entender como foram obtidos, o que pode facilitar o uso, mas levanta questões de transparência e segurança.
A desembargadora ilustrou o risco do “Black Boxing” com um exemplo de 2016 sobre IA: a máquina, treinada para identificar lobos, confundiu um husky siberiano com um lobo porque associou erroneamente a presença de neve na imagem como um dos critérios principais.
“Aquilo não é uma pessoa pensando, aquilo é uma ferramenta que usa algoritmo e que funciona de uma maneira diferente."
Por isso, a Christine reforça que a transparência e responsabilidade no uso de IA são fundamentais. “Nós temos que utilizar meios para evitar Black Boxing".
Demandas repetitivas e demandas reais
Em sua análise sobre as mudanças necessárias, Christine sugeriu que a Justiça brasileira poderia se beneficiar da divisão dos processos em duas categorias: demandas repetitivas, que representam a maioria e envolvem questões com jurisprudência consolidada; e demandas reais, casos específicos que requerem uma análise aprofundada.
“As demandas repetitivas que são propostas em massa têm que ter tratamento em massa; as demandas que eu chamo de reais, elas têm que ter um tratamento absolutamente individualizado.”
Segundo Christine, essa abordagem não só reduziria a sobrecarga dos juízes, mas também melhoraria a qualidade das decisões em casos de maior complexidade.
Além disso, a desembargadora aposentada sugeriu que o Direito deveria adotar métodos de gerenciamento de projetos, visando uma maior organização e eficiência.
Otimização
Ainda no evento, Christine ressaltou que o Brasil precisa de um sistema verdadeiramente digital, em que advogados possam peticionar diretamente na plataforma digital da Corte. Dessa forma, uma IA poderia realizar uma triagem inicial e gerar minutas de decisões para revisão do juiz, otimizando o fluxo dos processos.
No entanto, Christine frisou que a responsabilidade no uso de IA recai sobre os profissionais do Direito.
“O profissional do Direito pode usar várias ferramentas a sua disposição, mas deve lembrar que é ele o responsável pelo trabalho final.”
Colaboração e modernização do sistema de Justiça
Christine chamou a atenção para a importância de uma colaboração mais estreita entre advogados, juízes e tribunais, visando que o sistema de Justiça brasileiro possa superar as dificuldades que enfrenta.
“O Judiciário não é o único responsável pelo sistema de Justiça que temos hoje; o sistema de Justiça envolve todos os players que dele participam e, em especial, a advocacia. É necessário união de esforços para torná-lo mais eficiente.”
Para ela, enquanto o Direito mantiver uma mentalidade antiquada, os problemas da Justiça continuarão se acumulando, colocando o sistema à beira do colapso.
Ao final, Christine enfatizou que o uso da tecnologia não substitui o papel reflexivo dos profissionais do Direito. “Ou nos adaptamos, ou ficaremos para trás".