Homem que pagou convênio familiar para um amigo não tem direito à restituição do valor que corresponderia à parcela da ex-esposa do colega. Decisão foi proferida pela juíza de Direito da 14ª vara Cível de Porto Alegre/RS, Maria Lucia Boutros Buchain Zoch Rodrigues. Além de negar o pedido do autor, a magistrada ainda o condenou ao pagamento de cinco salários-mínimos por abuso processual.
No caso, o homem alegou que, por "questões humanitárias", pagou um boleto de plano de saúde familiar do amigo no valor de R$ 3.141,95. Como a ex-esposa deste amigo também estava incluída no plano, o homem queria o ressarcimento de R$ 1.076,70, correspondente à parte da dívida que acreditava ser de responsabilidade da mulher.
Ela contestou a ação, afirmando que a obrigação de pagamento do plano de saúde era do ex-marido, conforme decisão judicial na ação de divórcio. Acusou o autor de criar demandas para atormentá-la, destacando que ela é mãe de dois filhos e enfrenta um câncer em estado avançado. Requereu a improcedência da ação, além da condenação do homem e de sua advogada por litigância de má-fé.
Em réplica, o autor argumentou que a defesa adotou um tom vitimista e que o reembolso não se confundia com sub-rogação. Defendeu que os efeitos da decisão de divórcio não o atingiam.
Negócios alheios
Em sentença, a magistrada entendeu que o homem agiu como gestor de negócios alheios, sem autorização (arts. 861 e seguintes do CC). Enfatizou que, embora o autor tenha pago as mensalidades do plano de saúde, a responsabilidade pelo pagamento era do ex-marido da ré, conforme estipulado judicialmente.
A juíza também considerou que o homem fez uso abusivo do processo, pois, em conluio com outros colegas, que ajudaram no pagamento do plano, moveram ações de cobrança, em juízos diversos, para pedir a restituição do valor à mulher.
"O mais inusitado nesse contexto não é, como aventado na inicial, o fato de uma pessoa pagar uma dívida de terceiro e ajuizar ação de cobrança. O que impressiona, e causa espécie, é a naturalidade com que é narrado o concerto feito entre o referido grupo de amigos para livrar o ex-marido da ré de obrigação a ele imposta em juízo. Revelando-o em detalhes - alguns até sem sentido como a descrição dos locais onde ocorrem as reuniões onde o plano vem sendo orquestrado -, o autor expõe, de forma clara, a utilização do processo como meio de constranger e tentar "vencer pelo cansaço" a demandada. Sem o menor senso crítico, não percebe que, em verdade, comete abuso de direito.", afirmou a julgadora.
Abuso processual
Assim, a magistrada condenou o homem ao pagamento das custas processuais, honorários advocatícios e de uma multa equivalente a cinco salários mínimos por uso abusivo do processo.
Lembrou que a Ministra Nancy Andrighi, no julgamento do REsp 1.817.845, descreveu o assédio processual como o exercício abusivo de direitos, devendo ser rigorosamente repelido.
315003
Foram citados precedentes do TJ/RS, no sentido de condenar o abuso de direito processual, reconhecendo-o como forma de violência, especialmente em casos onde a vítima é colocada em posição de vulnerabilidade extrema.
Também determinou a remessa de cópia dos autos à OAB/RS para análise da conduta da advogada do homem e intimou o MP para providências no âmbito criminal, considerando possível enquadramento nas infrações previstas nos arts. 147-B e 288 do CP.
Violência processual
Os advogados da mulher, Pedro Loureiro Cardoso Alves e Otávio Burle, da BCC Consultoria Jurídica, apontaram que o caso expõe uma problemática grave e recorrente: o uso abusivo de processo judicial como meio de violência processual, direcionada contra mulheres.
Violência processual
A violência processual refere-se ao uso abusivo ou inadequado dos meios e instrumentos processuais, ou seja, do sistema de justiça, com o objetivo de prejudicar, intimidar ou oprimir a outra parte envolvida no processo.
Afirmam que a sentença não apenas refutou a pretensão do homem, mas também lançou luz sobre o uso do processo judicial como arma de opressão.
"A decisão representa um marco importante na luta contra a violência processual, reafirmando a necessidade de proteger as partes vulneráveis e assegurar que o direito não seja utilizado como meio de intimidação e abuso. A condenação do autor por litigância de má-fé e o reconhecimento do assédio processual também servem como alerta para a necessidade de uma atuação judicial firme e criteriosa, garantindo que o acesso à justiça seja utilizado de forma legítima e ética", concluíram.
- Processo: 5213785-92.2023.8.21.0001
Veja a sentença.