Negra, escravizada, jovem, mãe de dois filhos e apartada do marido no interior do Piauí. Esta é a história de Esperança Garcia, primeira mulher a praticar advocacia no país, ainda no século XVIII.
Foram cinco anos de campanha até que o Conselho Federal da OAB aprovasse o documento escrito por ela, em 1770, como uma petição e a reconhecesse Esperança como primeira advogada do Brasil, em 2022. Antes, o posto era ocupado por Myrthe Gomes, que ingressou na advocacia mais de 100 anos depois, em 1899.
O reconhecimento culminou com a instalação de um busto em homenagem à Esperança Garcia na sede nacional da OAB, em Brasília/DF, em maio de 2023.
A demora no reconhecimento de Esperança como advogada permite refletir como o Judiciário, por si só, está atrasado no que diz respeito aos direitos das mulheres. Ainda que sejam maioria no setor, os espaços seguem reduzidos e as batalhas cresceram.
De acordo com a diretora Jurídica da Uber, Ianda Lopes, esse cenário desfavorável às advogadas se dá pela propagação do ideal da superioridade masculina.
“A área jurídica foi originalmente começada por homens e eles tendem a contratar homens, a promover homens. Então, a perpetuação dessa estrutura, onde o gênero masculino é o gênero que predomina, é uma das maiores barreiras para o crescimento das mulheres.”
Segundo a advogada do escritório Salusse, Marangoni, Parente e Jabur, Lina Santin, esse pensamento sexista criou barreiras ainda solidificadas no setor, como, por exemplo, questões envolvendo maternidade e a divisão das tarefas domésticas.
“A gente ainda tem na nossa sociedade com relação aos cuidados domésticos, aos cuidados dos filhos, aos cuidados dos familiares enfermos. A gente sabe que tudo isso recai muito mais fortemente sobre a mulher. Então, aqueles empregadores que não se atualizaram ainda olham a mulher sob essa ótica [de ter] uma produtividade menor [devido a] necessidade dela, muitas vezes, de se afastar do trabalho.”
Outro obstáculo enfrentado pelas advogadas está na sub-representação das minorias dentro do Judiciário, segundo a advogada e assessora-Chefe de Inclusão e Diversidade do TSE, Samara Pataxó.
“Quando você pensa em mulher [...] possivelmente são mulheres brancas, com condições sociais econômicas diferentes, [enquanto há] um número menor ou quase inexistente de mulheres indígenas nesses espaços de poder, por exemplo.”
A mesma reflexão é feita por Ianda Lopes, que ressalta a dificuldade das minorias dentro da própria comunidade de advogadas, a chamada barreira da interseccionalidade.
“Se a gente acha que o meio jurídico é um meio muito difícil para mulheres ele é mais ainda difícil quando a gente fala de cortes interseccionais, ou seja, de mulheres pretas, de mulheres lésbicas, entre outros.”
Para a advogada e conselheira de Notório Saber do Conselho Nacional das Mulheres, Luanda Pires, a busca pela equidade de gênero no Judiciário reflete na sociedade como um todo.
“A inserção da diversidade vai garantir que a sociedade brasileira tenha um Judiciário mais justo e alinhado com as necessidades de todas as pessoas pertencentes aos grupos historicamente minorizados e do próprio país, propiciando decisões muito mais justas e que tenham a condição de cumprir com papel da Justiça que é a de garantir também a Justiça social.”
A luta continua
Lina Santin acredita que para superar essas barreiras devem ser combatidas pelas empresas por meio de medidas às vezes muito simples como, por exemplo, instituir a licença-paternidade em igual período para os homens.
“Isso já ajudaria na base. Já faria com que é dentro dessa casa dentro desse casal que agora está se tornando é responsável pela vida de uma criança que haja a possibilidade de divisão igual é das tarefas atinentes a esse cuidado, isso já ajudaria bastante.”
Luanda ainda destacou a decisão recente do STF que entendeu ser inconstitucional a cobrança da contribuição previdenciária patronal sobre o salário-maternidade.
“Foi de extrema importância, uma vitória muito grande para essa luta da paridade de gêneros dentro do mercado de trabalho.”
Mesmo com os desafios impostos pelo sexismo, as respostas entre as advogadas são unânimes: “não vamos desistir”. Para Luanda Pires, a motivação para continuar lutando por espaço no jurídico está justamente na crença no papel dos princípios da Justiça.
“O que me motiva a continuar lutando é a própria Justiça, acreditar no direito como instrumento de transformação social capaz de desenvolver a Justiça e garantir a implementação dos princípios constitucionais fundamentais que são a base do próprio Estado Democrático de Direito.”
A mesma motivação é descrita por Samara Pataxó, que visa a democracia dentro do setor como combustível para superar as barreiras e garantir diversidade.
“Eu sei que aqui cheguei não foi à toa, mas que depois de mim quero que muitas também venham e que haja maior representatividade de gênero de mulheres e também de raça, mulheres pretas, mulheres indígenas, mulheres quilombolas no Judiciário e outros espaços de poder.”