Na tarde desta segunda-feira, 26, relatores-gerais da comissão de juristas que elaborou proposta de atualização do Código Civil brasileiro (lei 10.406/02) apresentaram relatório final no Senado.
O documento foi produzido com base em sugestões encaminhadas por estudiosos e representantes dos setores da sociedade civil e debatidas em reuniões dos juristas no Senado e nos Estados.
Pela manhã, a comissão realizou audiência pública com o ministro da Suprema Corte argentina, Ricardo Lorenzetti, para entender quais foram os desafios, a organização e as estratégias na elaboração do novo Código Civil da Argentina.
Nesta segunda se inicia o prazo para emendas e destaques, que serão aceitos até 8/3. De 1º a 5/4 será aberto o prazo para votação e definição do texto final. Depois, caberá ao Congresso Nacional analisar o PL que altera a legislação civilista.
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Parte geral
A relatora, desembargadora Rosa Nery, afirmou que a intenção das alterações, na parte geral do Código, foi trazer, nos primeiros artigos, uma alusão à personalidade internacional, incluindo no sistema a declaração de respeito a tratados internacionais, dando a todos os sujeitos de direito a possibilidade de exercer direitos civis.
No art. 5º foram propostas mudanças para dar mais expressão às crianças, que poderão expor vontades em casos de direitos de família, principalmente quando os pais não concordarem entre si.
No mais, foi sugerido o acréscimo do termo "morte encefálica", no art. 6º, que trata do fim da existência da pessoa natural.
Capacidade civil
Rosa Nery destacou que nos artigos que abrangem registro civil das pessoas naturais e respectivas averbações, foi proposta exigência de documentação mais precisa quanto a dados pessoais.
Direitos da personalidade
Segundo a relatora, foram propostas modificações em diretivas de vontades no fim da vida, práticas das pessoas no trato de interesses personalíssimos (imagem, nome, identidade) e relações entre pessoas e seus animais (afetividade).
Convivente
Foi proposto o uso do termo "convivente" em vez do termo "companheiro", nos casos de união estável.
Animais de estimação
A relatora Rosa Nery apontou que no art. 91-A foi proposta definição de animais como seres vivos, passíveis de proteção jurídica própria em virtude de sua natureza especial.
Transmissão de bens imóveis
No art. 108 foi proposta modificação para que se exija escritura pública em toda relação que transmita bens imóveis, não importando o valor.
Obrigações
Professor Flávio Tartuce pontuou que quanto a juros, foi sugerida a adoção da teoria mais simples, de 1% com possibilidade de, no máximo, dobrá-los, conforme lei de usura.
Rosa Nery destacou que temas sobre responsabilidade civil terão grande incidência nos debates futuros.
Direito de empresa
Segundo a relatora, especificidades de contratos empresariais configuram ponto nevrálgico no tema de direito empresarial.
Os dois relatores entendem que colocar o assunto no centro do livro de empresas, como propôs a subcomissão, é tratar a matéria de forma assistemática. Eles concordam que tais especificidades devem ser alocadas no livro que aborda os demais contratos.
Contratos
Flávio Tartuce relatou que a ampliação da liberdade contratual foi aceita nos contratos paritários e simétricos.
Segundo o professor, talvez o primeiro tópico a ser debatido nos próximos dias será a posição da "renúncia prévia à herança" dentro do Código. Tartuce entende que o assunto deve estar no art. 426 do CC, já Rosa Nery entende que deve ficar no art. 1.695, em regime de bens.
Quanto à doação de cônjuge ao cúmplice, a comissão propôs a revogação, com a qual Tartuce concordou e Rosa Nery discordou.
Os relatores propuseram que o prazo para ação anulatória será contado do registro, ou da ciência anterior, o que ocorrer primeiro.
Direito das coisas
Tartuce afirmou que a matéria do direito das coisas tem diversos pontos que não se encontram maduros para abordagem, como o novo sistema de garantias proposto por PL ainda em trâmite no Congresso ou a adoção da propriedade fiduciária como patrimônio separado.
Com relação ao pacto comissório, o relator admitiu sua liberação em contratos paritários e simétricos, mas Rosa Nery a refutou.
Outra divergência entre os relatores esteve no critério para a usucapião: Tartuce entende que deve ser o da justa causa, Rosa Nery entende que deve ser o do justo título.
Eles ressaltaram que os casos de locação por aplicativo foram incluídos no texto, além de um regramento para estabelecer que a propriedade obriga o proprietário e proposições de melhorias no tratamento da multipropriedade.
Ademais, destacaram que foram feitas alterações pontuais em todos os direitos reais.
Direito de Família
Segundo Rosa Nery, não há possibilidade de unanimidade nos assuntos de família. Ainda assim, as decisões devem ser práticas com um olhar voltado à segurança.
Os relatores divergem quanto à denominação do título: direito de família ou direito das famílias? Para Rosa Nery a primeira opção é mais própria, por abranger famílias "indefinidas". Ela entende que a opção "das famílias", defendida por Tartuce, seria mais restritiva.
Foram incluídas no CC proposições de proteção à gravidez dentro do espaço de segredo familiar, para evitar a impertinência de comentários e interferências desnecessárias nas decisões da mulher e dos casais.
Houve, ademais, proposta de separação dos conceitos de família conjugal, abrangendo casamento e união estável (registrada ou não), e de família não conjugal. Esta última abarca pessoas que se unem, na intenção de constituir família, mas composta por membros como irmãos que passam a morar juntos após a viuvez.
Os relatores apontaram que o termo concubinato foi retirado do Código Civil, e o processo de habilitação de casamento foi ajustado, tendo sido proposto um "procedimento pré-nupcial", mais simples.
Ainda, afirmaram que divergem quanto a manutenção, ou extinção, de causas impositivas de separação de bens. Para Tartuce elas devem ser extintas; Rosa Nery entende que devem ser mantidas.
Sucessões
Tartuce afirmou que o trust não foi considerado como integrante do fideicomisso.
Já quanto à proposta da manutenção da concorrência sucessória, feita pela subcomissão, os relatores não a acataram. Eles sugeriram a adoção de um sistema mais simples, conforme o existente no CC de 1916, separando regime de bens e sucessão.
Direito Digital
Uma inovação do texto, segundo Flávio Tartuce, foi o livro de Direito Digital que provavelmente ficará localizado no final do CC.
Os relatores anunciaram a criação dos seguintes capítulos:
- Disposições gerais;
- Pessoa no ambiente digital;
- Situações jurídicas;
- Direito ao ambiente digital transparente e seguro;
- Patrimônio digital;
- Herança digital;
- Crianças e adolescentes no ambiente digital;
- Inteligência artificial;
- Contratos digitais;
- Assinaturas eletrônicas;
- Atas notariais eletrônicas.
Eles também apresentaram propostas de artigos tratando do direito de desindexação e ao esquecimento, com a retirada de conteúdo ofensivo a partir de alguns critérios e sem prejuízo da responsabilidade civil.
Ao final, pontuaram que o tema dos "neurodireitos", conforme proposto pela subcomissão, não foi tratado profundamente pela relatoria geral, até este momento.
Crítica
A desembargadora Maria Berenice Dias, que integra a comissão, fez críticas ao relatório final. Afirmou que se surpreendeu com a apresentação, pontuando que o texto estava "absolutamente desconectado" do que havia sido escrito pelos demais juristas.
Ainda, ressaltou que a linguagem utilizada foi inadequada, "muito fora de uma linguagem de lei e projeto". Pediu que mais reuniões fossem feitas até a votação final do texto, marcada para o início de abril.
Atualização do CC
Criada em setembro de 2023 por iniciativa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, a comissão de juristas que trabalha na atualização do Código Civil é presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do STJ. A relatoria do projeto compete à desembargadora Rosa Maria de Andrade Nery e ao professor Flávio Tartuce.
Ademais integram a comissão ministros Marco Aurélio Bellizze (vice-presidente), Marco Buzzi, Cesar Asfor Rocha, João Otávio de Noronha e ministra Maria Isabel Gallotti. O grupo conta também com nomes importantes de professores, desembargadores, juízes, um procurador e um advogado.
No total, 38 integrantes, divididos em oito subcomissões temáticas (cada uma com um sub-relator) discutiram a parte geral do Código, obrigações e responsabilidade civil, contratos, direito das coisas, direito das famílias, sucessões, direito digital e direito empresarial.
Segundo a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da ADFAS - Associação Brasileira de Direito de Família e Sucessões, entre os temas trabalhados pela comissão que podem sofrer alterações no Código Civil estão casamento, união estável, paternidade socioafetiva, pensão alimentícia e heranças.