Em Guarapuava, Paraná, ao menos dez mulheres presas conseguiram remição de pena por trabalho doméstico. Segundo a Defensoria Pública do Estado, que atuou nos casos, a conquista é inédita no Brasil, e os primeiros pedidos aceitos representam um marco na jurisprudência.
Os pedidos baseiam-se, entre outros pontos, no fato de que mulheres privadas de liberdade têm menos oportunidades para diminuir o tempo de cumprimento de pena por arcarem com atividades diárias ligadas à economia do cuidado.
Um desses pedidos foi deferido pela juíza de Direito Liliane Graciele Breitwisser, da vara de Execuções Penais e Corregedoria dos Presídios de Guarapuava/PR. A juíza afirmou que desqualificar a atividade doméstica devidamente fiscalizada seria violador do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero do CNJ.
Ela citou trecho do protocolo:
“A naturalização da atribuição da responsabilidade prioritária ou exclusiva das mulheres sobre o cuidado também leva, no cotidiano concreto da vida – no que se denomina de dupla jornada - à desigualdade de oportunidades e de salários no mercado de trabalho."
O caso citado é de uma mulher, mãe solo, que cumpre pena em regime domiciliar desde julho de 2022, em razão dos cuidados com as filhas, uma delas menor, de 12 anos. Do processo consta que ela mora em uma casa emprestada, e que os únicos valores que consegue acessar são do Bolsa Família, de R$ 490.
Para fins de remição de pena, a condenada teve o trabalho doméstico fiscalizado pelo Complexo Social. Foram juntados dois formulários de fiscalização de atividades laborais, um com registro de 42 dias de trabalho, outro com 31 dias de trabalho – este segundo analisado, agora, pela juíza. No relatório, foi constatada a organização doméstica e o adequado cuidado da filha.
Ao decidir, a magistrada citou Termo de Convênio Institucional 1/23, firmado pelo juízo, pela Defensoria Pública, pelo Complexo Social e pela Coordenação Regional do Deppen/PR, segundo o qual o cômputo do tempo de pena a remir no caso de exercício de atividades domésticas pela condenada a estas dedicada será de 1 dia de pena a cada 3 dias de trabalho.
Assim, foram declarados remidos os 10 dias de pena.
Trabalho externo
No mesmo processo, a apenada buscou a flexibilização do regime domiciliar para a realização de trabalho externo remunerado, na função de auxiliar de cozinha, de segunda a sábado, tendo a remuneração o de um salário-mínimo. Apontou, entre outros pontos, as dificuldades econômicos-sociais enfrentadas pela mulher egressa do sistema carcerário, que se encontra em cumprimento de pena com monitoramento eletrônico.
O MP requereu o indeferimento, sob o argumento de que a mulher já está inserida no projeto de remição de pena pelo trabalho doméstico.
Ao decidir, a juíza citou voto do ministro Gilmar Mendes (RE 641.320) no qual afirma que “a execução da sentença em regime de prisão domiciliar é mais proveitosa se for acompanhada de trabalho”, e deferiu o pedido para a realização de trabalho externo.
A magistrada destacou que, diferentemente do postulado pelo MP em seu parecer, a cumulação da atividade laboral em ambiente doméstico com a atividade remunerada não se mostra incompatível ou traz qualquer óbice a eventual remição de pena, desde que atendidos os marcos trazidos pelo art. 126 da LEP, uma vez que a legislação não tipifica quais atividades laborais seriam “válidas” ao reconhecimento do benefício.
Atuação da Defensoria
A Defensoria Pública do Estado afirma que, no mês de fevereiro, dez mulheres defendidas pela DPE/PR conseguiram a redução do tempo de cumprimento de pena por atividades ligadas à economia do cuidado. Esse resultado foi possível a partir do projeto "Economia do Cuidado: a consideração do trabalho não remunerado para fins de remição de pena", de autoria da assistente social Nilva Maria Rufatto Sell e da defensora pública Mariela Reis Bueno, que atuam em Guarapuava. As decisões utilizaram critérios definidos no convênio firmado entre a Defensoria e outras instituições da comarca.
As idealizadoras do projeto destacaram que mulheres presas têm menos oportunidades para diminuir o tempo de cumprimento de pena por arcarem com atividades ligadas à economia do cuidado.
“A conquista das primeiras remições nos dá a sensação de dever cumprido, pois nossa proposta começa a reverberar na vida das mulheres atendidas que cumprem prisão domiciliar ou estão no regime semiaberto com monitoramento eletrônico. É também por isso que a Defensoria está aqui, para fazer esse enfrentamento da desigualdade de gênero dentro do sistema de Justiça por elas, para elas e com elas”, afirma Nilva Sell.
“A conquista dessa inovação jurídica representa uma efetivação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero e um reconhecimento das interseccionalidades dos sistemas de opressão que impactam as mulheres”, ressalta Mariela Bueno.
Além de Guarapuava, a comarca de Maringá também já adotou a prática.
Ampliação
O projeto das servidoras ganhou destaque nacional com o Prêmio Innovare, que reconhece práticas inovadoras adotadas por instituições do sistema de Justiça brasileiro. A tese foi premiada em primeiro lugar na categoria específica de práticas realizadas pelas Defensorias Públicas do país.
Em dezembro, a instituição encaminhou ao CNJ uma proposta de resolução para que seja adotada em todo o Brasil a remição de pena por meio do trabalho doméstico. O documento foi enviado ao CNJ pela Defensoria Pública-Geral em conjunto com o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (NUDEM) e com o Núcleo da Política Criminal e da Execução Penal (NUPEP).