Você comeria carne humana para sobreviver? Esse é dilema moral presente no filme “A Sociedade da Neve”, produção da Netflix dirigida por J.A. Bayona e indicada ao Oscar na categoria "melhor filme estrangeiro".
Em 1972, na cordilheira dos Andes, um grupo de uruguaios encontrou no canibalismo a única forma de preservar a própria vida após um desastre aéreo. Os passageiros da aeronave estavam em uma situação de “vida ou morte”.
E se fosse no Brasil? O que diz a lei brasileira sobre a prática do canibalismo?
Sobre o tema, ouvimos o criminalista Fernando Risso.
O advogado explica que no Direito Penal brasileiro não há um crime específico para o canibalismo. No entanto, o "canibal" pode ser enquadrado em outros crimes da legislação, como o homicídio doloso, caso o autor provoque a morte da vítima para comer sua carne, ou o vilipêndio de cadáver, quando, apesar de não praticar o homicídio, o autor vilipendia, destrói o cadáver para consumir a carne.
Ainda de acordo com o advogado, se o caso do filme coubesse à jurisdição brasileira, é provável que os sobreviventes não fossem nem sequer denunciados, pois não tiveram alternativa, ficando configurada a inexigibilidade de conduta diversa, a qual exclui a culpabilidade.
O "milagre dos Andes"
O filme da Netflix é baseado em fatos reais, e conta uma história ocorrida em outubro de 1972, quando uma aeronave Fairchild partiu do Uruguai para Santiago, no Chile, levando 19 jogadores do time "Old Christians" e 21 outras pessoas. Devido às más condições meteorológicas, os pilotos fizeram uma escala em Mendonza, Argentina.
Após retomarem a viagem no dia seguinte, o sobrevoo equivocado na Cordilheira dos Andes resultou em uma colisão com as montanhas, causando a morte de 13 pessoas.
Os 32 sobreviventes ficaram 72 dias nos destroços, enfrentando condições extremas como frio intenso e escassez de alimentos.
Mesmo após consumirem as poucas provisões disponíveis, como chocolate, balas e vinho, a falta de recursos os levou a tomar uma decisão extrema: comer a carne dos corpos dos falecidos.
“Eles comiam quase todas as partes do corpo humano, incluindo as vísceras, mãos e pés, e cérebros. Quando terminaram até a última partícula de carne, partiram o osso ao meio e extraíram o tutano. Desprezavam apenas os pulmões, a pele e os órgãos genitais”, informou a página oficial "Sociedad de la Nieve".
Com a suspensão das buscas, três sobreviventes partiram em uma jornada de nove dias em busca de ajuda, sendo resgatados pelas forças armadas chilenas em dezembro, mais de dois meses após o acidente.
Canibais de Garanhuns
Por mais absurdo que pareça, há casos de canibalismo no Brasil. O mais recente, e que chocou o país, ocorreu em 2012 na cidade de Garanhuns/PE. Três pessoas foram condenadas por homicídio quadruplamente qualificado, vilipêndio e ocultação de cadáver após assassinarem, esquartejarem, consumirem e fabricarem empadas e coxinhas com a carne das vítimas, três mulheres de 17, 20 e 31 anos.
Os crimes praticados por Jorge Beltrão Negromonte da Silveira, Isabel Cristina Pires da Silveira e Bruna Cristina Oliveira da Silva, que atraíam as mulheres com ofertas de emprego, só foram descobertos após o trio utilizar o cartão de crédito de uma das vítimas, que tinha sido dada como desaparecida.
Em uma entrevista, Jorge alegou que se alimentava das vítimas como forma de “purificação”, para que a carne não apodrecesse. Segundo a psicóloga clínica, Viviane Rojas, e o psicólogo criminal, Christian Costa, na série documental "Anatomia do Crime", o líder da “seita” de Garanhuns sofria de transtorno delirante, que, diferentemente da pessoa esquizofrênica, consegue planejar, perseguir uma vítima e executar o crime.
O advogado Fernando Risso esclareceu que, embora não haja tipificação específica na lei brasileira, quando uma pessoa mata a outra para consumir a carne, haverá a figura do homicídio doloso, com a qualificadora da utilização do meio cruel.