"Garçom, tire a conta da mesa e ponha um sorriso no rosto.
Seria muita avareza cobrar no XI de Agosto."
Para o meio jurídico, o 11 de agosto é uma data marcante. Foi nesse dia que, em 1827, D. Pedro I instituiu os primeiros cursos de ciências jurídicas no Brasil. Por isso, ficou conhecido como Dia do Advogado.
A data levou estudantes de Direito a edificarem uma tradição: o Dia do Pendura. O hábito de “comer, beber e não pagar” em bares e restaurantes foi oficializado em 1930 pelos estudantes da Faculdade de Direito do Largo do S. Francisco. A prática se popularizou entre os estudantes, principalmente na cidade de São Paulo.
Mais de noventa anos depois, a prática do Pendura continua sendo realidade?
Tradição
Luiz Carlos Bettiol, advogado, foi presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto da USP/SP em 1959. Ele diz que São Paulo, até 1950, era uma cidade provinciana, com poucos restaurantes e estudantes. Estes, majoritariamente do Largo do S. Francisco, eram adorados pela população da cidade.
“Eu desconfio que, no fundo, no fundo, os donos dos restaurantes tinham interesse em serem vítimas de um pendura. É que o pendura, de certa forma, conferia ao seu estabelecimento um selo de qualidade.”
Desconfiança confirmada. Em 1970, o jornal Estado de S. Paulo realizou uma reportagem especial a respeito da data. Segundo o periódico, o restaurante Franciscano, na época localizado na rua da Consolação, em São Paulo, sentia-se honrado de receber os alunos de graça no estabelecimento. De acordo com a reportagem, quando os alunos apareciam “credenciados”, com uma carta de apresentação do Centro Acadêmico XI de Agosto, eram bem recebidos.
Para Bettiol, o cenário começou a mudar com a instituição do curso noturno na faculdade de Direito da USP, e com a criação da PUC e do Mackenzie. O universo de estudantes triplicou e os donos dos restaurantes não apreciaram o aumento de “penduras”.
O advogado ainda revela, que, em 1959, o sindicato dos bares e restaurantes instruiu os associados a chamarem a polícia para os estudantes, para enquadrá-los no art. 176 do CP, que configura como prática fraudulenta a refeição em restaurante sem recursos para realizar o pagamento.
Bettiol afirma que os estudantes decidiram resistir às instruções do sindicato e o Centro Acadêmico se mobilizou para conseguir uma minuta de HC para requerer o trancamento de inquéritos policiais, ao argumento de que, os estudantes tinham recursos financeiros para pagar, portanto, o crime seria inexistente.
A intenção dos alunos, segundo o advogado, era que uma decisão judicial transferisse a discussão para a seara cível, pois a acusação, nesse campo, seria “mais facilmente administrada”. A conquista desse precedente na Justiça, segundo Bettiol, deu uma sobrevida ao pendura, por mais 10 ou 20 anos.
Porém, o advogado considera que, a partir de 1970, com a proliferação das faculdades de Direito no país, a realização do pendura ficou insustentável.
“Hoje, se eu voltasse a ser presidente do Centro Acadêmico, eu teria algum cuidado, repensaria o pendura. E questionaria se o pendura faz bem à imagem do estudante de Direito. Data máxima vênia, penso que não.”
Superação?
A ideia que Bettiol sustenta a respeito do futuro do pendura, confirma-se na realidade. Os atuais presidentes de Centros Acadêmicos revelam que a tradição “saiu da vida para entrar na história”.
Manuela de Morais Ramos, atual Presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, ingressou na universidade em 2021, durante a pandemia da COVID-19. Revela que seu ano de caloura foi totalmente online, portanto, não teve a experiência com o pendura naquele ano.
Ela considera que, o ano seguinte, 2022, também se tratou de um ano atípico, sem muitas “denúncias” de penduras, pois, no dia 11 de agosto, os estudantes se mobilizaram para a leitura da carta aos brasileiros em defesa da democracia.
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Manuela lembra, entretanto, que, após a leitura da carta aos brasileiros, a gestão do Centro Acadêmico foi convidada para participar de um almoço patrocinado por um antigo presidente da entidade. A estudante acredita que o anfitrião não imaginava a quantidade de pessoas que apareceriam para o almoço e, por isso, a única solução foi realizar um “pendura” no restaurante após o banquete.
A presidente do XI de Agosto acredita que a tradição do pendura está sendo reanalisada. Manuela entende que, hoje, os penduras realizados visam restaurantes de "rede", pois os estudantes tentam garantir que não seja um estabelecimento que sofrerá muitos prejuízos. Outra forma preferida pelos alunos atuais é a do pendura "diplomático". Nessa modalidade os universitários avisam de antemão que darão o pendura no restaurante, para que o ele se prepare.
Carlos Eduardo P. Rodrigues, presidente do Centro Acadêmico 22 de Agosto da PUC/SP, conta que no ano de calouro participou de um pendura próximo ao Largo do S. Francisco. O restaurante vitimado, segundo Carlos, já estava preparado: o garçom ofereceu um cardápio especialmente feito para os grupos do "pendura". O estudante avalia que hoje as pessoas gostam mais de ouvir histórias, do que praticar a tradição.
“As pessoas querem viver mais como história do que efetivamente fazer”.
Já para Beatriz Teotônio, presidente do Centro Acadêmico Antônio Junqueira de Azevedo da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, a tradição do pendura não foi um hábito cultivado no campus do interior de São Paulo. A aluna conta que a questão sequer foi pauta do Centro Acadêmico, porque a tradição se restringe aos grandes centros.
Para a estudante, a tradição deve estar com os dias contados, porque, antigamente, os cursos de direito eram vistos como sinônimo de grandeza, e hoje, com a proliferação das faculdades, a quantidade de estudantes é tamanha que a prática deixou de ser viável e interessante para alunos e estabelecimentos.
(Des)Pendura
Sabe-se que alguns restaurantes do entorno do Largo do S. Francisco ficaram bastante conhecidos por serem os locais preferidos dos estudantes de Direito no dia 11 de agosto. O Itamarati e o Franciscano foram exemplos que levaram esse “rótulo” ao longo dos anos.
Campanha feita em 2020 por alunos de Direito da USP/SP prova que a tradição está acabando, ou, ao menos, tomando um novo rumo. Naquele ano, o restaurante Itamarati sofreu as consequências do período pandêmico e teve que fechar as portas. Os estudantes, entretanto, não deixaram que um espaço tão querido esmorecesse. Fizeram uma campanha denominada “Despendura” para arrecadar fundos para o estabelecimento. Durante a campanha foi disponibilizada uma conta-corrente para depósito de valores e foram vendidos kits de bolinho de bacalhau e empadinha de palmito.
Receita para um pendura
Hoje a tradição não é percebida como outrora. As mudanças de perfil dos acadêmicos de Direito e o aumento no número de cursos jurídicos deixou a prática um pouco ultrapassada. Mas, como não se pode dizer, peremptoriamente, que houve a abolição do pendura - e como recordar é viver - vale a transcrição da íntegra de coluna bem-humorada escrita por Luiz Flávio Borges D'Urso para o Jornal “A Tribuna” em 1994. Nela, o advogado ensina a receita perfeita para um pendura tradicional.
“[...] deve ser iniciado discretamente, com a entrada no restaurante em pequenos grupos, para não chamar atenção, procurando uma mesa que não seja isolada, quanto mais visível melhor. Deve-se prosseguir com bastante calma, observando cuidadosamente o cardápio, inclusive os preços que sabe não irá desembolsar.
O pedido deve ser normal, discreto, sem exageros. Quanto à bebida, os jovens devem ser comedidos, pois dela necessitam para ‘aquecer’ as cordas vocais para o discurso, mas, em demasia, pode transformar o discurso e o pendura num desastre.
Ao final, quando satisfeitos, após, evidentemente, a inevitável sobremesa, pede-se a conta, lembrando que um detalhe que faz parte da tradição e não pode ser desrespeitado, que é o pagamento dos dez por cento da gorjeta dos garçons.
Após, o líder e orador, deverá levantar-se e começar a discursar, sempre saudando o estabelecimento e seu proprietário, agradecendo o ‘convite’ e a hospitalidade, enaltecendo a data, os colegas, a faculdade de origem, o Direito e a Justiça, tudo isso, sob o estímulo dos aplausos e brindes dos demais colegas do grupo.
Esse é o verdadeiro pendura, que pode ser aceito ou rejeitado, acabando todos na delegacia mais próxima, frente a um delegado, que fatalmente também foi um ‘pendureiro’.”