No início do ano (2/2/23), a 191ª turma da Faculdade de Direito da USP, composta pelos primeiros alunos cotistas do tradicional Largo S. Francisco, colou grau. Dos mais de 315 formandos, 75 ingressaram via Sisu – Sistema de Seleção Unificada, que usa notas do ENEM para selecionar os discentes. Dentre os ingressos via Sisu, 35 alunos foram cotistas pretos, pardos e indígenas.
Política de Ação Afirmativa
A política de cotas, instituída pela lei 12.711/12, reserva vagas a candidatos provenientes de escolas públicas e com base em critérios étnico-raciais.
A lei de cotas previu a reserva de metade das vagas de universidades e institutos federais de ensino superior a estudantes de escolas públicas. A lei também destina parte dessas vagas a alunos de baixa renda, além de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência.
Segundo informações do Jornal da USP, a universidade adota a reserva de cotas desde o vestibular de 2016, com a implementação do Sisu como forma de ingresso na Universidade, além da Fuvest.
Em 2021 a comissão de Pós-Graduação da faculdade de Direito da USP ampliou ações afirmativas para mestrado e doutorado, com vagas exclusiva a pretos, pardos, indígenas (PPI) e pessoas com deficiência (PCD).
"Achava que universidades eram só as das propagandas da TV"
Erick Araújo foi um dos alunos da 191ª turma que ingressou por cotas étnico-raciais. Proveniente de Itaim Paulista, extremo leste de São Paulo, ele cursou o ensino médio em escola técnica.
Seus pais não tiveram acesso à educação formal e, enquanto o pai trabalhava na indústria metalúrgica, sua mãe laborava como diarista. Erick revela que a ausência de direcionamento familiar nos estudos foi um problema resolvido a partir do seu próprio contato com o mundo. Ele diz que a descoberta das universidades públicas, durante período no qual frequentou a escola técnica, foi muito importante, porque "era impossível para a família arcar com os custos de uma universidade particular, daquelas das propagandas de televisão."
Barreiras materiais e psicológicas
Apesar de conseguir a nota para ingressar em uma das mais tradicionais universidades do país, a permanência no curso foi cercada de desafios.
Erick revela que, como cotista, sentiu diferenças de ordem material e psicológica perante os outros estudantes, que tiveram acesso a uma educação básica diferente da dele. O estudante afirma que uma maneira de lidar com as intempéries da permanência estudantil em uma universidade pública elitizada foi a criação de vínculos afetivos e materiais com pares.
"É como se cada aluno oriundo das políticas afirmativas tivesse que criar quilombos, criar estratégias de defesa, de sobrevivência, para conseguir que sua trajetória dê certo na graduação."
“Se o corpo discente muda a universidade tem que mudar”
Erick aponta a importância da organização dos grupos de cotistas dentro da universidade para reportar à instituição suas demandas. Ele, por exemplo, viveu na Casa do Estudante, uma moradia financiada pelo Centro Acadêmico XI de Agosto, sem vínculo institucional com a universidade.
Segundo ele, os moradores do espaço precisaram reivindicar sua reforma, organizando-se quanto estudantes. Assim, conseguiram que a faculdade e o centro acadêmico investissem na casa, que outrora foi residência do ex-presidente Michel Temer, enquanto estudante da USP. Erick considera o espaço essencial para os alunos cotistas, pois é uma maneira deles se aproximarem do centro de São Paulo e, consequentemente, da Faculdade do Largo do São Francisco, a fim de vivenciar o pleno direito à cidade.
O jovem também destaca que o movimento estudantil conseguiu com que a faculdade criasse bolsas direcionadas aos alunos que precisavam de apoio para concluir o curso de forma isonômica. Entretanto, adiciona que ainda são necessários ajustes nos valores nas bolsas e um olhar mais cuidadoso para as questões psicológicas dos alunos.
"Novos corpos, novas vozes, novas cores"
De acordo com Erick, apesar da luta constante por melhores condições de permanência na universidade, o ingresso via política de cotas foi, para ele, e para tantos outros colegas, um salto no padrão de vida. Hoje, Erick revela que consegue viver no centro da cidade e trabalha no Congresso Nacional.
Ele acrescenta que tem colegas que se imaginam como professores universitários, outros, como grandes advogados. Já o seu sonho, é trabalhar na área de políticas públicas, usando o direito como ferramenta de transformação social.
"É algo a que poucos dos meus colegas de ensino fundamental teve acesso, porque, inclusive, parte deles foi criminalizada. Eu tenho colegas que foram presos, eu tenho colegas que não conseguiram acessar a universidade. E ser essa exceção, apesar de trazer melhorias materiais na minha vida, como as que eu estou comentando, também faz com que, no aspecto simbólico, eu consiga fazer um debate com relação à necessidade de transformação de alguns aspectos de nossa sociedade."
Presidência do Centro Acadêmico
Outra formanda da Turma 191 foi Letícia Chagas. A jovem fez história no Largo do São Francisco ao tornar-se a primeira presidente negra do Centro Acadêmico XI de Agosto.
316143
Foi um marco na luta das minorias dentro da universidade. O cargo, que já fora ocupado pelo ex-senador Aloysio Nunes Filho e pelo ministro Fernando Haddad, por exemplo, passou a ser da cotista, que é filha de um caminhoneiro e de uma empregada doméstica.
A chapa de Letícia no centro acadêmico, chamada Travessia, levantou debates para vencer dificuldades dos alunos das cotas étnico-raciais. Durante a semana de calouros, batalharam pela reforma da Casa do Estudante e pelas políticas de permanência.