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Manicômios judiciários extintos? Especialista explica resolução do CNJ

Resolução 487/23 implementa política manicomial instituída há 22 anos pela lei 10.216.

27/7/2023

A partir de agosto deste ano, os manicômios judiciais existentes no Brasil deverão suspender a entrada de novos pacientes. E, até maio de 2024, todos os estabelecimentos deverão ser desativados, em definitivo. É isso o que determina a resolução 487/23 do CNJ, vigente desde maio. O texto estabelece procedimentos e diretrizes para efetivar, no Judiciário brasileiro, a política antimanicomial.

A proposta foi instituída em 2001 pela lei 10.216, mas, na prática, pessoas consideradas inimputáveis pela Justiça e que foram sujeitas à medida de segurança, continuaram a ser encaminhadas para instituições conhecidas por HCTPS - Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico.

Relatório de dezembro de 2022 da Secretaria Nacional de Políticas Penais aponta que, das 832.295 pessoas presas no Brasil, 1.869 estão internadas em medida de segurança nos 27 hospitais de custódia existentes no país. Com o fechamento dos hospitais, o destino dos custodiados e daqueles que aguardam julgamento tornou-se objeto de intenso debate. Assim, a resolução do CNJ, criada após um lapso temporal de 22 anos, foi editada a fim de dar efetividade à política antimanicomial prevista na lei.

0,2% do total de presos estão em medida de segurança.(Imagem: Arte migalhas)

Luta antimanicomial

De acordo com o Conselho Nacional de Psicologia, até o final de 1980, os manicômios, como local de exclusão e segregação, eram regra. O movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira foi responsável por viabilizar a superação das condições degradantes dos manicômios, denuciando as práticas desumanas.

A lei 10.216/01 foi uma das conquistas desse movimento. Ela estabelece que pessoas com transtorno mental têm direito a tratamento em ambiente terapêutico com o uso dos meios menos invasivos possíveis e, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental (art. 2º, incisos VIII e IX).

Também indica que a internação só será realizada quando recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes (art. 4º) e veda a internação em instituições asilares desprovidas de recursos como serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e que desrespeitem os direitos da pessoa com transtorno mental (art. 4º, §3º).

Ainda aponta que o paciente hospitalizado há muito tempo será objeto de política específica de alta planejada e reabilitação psicossocial assistida, de responsabilidade da autoridade sanitária competente (art.5º).

Esses pontos forneceram as diretrizes para que a resolução do CNJ, de 2023, criasse as ferramentas de acompanhamento para a reinserção em sociedade das pessoas em regime de internação. 

Resolução do CNJ

De acordo com o defensor público, doutor em criminologia e membro da diretoria executiva do IBCCRIM Bruno Shimizu, em razão das internações de pessoas por períodos indeterminados, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. A condenação ocorreu em 2006, sete anos após a morte de Damião Ximenes Lopes, paciente espancado e morto em uma clínica psiquiátrica em Sobral/CE. Por isso, o CNJ, cumprindo um ponto resolutivo da condenação, criou a resolução 487. 

Segundo o defensor público, a resolução não inova no ordenamento jurídico, mas sistematiza formas e procedimentos de aplicação das diversas leis já editadas. Ela reafirmou o direito da pessoa com transtorno mental a ser tratada em instituição de caráter não asilar. Trata-se, também, de uma maneira de combater a tortura - descrita na lei 9.455/97 como submissão a sofrimento físico ou mental da pessoa sujeita à medida de segurança.

Para garantir o tratamento psiquiátrico após a extinção dos manicômios judiciários, a resolução trouxe a figura das RAPS - Redes de Atenção Psicossocial (art. 2º, §2º). Bruno explica que, na realidade, as RAPS existem desde antes da lei 10.216/01, mas a resolução do CNJ foi responsável por sistematizá-las.

Assim, a resolução aponta os serviços que compõem as RAPS

Em nota, o IBCCRIM esclareceu que caberá ao Judiciário e ao SUS cooperarem para a transferência dos pacientes às RAPS. Nelas, os pacientes terão plano terapêutico singular elaborado, e a escolha do tratamento feita por equipe multidisciplinar. 

Ainda, a resolução estabelece orientações para audiências de custódia, para o tratamento em saúde mental de presos preventivos ou sujeitos a outra medida cautelar, e daqueles que já cumprem a pena. Além disso, estipula que se priorize o tratamento ambulatorial e determina prazos para a desinstitucionalização.

Incidente de insanidade e internação 

Bruno Shimizu explica que a parte geral do CP é da década de 1980, e prevê, em uma terminologia ainda estigmatizante, que, por requerimento das partes ou de ofício, pelo juiz, o incidente de insanidade pode ser instaurado. 

Bruno ressalta, entretanto, que os Tribunais Superiores há bastante tempo vêm entendendo que o incidente só poderia ser pedido pela defesa. Isso porque, a medida de segurança não poderia ser considerada como uma pena a ser pedida pela acusação ou determinada pelo juiz.

A resolução do CNJ, então, passa a prever, expressamente, o entendimento dos tribunais de que só a defesa pode pedir a instauração do incidente. 

O especialista aponta que a internação é medida de exceção desde a lei 10.216/01, mas, como a parte geral do CP ainda a prevê como regra, é comum que magistrados a apliquem.

O problema, segundo Bruno, é que as pessoas internadas são encaminhadas para HCTPS que não são vinculados ao SUS, às RAPS, e que, na realidade, são ilegais e estão associados à administração penitenciária. Ele pontua que o tratamento de saúde mental hoje dispensado pelos juízes criminais é, na verdade, uma "prisão com outro nome".

Por isso, em razão da reiteração do desrespeito à lei 10.216/01, o CNJ entendeu que era o momento de cobrar dos juízes a aplicação da lei, via resolução.

A partir dela será possível questionar a atuação de um juiz a respeito das medidas de segurança na via correicional. 

Abolição das internações?

Bruno Shimizu aponta que há um consenso na seara da saúde mental de que a internação deve se dar pelo menor período possível à estabilização do quadro.

De acordo com o CP, é o juiz quem determina a internação, pelo prazo mínimo de um a três anos, sem prazo máximo. E, nessas condições, apenas o próprio magistrado poderia determinar a desinternação, após um laudo do hospital de custódia. Essa prática é equivocada e deve ser alterada.

O defensor público ressalta que as internações não foram abolidas, mas que, a partir da resolução, deverão ser determinadas de acordo com a prescrição médica e quadro clínico da pessoa, por uma equipe de saúde, tirando do juiz a possibilidade de definir se o indivíduo será internado ou não. 

A internação, segundo Bruno, não é um fim em si, mas serve para a pessoa que esteja colocando em risco a si ou outras pessoas, durante surtos, por exemplo. Assim que estabilizado, o paciente deve ser colocado em convivência comunitária, para não criar uma dependência institucional e atingir um patamar no qual é ainda mais difícil recuperar a convivência em sociedade.

Reforma psiquiátrica é cavalo de batalha

Para Bruno, a reforma psiquiátrica no Brasil ainda é complexa, "um cavalo de batalha". O fechamento de leitos manicomiais é um processo progressivo e o último degrau para adequar o Brasil aos parâmetros da reforma psiquiátrica, perante o qual o país está atrasado. O defensor público observa que a demora para implementar a reforma psiquiátrica no Brasil está vinculada a dois entraves: um de natureza econômica e outro de natureza ideológica. 

Em relação aos interesses ideológicos, Bruno identifica algumas reações políticas, como dois projetos de decreto legislativo, um no senado (PDL 152/23) e outro na câmara (PDL 81/23), para suspender a eficácia da resolução do CNJ.

Ele entende que o objetivo político dessas propostas é sustentar a crença de combate ao crime e alarmar a população para situações que, na realidade, não ocorreriam. Por exemplo, elas sustentam a ideia de que assassinos perigosos seriam soltos. De acordo com Bruno, a afirmação não se conforma com a realidade, porque a internação para casos graves não foi abolida. Trata-se de exploração do pânico transformada em plataforma política que acaba tendo reflexos no judiciário.

Quanto aos interesses econômicos, Bruno aponta que há uma "indústria da loucura" competindo com a reforma psiquiátrica. Comunidades terapêuticas e manicômios privados usam o discurso da internação voluntária, mas, na prática, não permitem que os pacientes tenham alta. Além disso, muitos hospitais e comunidades recebem dinheiro do erário e, por falta de vagas em hospitais públicos, juízes acabam enviando pacientes para essas instituições privadas. 

Opiniões conflitantes

O Cremesp - Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, elaborou nota em repúdio à resolução do CNJ. Para o órgão, são necessários estudos qualificados, debates plurais, técnicos e democráticos antes da aprovação de uma resolução do gênero. 

Segundo o Conselho, o fechamento de locais especializados no recebimento de pacientes com transtornos mentais e a sua alocação em estabelecimentos com enfermos com outras características pode ser prejudicial. A atitude colocaria em risco a segurança dos pacientes, prejudicando a população em geral e a própria família da pessoa, pois terá dificuldade maior para encontrar assistência adequada.

Ainda, afirma que os hospitais gerais não possuem condições para que a assistência médica seja apropriadamente prestada, tampouco estrutura para garantir a integridade física dos pacientes que praticaram infrações penais. As pessoas portadoras de transtornos mentais não ficarão detidas e não poderão ser internadas nos serviços adequados.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, o psiquiatra Raphael Boechat, professor da Faculdade de Medicina da UNB, opiniou que o fechamento dos hospitais sobrecarregará o SUS. 

O Conselho Federal de Medicina, a Associação Brasileira de Psiquiatria, a AMB – Associação Médica Brasileira e outras entidades, em maio de 2023, assinaram manifestação contra o fechamento dos hospitais. Essas entidades apontam riscos para a segurança pública. 

"Faltam sete dias para, 5.800* criminosos (matadores em série, assassinos, pedófilos, latrocidas, dentre outros) sentenciados que cumprem penas em Hospitais Psiquiátricos de Custódia comecem a soltos se valendo do disposto na Resolução nº 487 do Conselho Nacional de Justiça. Esse documento é um perigo para a população brasileira, pois determina o fechamento desses Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico e diz que todas essas pessoas (criminosos) voltariam para a sociedade e fariam tratamento junto com a comunidade, se assim, essas pessoas quiserem".

O Conselho Federal de Psicologia, por sua vez, manifestou apoio à política antimanicomial do Judiciário. Para ele, trata-se de uma oportunidade de qualificar a Rede de Atenção Psicossocial no Brasil, ampliar o financiamento de políticas públicas de saúde mental e redirecionar as estratégias de institucionalização. 

O IBCCRIM declarou apoio irrestrito à resolução do CNJ. De acordo com o instituto, a resolução “representa extraordinário avanço no tratamento e na reabilitação psicossocial de um significativo número de pessoas, que atualmente sofrem diuturnamente a violência e o abandono que marcam a realidade dos pacientes manicomializados”.

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