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Estatuto da Criança e do Adolescente completa 33 anos; veja avanços

Ao longo dos anos, legislação foi intensificada para combater violência e ressaltar direitos.

13/7/2023

O país celebra nesta quinta-feira, 13, o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90). Há 33 anos, a sociedade tem um conjunto de normas e regras jurídicas com o objetivo de proteger a criança e do adolescente, sendo considerado um marco legal e regulatório dos Direitos Humanos.

A partir da publicação, o ECA passou a reconhecer, oficialmente, crianças (até 12 anos incompletos) e adolescentes (de 12 a 18 anos) como sujeito de direitos, pessoas em desenvolvimento e prioridade absoluta em seus direitos inalienáveis.

ECA completa 33 anos.(Imagem: Pixabay)

De acordo com a advogada Clarissa Campos Bernardo, presidente da comissão de Direito de Família e Sucessões do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo, a sociedade precisa defender o ECA, implementando os direitos ali contidos, mas sobretudo, difundi-lo, pois muitos ainda o desconhecem.

"Hoje, o principal desafio é a efetiva aplicação da lei, com a criação de recursos públicos garantindo a proporção prevista no ordenamento jurídico, para o desenvolvimento de políticas públicas adequadas", destacou.

Clarissa ressaltou que também é necessário garantir o pleno funcionamento de conselhos, vez que eles ainda não têm atuação efetiva em todo o Brasil. "É imprescindível que todas as localidades do país tenham conselhos que cumpram a função institucional de deliberar a política oficial de atendimento aos direitos da população infantojuvenil, após adequado diagnóstico da situação das crianças e adolescentes em cada localidade e em cada esfera federal."

Segundo a advogada, com a implementação de políticas públicas há a construção de uma consciência social que coloca a solidariedade como modelo de convivência a ser observado por todos, garantindo um país melhor e mais justo, em especial para as crianças e adolescentes.

Para o advogado Cassio Namur, do Tortoro, Madureira & Ragazzi Advogados, o ECA pode ter seus desafios, como a estruturação do Judiciário, mas também é verdade que é uma referência mundial.

"Poucos países possuem um Estatuto destinado a tratar de crianças e adolescentes tão abrangente e compreensivo. Observo de perto essa questão nos debates no âmbito das entidades internacionais em que participo. Os seus dois livros tratam muito bem tanto do alcance dos direitos, bem como da política de tratamento e combate às situações de violação ou ameaça aos direitos de crianças e adolescentes."

Segundo o advogado, o próximo desafio é mesmo estruturar a competência da Justiça nessa área. "Apesar de existir a competência, há cumulatividade de Justiça com outros temas. Afinal, o 'superior interesse da criança e do adolescente' é previsto globalmente e, portanto, deve ser respeitado em quaisquer hipóteses. Isso ocorre na prática?", finalizou.

A advogada Roberta Muniz Elias, presidente da comissão dos direitos da criança e do adolescente da OAB/GO, acredita que o ECA é o maior marco na legislação brasileira voltada à proteção integral das crianças e dos adolescentes que passaram a ser vistos como sujeitos de direitos e que trouxe o conceito de proteção integral.

"Possui reconhecimento internacional como um dos melhores conjuntos de normas do mundo e desde sua promulgação houve um aumento da consciência sobre os direitos da infância e adolescência, o que promoveu diversos avanços sendo os principais. Além disto o ECA também é a base do desenvolvimento de diversos programas e políticas públicas de proteção, através da criação de algumas leis voltadas às crianças e adolescentes."

Para ela, ainda se faz necessário que a norma saia do papel para o campo prático porque as mudanças na realidade brasileira não se fazem somente por leis e devem ser materializadas no âmbito das políticas públicas.

O ECA é uma das legislações mais assertivas quando se trata de proteção aos direitos das crianças e adolescentes, acredita a advogada Fernanda Cabral Tomita, do escritório Braga & Ruzzi Sociedade de Advogadas e integrante da comissão da mulher advogada da OAB/SP.

Segundo Fernanda, o ECA atende à realidade, mas precisa ser melhor estudado e aplicado pelos operadores e operadoras do Direito. "Na prática, parece que o ECA não é tão explorado quanto deveria justamente por trazer a doutrina da proteção integral", ressalta.

A advogada acredita, ainda, que um dos principais desafios que devem ser discutidos é a perspectiva pela qual a criança e o adolescente são vistos pela sociedade como um todo, inclusive pelo Poder Público, superando a ideia de que eles e elas são "o futuro".

"Para tratar a criança e o adolescente com dignidade, como sujeitos de direitos, é preciso tratá-los como o 'presente', a fim de garantir que seus direitos específicos relacionados à idade sejam amplamente assegurados, garantindo a construção de uma cidadania infanto-juvenil. A partir dessa perspectiva, crianças e adolescentes podem reivindicar do Estado a efetivação de seus direitos fundamentais - este, sim, continua sendo o maior desafio do ECA em 33 anos de existência."

A advogada Vanessa Paiva, do Paiva & André Advogados, acredita que o ECA tem "uma essencialidade maior do que aparentemente observamos". "É uma lei que traz dignidade e direitos essenciais a crianças e adolescentes. No âmbito do direito de família, o Estatuto da criança e do Adolescente é um referencial, que embarca a defesa de todos os direitos da criança, que se sobrepõem as vontades dos pais. Como toda lei, há falhas e necessidade de implementação do seu texto para a prática."

No entanto, para a advogada, as garantias previstas na lei deveriam ter uma abrangência na fiscalização do seu fiel cumprimento, como proteção e desenvolvimento da criança e do adolescente. "Implementar mais políticas públicas que priorizassem o acesso a esses direitos previstos na lei. É muito amplo, mas pouco eficaz", exemplificou.

"É necessário também a escuta ativa da criança, mesmo menor de 12 anos, às autoridades, entregando uma credibilidade e segurança para denunciar questões de abuso, violência, maus tratos. É preciso levar mais a sério o que uma criança tem a dizer sobre determinadas situações. Na prática, hoje, uma criança que relata ao responsável que sofreu algum tipo de violência/abuso sexual é completamente descredibilizado no judiciário, e muitas vezes quem recebe esse tipo de denúncia (mãe, pai, parentes, responsável) tem medo de levar a denúncia para frente, justamente, pela falta de crédito que a palavra da criança tem face ao Poder Judiciário e outros órgãos que deveriam resguardar totalmente o princípio da proteção integral do menor."

De acordo com Nayara dos Santos Eugênio da Silva, membra da comissão especial de defesa dos direitos de crianças e adolescentes da OAB/SP, o ECA estabeleceu um marco significativo na elaboração de políticas públicas e é amplamente reconhecido como uma referência para assegurar os direitos de crianças e adolescentes, fortalecendo o artigo 227 da Constituição Federal.

No entanto, a advogada também acredita que ainda há desafios na implementação integral do documento. 

Para ela, uma das principais conquistas do ECA é a ênfase dada ao princípio da prioridade absoluta. "Isso implica que, em todas as circunstâncias, os interesses de crianças e adolescentes sejam priorizados, sendo reconhecidos como sujeitos de direitos e recebendo proteção e cuidado com primazia", destacou.

Acerca dos principais desafios que ainda devem ser discutidos, Nayara ressalta que a sociedade brasileira é marcada por uma profunda desigualdade social, o que resulta em preocupantes indicadores sociais em diversas áreas.

"Entre eles estão o racismo, a violência física, psicológica e sexual, a falta de acesso à educação, a ausência de um ambiente familiar digno, o trabalho infantil, a negligência e a reintegração social de adolescentes em conflito com a lei, entre outros. Diante desse panorama, ainda há muito a ser feito em prol das crianças e dos adolescentes, visando efetivar seus direitos fundamentais. É necessário um esforço conjunto para superar essas adversidades e construir uma realidade mais justa e igualitária para essa parcela da população."


Histórico

Em junho de 1990, o presidente Fernando Collor lançou programa denominado "ministério da criança". Na ocasião, uma "ministra mirim", de sete anos, propôs a divisão dos lucros das empresas com os empregados.

Em discurso de instalação do "ministério", Collor disse que "o Brasil somente poderá ter um futuro grandioso se começarmos, a partir de agora, a ter uma preocupação efetiva com as crianças brasileiras".

O programa foi o pontapé para que a Câmara e o Senado aprovassem o ECA em caráter de urgência. O destaque na aprovação foi o dispositivo que previa que o prefeito que não concedesse escola para todas as crianças poderia ser processado.

Outro destaque foi o trecho que determinava que o policial que submetesse o menor a situações vexatórias ou de constrangimento seria preso por abuso de autoridade.

A lei foi sancionada em 13 de julho de 1990, pelo então presidente Fernando Collor. No discurso, o presidente disse que naquela ocasião, o país teria "um diploma legal que dá o amparo e que faz justiça aos anseios e às expectativas e aos desejos da criança e do adolescente".


Avanços

Ao longo dos anos, diversas medidas fizeram com que o ECA se tornasse o que é hoje.

Em 1890 criou-se o Código Criminal da República para conter o aumento da violência urbana. A responsabilização penal passou a considerar a Teoria do Discernimento. Assim, crianças entre 9 e 14 anos seriam avaliadas psicologicamente e penalizadas de acordo com o seu "discernimento" sobre o delito cometido. Elas poderiam receber pena de um adulto ou ser considerada imputável.

O decreto 16.272, de 1923, tratou da assistência e proteção de "menores abandonados" e "menores delinquentes", sendo regulamentada posteriormente, em 1923, por decreto. Jovens autores ou cumplices de crime ou contravenção, considerados "menores delinquentes", tornaram-se imputáveis até os 14 anos, não valendo mais a Teoria do Discernimento de 1890.

Em 1926, o engraxate Bernadino, de 12 anos, foi preso ao jogar tinta em uma pessoa que saiu sem pagar pelo serviço. Colocado em uma prisão junto a 20 adultos, o menino foi violentado de várias formas e jogado na rua. Levado para um hospital, narrou o ocorrido para jornalistas. O caso ganhou repercussão e mobilizou debates sobre locais específicos para destinar crianças que cumpririam algum tipo de pena.

A lei de assistência e proteção aos menores, conhecida como Código de Menores, ou Código Mello Mattos (nome do primeiro juiz de menores do Brasil e da América Latina), representou avanços na proteção das crianças. A lei proibiu a "Roda dos Expostos" e tornou os jovens imputáveis até os 18 anos. Criou a "escola de preservação para delinquentes" e a "escola de reforma para o abandonado".

Em 1932, realizou-se uma reforma maior do Código Penal Brasileiro, a partir do decreto 22.213/32, para validar várias alterações já feitas desde 1890, entre elas a mudança maioridade penal de 9 para 14 anos.

Em 1941, institui-se o SAM - Serviço de Assistência a Menores, no decreto-lei 3.799/41, primeiro órgão federal a se responsabilizar pelo controle da assistência aos menores em escala nacional. Atendia aos "menores abandonados" e "desvalidos", encaminhando-os às instituições oficiais existentes, e aos "menores delinqüentes", internando-os em colônias correcionais e reformatórios.

Em 1975, a CPI foi destinada a investigar o problema da criança desassistida no Brasil, contribuindo para a elaboração de um novo Código de Menores.

Em 1979, foi promulgado um novo Código de Menores, com doutrina de proteção integral presente na concepção futura do ECA. Porém, baseou-se no mesmo paradigma do menor em situação irregular da legislação anterior de 1927.

Em 1985, no dia em se votou no Congresso a Emenda Criança (que deu origem aos artigos 227 e 228 da Constituição), mais de 20 mil meninos e meninas fizeram uma "Ciranda da Constituinte" em torno do Congresso Nacional.

O artigo 227 da Constituição Federal de 1988 estabeleceu como dever da família, da sociedade e do Estado "assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".

Aprovado no Congresso Nacional, Estatuto da Criança e do Adolescente é o marco legal que reuniu reivindicações de movimentos sociais que trabalhavam em defesa da ideia de que crianças e adolescentes são também sujeitos de direitos e merecem acesso à cidadania e proteção.

A Convenção Internacional sobre os direitos da Criança é um tratado aprovado na ONU em 20 de novembro de 1989, o Brasil para assegurar os direitos da criança mundialmente. O decreto 99.710/90 declara em seu artigo 1º que "a Convenção sobre os Direitos da Criança, apensa por cópia ao presente Decreto, será executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém".

O Disque Denúncia foi criado em 1997 por organizações não-governamentais que atuam na promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes. Mas em 2003, o serviço passou a ser de responsabilidade do governo Federal chamando Disque 100 - Disque Direitos Humanos.

Em nova lei (13.010/14), foi estabelecido que a criança e o adolescente têm o direito de ser educado e cuidado sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante. Batizada pela imprensa de "lei da Palmada", ganhou na Câmara o nome de lei "Menino Bernardo" em homenagem ao menino Bernardo Boldrini, morto no Rio Grande do Sul com uma injeção letal. O pai do menino foi um dos indiciados pelo crime.

Em 2016, Marco Legal da Primeira Infância (lei 13.257/16) trouxe importantes avanços na proteção aos direitos das crianças brasileiras de até seis anos de idade, ao estabelecer princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas voltadas a meninos e meninas nessa faixa etária.

A lei 13.715/18, alterou o Código Penal para incluir entre as possibilidades de perda do poder familiar a prática de crimes dolosos (com intenção) sujeitos a pena de reclusão cometidos contra descendentes, como filhos e netos, e contra pessoa que detém igual poder familiar ao do condenado, como seu cônjuge ou companheiro, mesmo que divorciado.

Em maio de 2022, foi sancionada a lei Henry Borel, que alterou o ECA para ampliar medidas protetivas para crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica ou familiar. A norma também passou a considerar crime hediondo o assassinato de menor de 14 anos, com pena de reclusão de 12 a 30 anos.

A mais recente foi a lei 14.548/23, que atualizou o ECA para fazer referência ao cadastro nacional de crianças e adolescentes desaparecidos e estabelecer que a linha de ação da política nacional de busca de pessoas desaparecidas será executada também em cooperação com o cadastro nacional de pessoas desaparecidas e com outros cadastros nacionais, estaduais ou municipais.


Fontes: Senado | Câmara | Biblioteca Nacional | MP/PR

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