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Marco temporal de terras indígenas: o que está em debate no STF?

Até o momento, placar está empatado: há um voto contra se definir como marco temporal a data da promulgação da CF, e outro a favor.

6/6/2023

Nesta quarta-feira, 7 de junho, o STF retoma o julgamento que discute o marco temporal de terras indígenas.

Mas o que está em debate na Suprema Corte? 

STF volta a julgar marco temporal das terras indígenas nesta quarta-feira, 7 de junho.(Imagem: Rafael Stedile/Futura Press/Folhapress | Arte Migalhas)

O litígio em análise envolve a posse de áreas que teriam ocupação tradicionalmente indígena. De um lado, povos indígenas querem provar que têm direito a determinadas terras, por questão de tradicionalidade. 

De outro, o que se busca é o estabelecimento de um "marco temporal", uma data, a partir da qual as terras que não estivessem ocupadas por indígenas não pertenceriam a eles.

A proposta é que este marco seja a data da promulgação da atual Constituição Federal: 5 de outubro de 1988. Assim, povos indígenas só poderiam lutar pela demarcação das terras que provarem estar sob sua posse nesta data. 

Sobre o tema, ouvimos o advogado e professor de Direito Internacional Eugênio Aragão, ex-membro do MPF e ex-ministro da Justiça. Ele explica onde o imbróglio teve início, e dá sua opinião sobre a fixação de um "marco temporal".

Assista:

A quem pertence a terra?

O debate teve início em 2009, quando a FATMA - Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina buscou a Justiça, por meio de ação de reintegração de posse, dizendo que é possuidora de uma área de mais de 80 mil m² localizada na linha "Esperança-Bonsucesso". Segundo a Fundação, essa área compõe uma gleba maior, chamada de "Reserva Biológica do Sassafras". A Fundação alega que, naquele ano, 100 indígenas teriam ocupado a referida área, e que acabaram por derrubar a mata nativa do interior da reserva, montando barracas.

De outro lado, a FUNAI – Fundação Nacional do Índio rebateu, alegando que aquela área, na verdade, é protegida pela portaria 1.182/03, do ministério da Justiça, que declarou de posse permanente dos grupos indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani a Terra indígena Ibirama-La Klãnõ, com superfície aproximada de 37 mil hectares, localizada nos municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, José Boiteux e Vitor Meireles, todos em Santa Catarina.

O julgamento do caso vai requerer dos ministros a análise do art. 213, da CF/88, o qual dispõe o seguinte:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Sobre o recurso acerca deste embate foi reconhecida repercussão geral em 2019, de modo que o impacto será para toda a comunidade indígena, e não só para o referido grupo envolvido no caso concreto. 


Votos

Até o momento, há dois votos no julgamento: um pelo sim, outro pelo não.

Marco temporal:
NÃO

O relator, ministro Edson Fachin, é contra a fixação de um marco temporal para a discussão sobre a posse das terras. 

Em seu voto, ele registrou que a Constituição confere aos indígenas brasileiros direitos individuais e coletivos a serem garantidos pelos Poderes Públicos "por meio de políticas que preservem a identidade de grupo e seu modo de vida, cultura e tradições".

O ministro anotou que a quantidade de ações possessórias referentes às terras ocupadas por indígenas revela o descuido por parte dos órgãos públicos em respeitar o disposto no artigo 231 do texto constitucional: "os indígenas no Brasil permanecem (...) dependendo das providências administrativas para ver concretizado seu direito à terra".

Ele destacou que, descumprindo a Constituição, não são feitos estudos antropológicos necessários à demarcação de terras; e, "se os servidores não possuem condições de levar a término todos os procedimentos demarcatórios em trâmite perante a FUNAI, a toda evidência essas demandas judiciais permanecerão a ocorrer, com a judicialização de todas as fases do complexo processo de demarcação dessas terras".

O ministro também observou que a terra, para os indígenas, não tem valor comercial, não funciona como mercadoria, mas se liga visceralmente à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena.

Em seu voto, Fachin relembrou "as atrocidades causadas aos índios desde 1500", por meios violentos e obscuros, para incentivar a abertura de terras para ocupação do interior do país. "Como poderia a ordem constitucional de 1988 (...) legitimar a obtenção das terras indígenas por meio da violência, desqualificando o direito dessas comunidades?"

Sob este contexto, o ministro votou contra o marco temporal, levando em consideração que muitos indígenas foram expulsos de suas terras antes de 1988. 

Ele propôs a fixação da seguinte tese: 

Os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sob os seguintes pressupostos:

I - a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;

II - a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;

III - a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal;

IV - a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.

V - o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;

VI - o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência;

VII - as terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;

VIII - as terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;

IX - são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito à indenização ou ação em face da União pela circunstância da caracterização da área como indígena, ressalvado o direito à indenização das benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé;

X - há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente.


Marco temporal:
SIM

Segundo a votar, ministro Nunes Marques divergiu do relator.

Para ele, a imposição de um prazo para demarcação de terras indígenas, prevista no art. 67 do ADCT da Constituição de 88, não deixa dúvidas de que era intenção do constituinte abolir, de vez, qualquer discussão sobre o que era e o que não era espaço indígena, delimitando claramente seu alcance.

O citado artigo diz o seguinte: 

Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.

Para Nunes Marques, a redação do texto constitucional aponta que a posse indígena deveria existir no ano de 88, em caráter tradicional. "As posses depois de 1988 não podem ser consideradas tradicionais porque isso implicaria não apenas o reconhecimento dos direitos indígenas às suas terras, mas sim o direito de expandi-las ilimitadamente para novas áreas já definitivamente incorporadas ao mercado imobiliário internacional."

O ministro destacou que a propriedade privada é elemento fundamental das sociedades capitalistas, como é a brasileira atual, e a insegurança sobre esse direito é sempre causa de grande desassossego e de retração de investimentos.

Ele propôs a seguinte tese: 

Os direitos territoriais indígenas constituem direito fundamental desses povos e se concretizam no direito sobre as terras que tradicionalmente ocupam sobre os seguintes pressupostos:

I - A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas pelos índios em caráter permanente das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessárias ao seu bem-estar e das indispensáveis à sua reprodução física e cultural, segundo os costumes e tradições que lhe são próprios, nos termos do § 1º art. 231 do texto constitucional;

II - a proteção constitucional dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam depende da existência de um marco temporal - 5 de outubro de 1988 -, ou da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição;

III - a demarcação é prosseguimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidades indígenas;

IV - a deflagração de processo demarcatório que contemple uma determinada terra indígena tradicional não se constitui em causa suficiente de per si à emissão dos indígenas na respectiva posse, porquanto tal procedimento, de natureza complexa, depende da deliberação da Funai, do ministério da Justiça e do presidente da República, não surtindo quaisquer efeitos aos interessados antes de sua última ação, restando assim plenamente resguardada a posse legítima dos ocupantes de boa-fé;

V - o laudo antropológico realizado em observância ao disposto no decreto 1.776/96 é elemento fundamental à demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada;

VI - o reconhecimento do direito às terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas se compatibiliza com a tutela constitucional do meio ambiente, porém sobre ele não se sobrepõe e, por isso, não pode vilipendiar as terras titularizadas por terceiros, sejam eles particulares ou pessoa jurídicas de direito público, tampouco se cogita que se possa vulnerar propriedade privada ou a própria defesa do meio ambiente, ambos alentados como princípio sobre os quais se baseiam a ordem econômica;

VII - a interferência unilateral da União em território estadual somente deve ser autorizada a partir de critérios constitucionalmente adequados, evitando-se a privação da propriedade ou dos bens de terceiro sem o devido processo penal, garantia fundamental expressamente albergada no texto constitucional;

VIII - as terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o uso fruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes;

IX - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, na qualidade de terras públicas são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas são imprescritíveis;

X - são nulos e extintos, de modo a não produzirem efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras tradicionais indígenas ou a exploração do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito a indenização ou ao ajuizamento de ação contra a União em virtude da caracterização da área como indígena, ressalvada indenização pelas benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

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