"A Liberdade — em frente à Escravidão, / Era a luta das águias — e do abutre, / A revolta do pulso—contra os ferros, / O pugilato da razão — com os erros, / O duelo da treva — e do clarão!..." Castro Alves - Ode ao dois de julho
No próximo dia 13/5, “comemoram-se” 135 anos do fim da escravidão no Brasil. Em 1888, enquanto Dom Pedro II viajava, a Princesa Isabel entrou para a história como responsável pela assinatura da lei Áurea – que significa “brilhante, resplandecente” – marcando o “fim” da escravidão no país.
“Antes tarde do que nunca”, respiraram os abolicionistas. É que o Brasil foi o último país do Ocidente a declarar o término do trabalho escravo.
Acende-se a chama Áurea
Antes de apontar o treze de maio como uma data rigorosamente comemorativa, é forçoso desenredar o mito da assinatura da lei. Deve-se lembrar que a primeira legislação sobre o tema, resultado de forte pressão inglesa, foi a lei Eusébio de Queirós (1850), proibindo o tráfico negreiro no Brasil.
A passos arrastados, em 1871 a lei do Ventre Livre foi aprovada. Ela dizia que os filhos de mulheres em situação de escravidão, nascidos a partir de 1871, estariam livres, desde que trabalhassem por um certo período. Se libertos a partir dos oito anos, seu senhor receberia indenização; se a partir dos 21, nada receberia.
Posteriormente, em 1885, a lei dos Sexagenários libertou pessoas em situação de escravidão com mais de 60 anos. Em contrapartida, impôs aos “libertos” a obrigação de prestar três anos de serviços a título de indenização, ou trabalhar até os 65 anos de idade.
Ao analisar o cenário da época, é possível compreender que a abolição de 1888 não foi resultado da generosidade de governantes humanitários e solidários, mas de pressões sociais e necessidades políticas de ordem interna e externa. Veja-se que ao menos duas das leis mencionadas previam contrapartidas para que os senhores de escravos fossem indenizados, após a perda de seus serviçais.
Segundo Luciano Góes (2016, p.168 e 172), a abolição foi estritamente formal e profundamente falsa, sem um verdadeiro projeto de integração dessa população à sociedade.
A chama se apaga
Joaquim Nabuco, escritor, diplomata e abolicionista, escreveu que “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Não sem razão.
Após a lei Áurea, a segregação racial dos libertos não diminuiu. Diferentemente dos EUA e da África do Sul, o Brasil não dispôs regras de segregação racial. Todavia, olvidou-se também as políticas que integrassem o negro, de forma que, paulatinamente, foi aumentando o processo de desigualdades, o qual se reflete até os dias atuais.
Em vez de um cenário explícito de apartheid, vivenciou-se uma discriminação velada e os “ex-escravos” permaneceram desintegrados socialmente.
O CP de 1890, por exemplo, criminalizava a capoeira, o curandeirismo e a vadiagem, tipos penais claramente voltados para o encarceramento da população negra.
A Constituição de 1934, em pleno Estado Novo, declarava a igualdade de todos, proibindo a discriminação racial (art. 113). Entretanto, simultaneamente dispunha em seu art. 138 que caberia à União, Estados e municípios “estimular a educação eugênica”.
A lei Afonso Arinos foi a primeira lei brasileira no combate ao racismo, mas o previa apenas como contravenção penal.
A Constituição de 1967 tratou explicitamente do racismo, dispondo sobre a igualdade e punição do preconceito de raça pela lei (art. 150, §1º).
Apenas com a Constituição de 1988, o racismo foi criminalizado de forma inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão.
Reluzem as políticas afirmativas
Como já ficou claro, a abolição sempre andou de mãos dadas com a situação de segregação racial no país.
Os “ex-escravos” e seus descendentes careceram de proteção e estímulo de crescimento em igualdade de condições por muitos anos, sendo apenas objeto de atenção do legislador e das políticas públicas em período recente.
Com efeito, destacam-se, assim, as políticas afirmativas. São ações pontuais, com duração determinada, que visam diminuir as desigualdades históricas.
No Brasil, esse tipo de medida despontou nos anos 2000. De fato, em 2001, durante a Conferência de Durban, o Brasil reconheceu-se internacionalmente como um país racista. E a primeira ação afirmativa foi a da lei 10.639/03, estabelecendo o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica.
Em 2010, o Estatuto da Igualdade Racial (lei 12.288/10) previu ações afirmativas em temas como empregos, liberdade religiosa, acesso à terra e moradia. Em 2012, a lei 12.711 definiu programas de cotas em universidades para pretos, pardos e pobres.
Mas, como é bem de ver, as políticas afirmativas nem sempre foram suficientes, pois o Brasil mantém de ser forma um contexto cultural “escravocrata”. Não sem motivo, desde 2003 (lei 10.803/03) existe no CP um tipo específico que criminaliza o “trabalho análogo à escravidão”.
A necessidade de inclusão deste crime, e da existência da portaria 671/21 do MTE delineando as características dessa condição, dizem muito sobre a sociedade que vivemos no século XXI, encalçando o que se denomina “escravidão moderna”.
Fez-se luz, mas minguou
Entende-se que o trabalho “escravo” existente atualmente é “análogo à escravidão” porque, formalmente, ela foi abolida, nestes chãos, em 1888.
Segundo o MTE , em 2021 foram resgatadas 1.959 pessoas em condição análoga à escravidão, no país.
O mais recente relatório do MTE apontou um total de 2.575 pessoas sujeitas à condição análoga à escravidão resgatadas durante 2022. A maior parte destes trabalhadores foi resgatada no meio rural (73%), principalmente no cultivo de cana-de-açúcar. Quanto ao perfil social, 83% eram autodeclarados negros/pardos.
Até março de 2023, 523 trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatados. Na justiça do trabalho, o número de processos julgados a respeito do tema, em todas as instâncias, nos últimos 5 anos, segundo dados do TST, foi de 10.482. E o número de ações cresceu 41%, entre os anos de 2020 e 2021.
Esses números reiteram o quanto dito acerca da condição moderna de escravidão, vivenciada, principalmente, por negros e imigrantes vítimas do tráfico humano.
Aliás, é recente o caso dos 207 trabalhadores em situação análoga à escravidão, na região de Bento Gonçalves na Serra Gaúcha, contratados para a colheita da uva. Tratou-se de uma típica situação de servidão por dívida, com empregados submetidos a jornadas exaustivas, alimentados com comida imprópria para consumo e vivendo em locais insalubres.
Não são raras, também, denúncias sobre o trabalho análogo à escravidão em situações domésticas. Inúmeros são os exemplos de julgados condenando empregadores que submetiam empregados a esse tipo de condição.
Episódio emblemático noticiado pelo Fantástico ocorreu em 2020, quando uma mulher foi resgatada de trabalho doméstico análogo à escravidão após 38 anos.
Em outro, uma mulher permaneceu em situação de escravidão durante 45 anos na Bahia. A notícia repercutiu após ser resgatada e confessar a uma repórter que temia segurar a mão da jornalista por ela ser branca.
Em 2022 a CNN noticiou o caso de uma idosa de 84 anos resgatada no Rio de Janeiro, após 72 anos de trabalho análogo à escravidão para uma mesma família, desde os 12 anos de idade.
Em 3 de abril, p.p., o procurador-Geral da República, Augusto Aras, ajuizou ação no STF para garantir que o crime de trabalho análogo à escravidão não prescreva.
O STF também já definiu como tema de repercussão geral (Tema 1.158) questão que discute se um trabalho pode ser configurado como análogo a escravo conforme a realidade do local em que é realizado. O tema também visa fixar padrões de prova para conferir maior peso àquelas produzidas na fiscalização trabalhista.
Reluzirá?
O fato é que os dados apresentados acima afrontam o desejo de celebrar 135 da assinatura da lei Áurea. A gravidade de situações como essas, atrelada ao racismo – velado e explícito – confirmam que a cultura escravista secular do país não se desfaz pela aposição da caneta ao papel.
Dirão alguns que é um pouco de exagero. Mas veja-se a seguinte situação: em pleno ano da graça de 2023, um homem foi condenado por injúria racial, pelo TRF-4 ao veicular anúncio de venda de "escravo", em redes sociais.
Por óbvio, sem a famosa assinatura da princesa regente a sociedade não caminharia para a ampliação de direitos. Com a lei Áurea, um passo à frente foi autorizado, pois o olhar estatal sobre suas necessidades tornou-se positivado.
A luta, porém, continuou. E continua.
Fonte: GÓES, Luciano. A “tradução” de Lombroso na obra de Nina Rodrigues, o racismo como base estruturante da criminologia brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1ª ed., 2016.