Migalhas Quentes

Caso no Sul mostra que trabalho escravo ainda é uma realidade no país

Segundo dados divulgados pelo ministério do Trabalho e Previdência, 2.575 trabalhadores em condições análogas às de escravo foram resgatados em 2022, em um total de 462 fiscalizações realizadas no ano em todo país.

7/3/2023

Quase 135 anos após a abolição da escravatura no Brasil, situações análogas ao trabalho escravo lamentavelmente ainda são registradas no país. Com efeito, o exemplo mais recente aconteceu no Rio Grande do Sul, no final do mês passado. Na ocasião, 207 trabalhadores foram resgatados em situações degradantes na Serra Gaúcha.

A seguir, entenda o caso, veja dados do trabalho análogo ao de escravo em 2022 e entenda por que a situação pode ser comparada com a dos garimpeiros na Amazônia e até com os seringueiros da época de 1900 citados na obra de Euclides da Cunha.

207 trabalhadores foram resgatados em situações degradantes na Serra Gaúcha.(Imagem: Divulgação/MPT)

O caso

No dia 22/2, uma ação conjunta entre a Polícia Rodoviária Federal, Polícia Federal e ministério do Trabalho e Emprego resgatou 207 trabalhadores em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. Os empregados, em sua maior parte oriundos da Bahia, foram trazidos para trabalhar na colheita da uva. Eles foram contratados por uma empresa terceirizada para prestar serviço a três grandes vinícolas da região: Aurora, Salton e Garibaldi.

As idades dos 207 resgatados variam entre 18 e 57 anos.

O resgate ocorreu depois que três trabalhadores que fugiram do local contactaram a PRF, em Caxias do Sul, e fizeram a denúncia. As investigações preliminares apontam que os empregados eram submetidos a jornadas exaustivas, recebiam comida imprópria para consumo, só podiam comprar produtos em um único estabelecimento, com desconto salarial e preços elevados, e era mantidos vinculados ao trabalho por supostas “dívidas” contraídas com o empregador.

No local de trabalho, fiscais do MTE encontraram uma máquina usada para aplicação de choque elétrico e tubos de spray de pimenta. O uso do choque e do spray foi confirmado pelos trabalhadores.

De acordo com depoimentos colhidos ao longo das últimas semanas, no momento da contratação, prometia-se aos empregados que seriam custeados alimentação, hospedagem e transporte. Mas, chegando ao Rio Grande do Sul, eles foram surpreendidos com a informação de que teriam de pagar pelo alojamento, já começando em dívida. 

"Não bastasse o empregador não pagar a alimentação no deslocamento de vinda para o destino, suas carteiras de trabalho, quando assinadas, tinham como datas de admissão, no mais das vezes, as datas do início do trabalho no destino, e não as de sua contratação na origem, como determina a legislação. Além disso, também constatou que a concessão de empréstimos a juros extorsivos pelo dono do alojamento ligado ao empregador, assim como os descontos feitos pelos produtos adquiridos em mercado próximo ao alojamento e os relatos de violência física e psicológica ocorridos no mesmo alojamento, foram o diferencial neste procedimento fiscal", detalharam os auditores da Superintendências Regionais do Trabalho presentes em uma coletiva de imprensa.

Em nota, as vinícolas disseram que desconheciam as irregularidades praticadas contra os trabalhadores recrutados pela terceirizada.

Embora as vinícolas tentem se isentar da culpa, juridicamente elas podem ter responsabilidade solidária sobre o crime flagrado em suas fazendas. Ao terceirizar o serviço, as empresas têm o dever de fiscalizar a execução do trabalho. A responsabilidade está prevista no art. 5º-A, § 3º, da lei 6.019/74:

Art. 5º-A. Contratante é a pessoa física ou jurídica que celebra contrato com empresa de prestação de serviços relacionados a quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal. (Redação dada pela Lei nº 13.467, de 2017)

§ 3º  É responsabilidade da contratante garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato. (Incluído pela Lei nº 13.429, de 2017)

Já no âmbito penal, o Código Penal determina, em seu art. 149, que é crime reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

A pena é de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. 

Sistema assistencialista?

Depois do caso vir à tona, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves emitiu uma nota lamentável culpando o “sistema assistencialista” do país pela situação.

“Situações como esta, infelizmente, estão também relacionadas a um problema que há muito tempo vem sendo enfatizado e trabalhado pelo CIC-BG e Poder Público local: a falta de mão de obra e a necessidade de investir em projetos e iniciativas que permitam minimizar este grande problema. Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade.”

Veja a íntegra da nota ao final da matéria.

Trabalho análogo ao de escravo em 2022

Segundo dados divulgados pelo ministério do Trabalho e Previdência no início do ano, 2.575 trabalhadores em condições análogas às de escravo foram resgatados em 2022, em um total de 462 fiscalizações realizadas no ano em todo país, resultando em mais de R$ 8 milhões em direitos trabalhistas.

O GEFM - Grupo Especial de Fiscalização Móvel realizou 32% do total das ações fiscais, encontrando trabalho análogo ao de escravo em 16 dos 20 Estados onde ocorreram ações. Apenas nos Estados de AL, AM e AP, mesmo fiscalizados, não foram constatados casos de escravidão contemporânea em 2022.

Minas Gerais foi o Estado com mais ações fiscais ocorridas no ano (117), tendo 1.070 trabalhadores resgatados. Em seguida vem Goiás, com 49 fiscalizações e Bahia, com 32 ações. O maior resgate de trabalhadores ocorreu em Varjão de Minas/MG, onde 273 trabalhadores foram resgatados de condições degradantes de trabalho na atividade de corte de cana-de-açúcar.

As indenizações alcançaram no ano um total de R$ 8.187.090,13, a título de verbas salariais e rescisórias em razão da rescisão imediata dos contratos de trabalho. O vínculo de emprego com a formalização de contratos de trabalho alcançou 1.122 trabalhadores, sendo ainda recolhidos mais de R$ 2,8 milhões a título de FGTS.

Perfil dos trabalhadores resgatados

Em relação ao perfil social das pessoas resgatadas, dados do seguro-desemprego pagos ao trabalhador resgatado mostram que 92% eram homens, sendo que 29% deles tinham entre 30 e 39 anos. 51% residiam na região Nordeste e outros 58% eram naturais dessa região. 83% deles se autodeclararam negros ou pardos e 15% brancos e 2% indígenas.

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Quanto ao grau de instrução, 23% deles declararam ter estudado até o 5º ano incompleto, outros 20% haviam cursado do 6º ao 9º ano incompletos. 7% dos trabalhadores resgatados se declararam analfabetos.

Outro dado importante mostrado pelo relatório é que 148 resgatados eram migrantes de outros países, o dobro em relação a 2021. Foram encontrados pelas equipes 101 paraguaios, 25 bolivianos, 14 venezuelanos, 4 haitianos e 4 argentinos.

Atividades

Entre as atividades econômicas, 362 pessoas foram resgatadas no cultivo de cana-de-açúcar; 273 em atividades de apoio à agricultura; 212 na produção de carvão vegetal, 171 no cultivo de alho; 168 no cultivo de café; 126 no cultivo de maçã; 115 em extração e britamento de pedras; 110 na criação de bovinos; 108 no cultivo de soja; 102 extração de madeira e 68 na construção civil.

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Do total de ações, 73% delas ocorreram na área rural, setor que também contribuiu com 87% dos resgates, percentual muito próximo aos de 2019 e 2020.

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No meio urbano (27% das ações), foram resgatados 210 trabalhadores nas atividades da construção civil (68 resgates), setor de serviços, especificamente em restaurantes (63 resgates) e confecção de roupas (39 resgates).

No trabalho escravo doméstico foram encontradas pela fiscalização 30 pessoas, em 15 unidades da Federação, com maior foco na Bahia (10 casos). Paraíba, Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco tiveram 3 casos em cada Estado.

Situação assemelha-se aos garimpeiros

Há pouco tempo, em entrevista concedida ao Migalhas, o advogado e ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão comentou sobre a situação dos garimpeiros e os povos Yanomami. O caso, de certa forma, pode ser equiparado aos trabalhadores resgatados no Sul.

Conforme explicou Aragão naquela ocasião, os garimpeiros são também vítimas da situação: em geral, vivem na miséria. A responsabilidade é, de fato, dos donos dos garimpos. "Sempre faço questão de distinguir".

"Os garimpeiros não vão pedir Uber para ir ao supermercado. Eles vão ter que comprar seus víveres a partir daquilo que os aviões dos donos dos garimpos levam, vão comprar do dono do garimpo. Que vende, evidentemente, esses produtos, muito mais caro do que os supermercados. Então eles se endividam com o dono do garimpo e acabam tendo uma relação de quase escravos com os donos dos garimpos."

Na opinião do ex-ministro, cabe à pasta da Justiça tirar essas pessoas de lá.

Ele destacou que a solução para o problema é complexa, mas que é necessário buscar uma solução sustentável, de recomposição do meio ambiente.

Assista:

Literatura numa hora dessas?

Também narrando uma situação parecida com a dos que colhiam uvas no Sul, Euclides da Cunha descreve a dramática vida dos caucheiros na Amazônia. Trata-se, S.M.J, do melhor texto escrito pelo autor d'Os Sertões: "Judas-Ahsverus". Bem poderíamos trocar os seringueiros de 1900, pelos viticultores de 2023. O único "detalhe" é que lá se vão mais de cem anos entre a publicação euclidiana e os fatos de agora.

Em sua obra, Euclides da Cunha mostra que esses trabalhadores viviam em situação análoga à escravidão e todo o lucro ficava concentrado com os patrões. Na ambição de conseguirem uma vida melhor, esses seringueiros já chegavam na Amazônia com uma dívida que jamais pagariam. Eles ficavam devendo desde o valor do trajeto até dos utensílios que eram obrigados a consumir e dos mantimentos necessários para sobreviver. A situação muito se assemelha aos 207 resgatados na Serra Gaúcha.

Veja o trecho abaixo do texto euclidiano:

“Além disto, só lhe é lícito punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo, maniatado e escravo, aos traficantes impunes que o iludem — e este pecado é o seu próprio castigo, transmudando-lhe a vida numa interminável penitência. O que lhe resta a fazer é desvendá-la e arrancá-la da penumbra das matas, mostrando-a, nuamente, na sua forma apavorante, à humanidade longínqua…”

Trecho do texto Judas-Ahsverus, de Euclides da Cunha.(Imagem: Arte Migalhas)

______

Íntegra da nota do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves:

“Na condição de entidade fomentadora e defensora do desenvolvimento sustentável, ético e responsável dos negócios e empreendimentos econômicos, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves vem acompanhando com atenção o andamento das investigações acerca de denúncias de práticas análogas à escravidão no município. É necessário que as autoridades competentes cumpram seu papel fiscalizador e punitivo para com os responsáveis por tais práticas inaceitáveis.

Da mesma forma, é fundamental resguardar a idoneidade do setor vinícola, importantíssima força econômica de toda microrregião. É de entendimento comum que as vinícolas envolvidas no caso desconheciam as práticas da empresa prestadora do serviço sob investigação e jamais seriam coniventes com tal situação. São, todas elas, sabidamente, empresas com fundamental participação na comunidade e reconhecidas pela preocupação com o bem-estar de seus colaboradores/cooperativados por oferecerem muito boas condições de trabalho, inclusive igualmente estendidas a seus funcionários terceirizados. A elas, o CIC-BG reforça seu apoio e coloca-se à disposição para contribuir com a busca por soluções de melhoria na contratação do trabalho temporário e terceirizado.

Situações como esta, infelizmente, estão também relacionadas a um problema que há muito tempo vem sendo enfatizado e trabalhado pelo CIC-BG e Poder Público local: a falta de mão de obra e a necessidade de investir em projetos e iniciativas que permitam minimizar este grande problema. Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade.

É tempo de trabalhar em projetos e iniciativas que permitam suprir de forma adequada a carência de mão de obra, oferecendo às empresas de toda microrregião condições de pleno desenvolvimento dentro de seus já conceituados modelos de trabalho ético, responsável e sustentável.”

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