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Violência sexual: CIDH decide contra a Bolívia no caso Angulo Losada

Em seu voto, o juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch destacou a necessidade de adequação da legislação penal do país em relação a violência sexual.

19/1/2023

A Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu nesta quinta-feira, 19, o julgamento de responsabilização do Estado da Bolívia por violação do direito de acesso à Justiça sem discriminação de gênero e idade em caso de violência sexual sofrida por Brisa Angulo Losada, na Bolívia, aos 16 anos, por seu próprio primo, à época com 26 anos. A alegação é de que teria havido omissão por parte do Estado na análise do caso pela Justiça.

A conclusão da Corte foi de que o Estado da Bolívia foi responsável pela violação dos direitos à integridade pessoal, às garantias judiciais, à vida privada e familiar, à proteção judicial, à garantia de prazo razoável do processo legal, à proteção judicial, ao direito ao acesso à justiça sem discriminação e a proibição de tratos cruéis, desumanos e degradantes, previstos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) e na Convenção de Belém do Pará, todos em prejuízo da vítima, sra. Losada. Sendo assim, foram impostas várias medidas de reparação, que consistem em adequações no Direito interno, especificamente no âmbito penal.

Entre os integrantes do colegiado está o juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, que apresentou voto concorrente à sentença. Para o juiz, as reformas ditadas pela Corte são fundamentais para "desembaraçar as restrições que foram impostas à Sra. Losada em seu acesso à justiça, as quais são enfrentadas por um sem-número de pessoas".

Seu voto objetivou fortalecer o fundamento da importância especialmente des duas medidas de reparação adotadas pela Corte: a adequação da legislação penal do país de forma que a ausência de consentimento seja elemento central e constitutivo do crime de violação e seja dada visibilidade à violação incestuosa mediante atribuição de nomen juris próprio no Código Penal Boliviano. 

Assista ao ato de notificação de sentença, realizado nesta quinta-feira, 19:

Medidas impostas

Em cada caso concreto, a Corte estabelece um conjunto de medidas para reparar, na maior extensão possível, o dano sofrido pela vítima e evitar que novas vítimas sejam submetidas a situações semelhantes. No caso Angulo Losada, a Corte elaborou um rol de medidas reparatórias, objetivando corrigir déficits legislativos e institucionais que contribuíram para a violação de seus direitos e que ainda colocam em risco as presentes e futuras vítimas de crimes sexuais na Bolívia: 

i. O Estado manterá aberto o processo penal contra a E.G.A e promoverá a investigação do caso se houver alteração das circunstâncias que o permita; 

ii. O Estado adotará todas as medidas necessárias para, dentro de um prazo razoável, determinar, por meio dos órgãos públicos competentes, as possíveis responsabilidades dos funcionários que contribuíram com suas ações para o cometimento de atos de revitimização e possíveis irregularidades em detrimento de Brisa De Angulo Losada;

iii. O Estado publicará, no prazo de seis meses, o resumo desta Sentença no Diário Oficial e em meio de comunicação de grande circulação nacional e esta Sentença na íntegra em site oficial apropriado;

iv. O Estado realizará ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional; 

v. O Estado adequará seu ordenamento jurídico interno de forma que a falta de consentimento seja central e constitua o crime de violação;

vi. O Estado adequará seu ordenamento jurídico interno em relação ao delito de estupro, de forma a eliminá-lo;

vii. O Estado adequará seu ordenamento jurídico interno para dar visibilidade à violação incestuosa, por meio da atribuição de um nomen juris próprio no Código Penal boliviano.; 

viii. O Estado adaptará seus protocolos ou adotará novos protocolos, implementará, supervisionará e fiscalizará um protocolo de investigação e atuação no processo penal para casos de menores vítimas de violência sexual; um protocolo de abordagem integral e avaliação médico-legal para casos de menores vítimas de violência sexual, e um protocolo de atendimento integral a menores vítimas de violência sexual;

ix. O Estado adotará e implementará treinamentos e cursos permanentes para funcionários públicos que, por sua atuação na administração da justiça, trabalhem com questões de violência sexual; em particular, funcionários pertencentes ao Judiciário e ao Ministério Público, treinamentos estes que devem contemplar os padrões de devida diligência na investigação;

x. O Estado adotará e implementará treinamentos e cursos permanentes dirigidos a médicos legistas e demais funcionários do Instituto de Perícias Forenses, com o objetivo de oferecer capacitação sobre o tratamento adequado de menores vítimas de violência sexual durante o exames médicos; 

xi. O Estado implementará uma campanha de conscientização e sensibilização, dirigida à população boliviana em geral, por meio de um canal de televisão aberta, rádio e redes sociais, destinada a enfrentar os esquemas socioculturais que normalizam ou banalizam o incesto; 

xii. O Estado incorporará nos materiais escolares obrigatórios informações adequadas, oportunas e adequadas ao nível de maturidade das meninas, meninos e adolescentes, visando dotá-los de ferramentas para prevenir, identificar e denunciar atos constitutivos e riscos de violência sexual;

xiii. O Estado formulará e implementará um sistema nacional e centralizado de coleta de dados para casos de violência sexual contra menores.

Premissas ultrapassadas - Violação x Estupro

Em seu voto, o juiz Rodrigo Mudrovitsch abordou, entre outros pontos, a problemática da tipificação dos crimes sexuais na Bolívia.

Ele explica que os procedimentos judiciais da sra. Losada contra o abusador foram marcados por controvérsias sobre se o tipo penal a ser aplicado ao réu seria “violação” ou “estupro”. 

Enquanto a “violação” era definida como a conjunção carnal, penetração ou introdução de objetos com fins libidinosos realizados com emprego de “violência física ou intimidação” e resultava em uma pena de privação de liberdade de 5 a 15 anos, o tipo “estupro” era (e continua a ser) definido como a conjunção carnal com um maior de 14 anos e menor de 18 realizado mediante “sedução ou engano” e considerado menos grave, com pena de 2 a 6 anos de privação de liberdade.

Para Mudrovitsch, o modelo de tipificação adotado pela Bolívia é baseado em premissas ultrapassadas e não contempla todas as formas de violação, e a exigência de resistência – consequência da tipificação envolvendo noções de violência física e intimidação – não leva em conta situações em que esta não é a resposta da vítima, que pode ficar paralisada por evitação psicológica ou medo de lesões adicionais, além de perpetuar a percepção equivocada de que é responsabilidade da vítima se proteger e que, se não o fizer, é porque é participante voluntária do ato sexual. 

Por isso, exigir um consentimento genuíno e voluntário para o ato sexual e considerar as circunstâncias coercitivas que viciam qualquer consentimento é o standard adequado, perante o Direito Internacional dos Direitos Humanos, para proteger as vítimas de violação. 

Assim, o juiz conclui que a Bolívia deve eliminar os requisitos de violência e intimidação do artigo 308 do seu Código Penal como garantia de não repetição, e incorporar, verdadeiramente, um parâmetro centrado na ausência de consentimento. 

Ele ainda destacou a importância de que, após esta reforma, o tipo "estupro" seja removido do ordenamento, pois, apesar de parecer proteção adicional a este grupo, o que ocorre na prática é que pessoas acusadas de crimes sexuais contra pessoas (geralmente mulheres) de 14 a 18 anos são enquadradas no tipo "estupro" no lugar do tipo "violação", o que acarreta a imposição de penas mais leves a condutas de igual ou maior reprovabilidade social que aquelas previstas no delito de violação.

O caso - Histórico

No ano de 2001, quando Losada completaria 16 anos, seu primo teria ido morar temporariamente com sua família. Teria se iniciado, então, uma série de agressões sexuais à vítima, mantidas em segredo por pressão, ameaças e outras formas de violência psicológica, que perduraram por cerca de 8 meses. A descoberta dos episódios pelos pais da vítima teria ocorrido com a leitura de seu diário por um de seus irmãos.

Em 2002, a vítima formalizou a denúncia, dando início a procedimentos judiciais. Houve sentença de condenação por estupro em 2003, mas a decisão foi anulada dois anos depois. Na segunda série de procedimentos, em 2005, o acusado foi absolvido por ausência de provas.

Em 2007, a Corte Suprema de Cochabamba anulou a sentença absolutória e determinou o reenvio da causa a outro julgamento e, em 2008, foi iniciado um novo processo, mas o réu havia deixado a Bolívia e retornado a seu país natal, Colômbia, o que impossibilitou a continuidade do caso.

Só após dez anos a Bolívia iniciou procedimento de extradição, e, após a captura do homem para extradição em 2022, a Suprema Corte da Colômbia ordenou sua liberdade por prescrição. Assim, passados mais de 20 anos, não há qualquer sentença transitada em julgado sobre o caso.

Ação humana

Em sessão anterior sobre este mesmo caso, em março de 2022, a vítima prestou depoimento. Naquele dia, chamou a atenção a atuação do juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, que se solidarizou com a situação da vítima.

Isto porque a vítima teria 20 minutos para falar. Ela diz que foi devastada pela violência sexual, e que “foram 20 anos de horrores, dor e incontáveis lacrimas, e só tenho 20 minutos, um minuto por ano, para contar".

Mudrovitsch, então, afirmou que ela poderia usar o tempo que fosse necessário. A conduta do juiz repercutiu e foi elogiada. 

Assista:

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