O novo modelo de Carteira de Identidade, aprovado em decreto (10.977/22) pela presidência da República, estimula a violação de direitos humanos a quem utiliza nome social. É isso o que aponta nota técnica realizada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do MPF.
No novo modelo, o nome de registro vem antes do nome social, e deve existir a inserção do sexo (aparentemente biológico).
Segundo o órgão, "o fato de o nome de registro passar a compor o mesmo espaço do nome social, em posição de destaque, aliado à limitação da solicitação de inclusão do nome social à base da receita federal, intensifica a repulsa da iniciativa”.
Ainda de acordo com a nota, a exigência estimula violações dos direitos humanos contra as pessoas que apresentam um sexo registral diferente da sua identidade e expressão de gênero. Esse constrangimento atingiria, principalmente, as pessoas trans, sobretudo aquelas que não querem ou têm dificuldades em realizar as mudanças relativas ao nome e/ou gênero registral.
A nota é assinada pelo procurador Federal dos direitos do cidadão, Carlos Alberto Vilhena, e o coordenador do Grupo de Trabalho Populações LGBTI+: Proteção de Direitos, Lucas Costa Almeida Dias. O objetivo do documento é contribuir para a atuação do MPF em ação civil pública, bem como da Equipe de Transição do governo eleito, no que tange a análise dos debates em torno do reconhecimento da inconstitucionalidade e inconvencionalidade dos critérios constantes no decreto.
- Leia a íntegra da nota técnica.
Manifestação da vontade
No documento, a PFDC destaca que o nome civil é aquele designado no momento do nascimento do registro do indivíduo no Cartório de Registro de Pessoas Naturais. Já o nome social é definido pela denominação na qual as pessoas se identificam e são reconhecidas nas relações sociais, de maneira que seu uso independe de registro em qualquer documento, à vista de prevalecer a manifestação de vontade, resultante da autoconstrução identitária.
Seguindo essa premissa, com a averbação do nome e/ou gênero em cartório, independentemente de redesignação do sexo biológico, o nome pelo qual a pessoa trans se identifica deixa de ser nome social e passa a ser o nome civil. Ou seja, os documentos pessoais e os demais registros identitários devem ser alterados, sendo vedadas as informações que possibilitem discriminações de qualquer espécie.
Nesse contexto, Vilhena e Dias pontuam que o uso do nome social por pessoas trans, que não se identificam com o nome e/ou o sexo registrais, integra o processo de reposicionamento dessas pessoas dentro da estrutura social. Para eles, o direito à igualdade consiste na exigência de um tratamento sem discriminação, que assegure a fruição adequada de uma vida digna.
Identidade de gênero
A PFDC assinala ainda que a identidade de gênero se revela como elemento fundamental da personalidade do indivíduo e, portanto, imprescindível ao livre desenvolvimento existencial da pessoa humana. “Logo, é dever do Estado reconhecer e validar a identidade da pessoa, enquanto resultado de um processo individual de autodeterminação, bem como garantir meios para o desenvolvimento efetivo das potencialidades do ser no meio social, de maneira a promover o respeito e assegurar a proteção da livre expressão identitária”.
Por fim, os procuradores apontam ausência de registro da participação e/ou diálogo da Administração Pública com entidades representantes da comunidade LGBTI+, de modo que uma imposição heterônoma de normas de gênero e de orientação sexual, em desacordo com a autodeterminação, sequer foi avaliada por grupos, direta ou indiretamente, afetados pela norma. “Rompeu-se, desse modo, com os mecanismos de participação social na gestão democrática das políticas públicas, os quais constituem importante instrumento democrático estimulado fortemente pela Carta da República.