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Íntegra do voto do ministro Cezar Peluso na consulta 1398 do PFL, sobre a titularidade dos mandatos

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30/3/2007


TSE

Íntegra do voto do ministro Cezar Peluso na Consulta 1398 do PFL, sobre a titularidade dos mandatos

Confira a íntegra do voto do vice-presidente do TSE, ministro Cezar Peluso, na Consulta 1398 do PFL (atual Democratas), por meio da qual a Corte firmou o entendimento de que o mandato pertence aos partidos políticos ou à coligação e não ao parlamentar eleito.

No voto, o ministro Cezar Peluso observa que o sistema representativo proporcional pressupõe a "primazia radical dos partidos políticos sobre a pessoa dos candidatos". Aduz que "dessa caracterização de proporcionalidade brota, como princípio, a pertinência das vagas obtidas segundo a lógica do sistema, mediante uso de quocientes eleitoral e partidário, ao partido ou coligação, e não, à pessoa que sob sua bandeira tenha concorrido e sido eleita".

Conclui, ao final, que a doutrina, nacional e estrangeira, "não hesita em reconhecer, dentre os modelos teóricos, a superioridade do sistema proporcional, que, apesar das imperfeições, é o que mais bem respeita as exigências de justiça, eqüidade e representatividade, sem comprometer a estabilidade do governo".

Desta forma, o ministro Cezar Peluso, acompanhando o relator, ministro Cesar Asfor Rocha, respondeu à Consulta afirmando que "os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando, sem justificação nos termos já expostos, ocorra cancelamento de filiação ou de transferência de candidato eleito para outra legenda".

Abaixo, leia a íntegra do voto do ministro Cezar Peluso:

TSE-CONSULTA Nº 1.398

CONSULENTE: PFL

V O T O (Sem revisão)

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO:

1. Formula o PFL, com base no art. 23, inc. XII, do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/65 , a seguinte consulta:

“Considerando o teor do art. 108 da Lei nº 4.737/65 (Código Eleitoral), que estabelece que a eleição dos candidatos a cargos proporcionais é resultado do quociente eleitoral apurado entre os diversos partidos e coligações envolvidos no certame democrático.

Considerando que é condição constitucional de elegibilidade a filiação partidária, posta para indicar ao eleitor o vínculo político e ideológico dos candidatos.

Considerando ainda que, também o cálculo das médias, é decorrente do resultado dos votos válidos atribuídos aos partidos e coligações.

INDAGA-SE:

Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?”

2. Regularmente formulada a consulta, que versa sobre matéria eleitoral, entro a dar-lhe resposta.

I. O sistema representativo proporcional.

3. É bem conhecida, desde antes da clássica obra de JOHN STUART MILL sobre o tema, a conveniência política da adoção de um governo representativo: “o único governo capaz de satisfazer a todas as exigências do estado social é aquele do qual participou o povo inteiro; que toda a participação, por menor que seja, é útil (...)”. Como, porém, “é impossível a participação pessoal de todos, a não ser numa proporção muito pequena dos negócios públicos, o tipo ideal de um governo perfeito só pode ser o representativo” . Mais tarde, com HANS KELSEN chegou-se a afirmá-lo como a melhor forma de democracia, opinião compartilhada por “DUVERGER, SARTORI, CANOTILHO e RAMIREZ” .

4. Dentre as especificidades reclamadas pela estrutura do sistema representativo, está a opção por um dos métodos eleitorais, proporcional ou majoritário. Em confronto com as manifestas deficiências deste , especialmente a sub-representação dos grupos ou extratos minoritários, ganha primazia o sistema proporcional, enquanto tende, mais que a garantir-lhes a mera presença nas assembléias, a assegurar verdadeira proporção de todas as relevantes correntes ideológicas na representação popular.

Como afirma GILBERTO AMADO,

“os sistemas de representação proporcional não visam, como se pode pensar à primeira vista, à representação das minorias; visam à representação de todas aquelas opiniões que, existindo em força numérica suficientemente importante para significar uma corrente de idéias, têm o direito de influir, na proporção da sua força, no governo do país”.

Já no século XIX, J. F. de ASSIS BRASIL, cuidando de criticar o “duello de morte” resultante de sistema majoritário que conferisse a totalidade dos eleitos ao partido que tivesse “simplesmente a maioria dos eleitores”, apontava o risco de uma seleção adversa avant la lettre como razão para se adotar sistema representativo de diversas correntes de pensamento:

“Espiritos delicados e mansos, serenos e justos, isto é, precisamente aquelles que possuem mais qualidades para servir o paiz com proveito, não podem deixar de fugir com horror de ser lenha d’esse inutil incendio. Assim se exerce fatal selecção em favor dos individuos de menos escrupulos, ou de caracter mais duro e asperos sentimentos, senão completamente despidos d’elles, cuja influência nos negócios e costumes publicos não é a mais reclamada pelas exigências do progresso social. Quem não poderá apontar aqui e alli, isolados no seu trabalho pessoal, ainda que indirectamente util ao bem publico, esses raros homens bons, conciliadores, intelligentes, verdadeiros caracteres humanos, a cujo nobre e doce tempereamento inspiram instinctivo asco as tribulações da politica militante? As leis irracionaes acenam a tudo quanto é ruim e repellem os melhores elementos.

Não é necessario traçar o quadro contrario, para fazer logo pensar em que elle seria o fructo a que se encaminharia um systema de eleição animado pelo espirito de garantir a todas as opiniões, na possível medida de sua intensidade, meios seguros, naturaes e faceis de ganharem representação legal”.

5. Não precisa grande esforço intelectual por advertir que o fundamento político-filosófico do sistema representativo radica na necessidade de atribuição de espaço de atuação e expressão política às correntes ideológicas dos mais diversos matizes, que são agrupadas e sintetizadas pelos partidos políticos.

É que a representação não se dá sem a mediação do partido , enquanto elemento expressivo e agregador do ideário político dos cidadãos. Não se concretiza, na democracia, a representação do povo pelo chamado representante, senão por intermédio de um partido político, já que não se cuida, estritamente , de mandato conferido por um cidadão à pessoa do representante:

“Un tercer elemento subyacente se refiere al carácter indirecto de la relación entre los representantes y los representados, que es propio de la democracia contemporánea. Entre ambos, se ha desarrollado un sistema de intermediación configurado por los partidos y los grupos”.

Não há quem negue a essencialidade desse papel dos partidos políticos, como autênticos corpos intermediários do regime democrático, segundo dicção do Supremo Tribunal Federal, na mecânica dos sistemas proporcionais:

“O núcleo central do seu mecanismo reside, essencialmente, em assegurar a cada uma das agremiações partidárias uma representação, se não matematicamente, ao menos, sensivelmente proporcional a sua real importância no contexto político”.

E o funcionamento do sistema representativo proporcional baseia-se “no número fixo de cadeiras estabelecido a priori pela própria assembléia e segue o seguinte procedimento: o número de votos válidos (...) divide-se pelo número de cadeiras a serem preenchidas, obtendo-se, assim, o quociente eleitoral, que representa a condição para preencher uma cadeira (relacionado com a legenda, i.e., o número de votos obtidos por cada partido, indica quantas cadeiras serão preenchidas pelo partido). Procura-se determinar a representação da minoria em função de sua força eleitoral”. Vem daí a nítida e visceral dependência que guarda o sistema proporcional em relação aos partidos políticos. Escusaria lembrar, ao propósito, p. ex, que candidato eleito sob determinado partido poderia não tê-lo sido noutro.

Ao comentar o mecanismo de atribuição de sobras ou restos, inerente ao sistema proporcional que adota quociente eleitoral, a doutrina deixa evidentes a natureza e a titularidade dos postos por preencher:

“Esse é um dos mais complexos problemas trazidos pela representação proporcional; ao procurar uma relação entre a força dos diferentes partidos, o sistema fixa, inicialmente, um quociente, retirado da divisão do número de eleitores pelo de postos a preencher. Definido esse quociente, os partidos terão tantos representantes quantas vezes atinjam tal número".

A idéia fundamental de sistemas de inspiração proporcional, segundo JEAN MEYNAUD, “é de uma grande clareza: a atribuição a cada tendência, de fato à cada lista apresentada, de um número de cadeiras proporcional aos votos por ela obtidos. Em outros termos, a fórmula implica na igualdade entre a porcentagem das cadeiras obtidas e aquela dos votos recebidos. Se um partido obteve, por exemplo, 30% dos votos, ele está habilitado a receber 30% das cadeiras. E deve acontecer o mesmo com relação a todos os partidos em luta na circunscrição. O objetivo ideal da fórmula proporcional é uma situação de perfeita igualdade na qual cada cadeira custe aos diferentes partidos o mesmo número de votos” .

Ora, é inequívoco que as cadeiras se tornam aí disponíveis para o partido à custa da totalidade dos votos que obteve. Não parece, destarte, concebível que um candidato, para cuja eleição e posse concorreram recursos de seu partido, e recursos não apenas financeiros , senão também compreendidos no conceito mesmo de patrimônio partidário de votos, abandone os quadros do partido após repartição das vagas conforme a ordem nominal de votação.

Embora o candidato possa dar grande contribuição ao partido com os votos individuais, nem sempre é esse o caso, como o demonstra a rotina da eleição de candidatos de votação inexpressiva que obtêm vagas na esteira na votação de outros, bastante populares. Não há como admitir-se, na moldura do sistema, que representante eleito sob tais condições possa mudar de partido levando consigo o cargo, até porque, se tivesse concorrido por outro partido, poderia nem sequer ter sido eleito, o que mostra desde logo que o patrimônio dos votos deve entender-se, na lógica do sistema proporcional, como atributo do partido, e não, de cada candidato.

A centralidade da representação por meio dos partidos políticos, não obstante a propalada crise de representatividade, é, de certo modo, idéia universal nos horizontes dos regimes democráticos:

“a lo largo del proceso de democratización de la política, los partidos políticos se han convertido en medios de expresión, articulación y ejecución de las necesidades y exigencias de los miembros de una sociedad. Los partidos son, en este aspecto, instrumentos para el logro de beneficios colectivos y cumplen un papel vinculante entre el Estado y la sociedad (…). Los partidos políticos son elementos indispensables de la democracia representativa. No existe hasta la actualidad una institución que pueda reemplazar a los partidos políticos en su función de interpretar, agregar y articular en términos generales expectativas y demandas de la sociedad ”.

E a experiência internacional revela que “és cierto que en el presente no cabe desconocer la función mediadora articuladora, que cumplen los partidos en la representación política. Esa importante función incluso les está reconocida de manera expresa en casi todas las constituciones latinoamericanas (Argentina, art. 38; Bolivia, arts. 222-224; Brasil, art. 17...)” . Mais ainda, classifica-se o Brasil como um dos “ordenamientos que atribuyen a los partidos el monopolio de la presentación de candidatos: (...) Brasil (donde, además, se exige la ‘afiliación partidaria’ para ser titular del derecho de sufragio pasivo, art. 14 de <_st13a_personname productid="la Constitución" w:st="on">la Constitución y art. 2 del Código Electoral) ”, ao lado da Argentina, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, México, Nicarágua, Panamá e Paraguai.

Como não poderia deixar de ser, a doutrina nacional também proclama, sobretudo à luz do ordenamento jurídico, que de há muito sepultou o modelo das candidaturas avulsas, a essencialidade dos partidos políticos na estruturação e funcionamento da democracia representativa:

“No Brasil, os cargos políticos nos Poderes Legislativo e Executivo são preenchido mediante eleições, e só se admite candidato mediante a inscrição partidária (v. art. 14, § 3º, V, da CF). Portanto, sem o concurso dos partidos não há como organizar e desempenhar as funções estatais. Na democracia moderna não há poder político, nem Estado, se não há partido político ”.

“Como é padrão onde se adota a representação proporcional, a apresentação de candidaturas no Brasil é exclusividade de partidos políticos, não havendo nenhuma possibilidade de candidatura independente (CE, art. 87) ”.

É lícito, pois, concluir que está na ratio essendi do sistema proporcional o princípio da atribuição lógica dos votos aos partidos políticos, enquanto canais de expressão e representação das ideologias relevantes do corpo social, como o enuncia e resume, de forma lapidar, GILBERTO AMADO: “O voto proporcional é dado às idéias, ao partido, ao grupo”.

6. A representação do povo por meio de representantes, é certo, opera ainda por via do mandato.

A respeito, notava GERALDO ATALIBA que, “no instituto do mandato cristaliza-se toda a idéia de representatividade que se traduz nas instituições republicanas (...). O mandato se põe no centro de toda construção jurídica da República. É seu instrumento de viabilização. Não se pode cogitar de representação sem meios idôneos de sua eficácia. Sem mandato não há República ”.

Mas convém não esquecer que a natureza do mandato não prescinde da indefectível conformação partidária, a qual é também condição jurídica sine qua non de seu exercício:

“Permeando o mandato parlamentar existe um duplo vínculo: o de caráter popular e o de índole partidária. O mandato parlamentar constitui expressão do princípio fundamental de que todo poder emana do povo. E reveste-se de índole partidária, vez que a representação popular no Brasil somente se efetiva pela intermediação de partido político, condição haurida expressamente do plano constitucional ”.

II. A representação proporcional no Brasil.

7. O aprimoramento contínuo do sistema representativo proporcional é necessidade imperiosa em países que, como o Brasil, apresentam, por força do aprendizado democrático e do relativo desenvolvimento socioeconômico, considerável grau de pluralismo político:

“Desde luego, lo que sí es cierto es que un sistema de representación proporcional permite un conjunto muy variado de matices con los que adecuarse a diferentes situaciones y objetivos con una cierta neutralidad, lo que a su vez posibilita la mayor fidelidad con que las fórmulas proporcionales reflejan a las fuerzas sociales, algo enormemente importante en sociedades desagregadas o, por lo menos, con un alto grado de pluralismo socio-económico, cultural y, por lo mismo, político ”.

A extravagância da sua disciplina no ordenamento brasileiro, que permite o voto nominal, e não, apenas no partido, nas eleições proporcionais, decorre de ser nosso sistema, segundo WALTER COSTA PORTO,

“(...) ‘uma mistura de escrutínio uninominal e de representação proporcional, da qual há poucos exemplos através do mundo’. Quais esses exemplos hoje? Talvez somente o da Finlândia. Nesse país, vota-se só em um candidato (...). Essa fórmula, adotada pelo Brasil e pela Finlândia, foi classificada por Giusti Tavares, em livro recente, como voto pessoal único em candidatura individual. Para ele, ‘uma experiência singular e estranha, inconsistente com o espírito e com a técnica da representação proporcional’. O voto em candidato individual, esclarece, ‘que, contabilizado para a legenda, é transferível a outros candidatos da mesma legenda, equivale ao voto numa lista partidária virtual cuja ordenação se faz como resultado das escolhas de todos os eleitores da legenda."

Essa particularidade do sistema eleitoral brasileiro, contudo, não desvanece o peso que deve reconhecido à instituição do partido político, dentro da lógica inerente ao sistema proporcional. Observa LUÍS VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA, que, “admitindo-se que o normal nos sistemas proporcionais seja o voto em partidos, sendo casos como o brasileiro esparsas exceções, uma conseqüência direta desses sistemas é o fortalecimento do papel dos partidos políticos e a delineação ideológica do voto. Assim, com a despersonalização do voto, é muito pouco usual que um eleitor vote por simpatia pessoal, havendo uma tendência, pelo menos em tese, ao voto por razões programáticas ou ideológicas”.

Arrisco a diagnosticar que, a despeito das peculiaridades do nosso sistema proporcional, uma das causas da debilidade dos partidos políticos reside, precisamente, na indiferença oficial e popular quanto à desenfreada transmigração partidária que se observa nos parlamentos. É que, suposto não solucionem de per si os problemas das disputas intra-partidárias e dos embates entre correligionários por votos, o reconhecimento e a vivência de que o mandato pertence ao partido, não à pessoa do mandatário, têm, entre outros, o mérito de fortalecer a identificação e a vinculação ideológica entre candidatos, partidos e eleitorado.

8. À luz das premissas do primado dos partidos na organização da vida política e da natureza partidária dos mandatos nas eleições proporcionais, cumpre indagar do alcance dessa vinculação entre candidato e partido. Esgotar-se-ia no momento das eleições, no ato da proclamação dos eleitos, na sua posse, ou pressuporia liame mais sólido entre o candidato e a agremiação política pela qual se elegeu? A resposta implica a questão da compatibilização entre a liberdade de filiação e a necessidade de observância da fidelidade partidária.

Não é nova a discussão a respeito, e suas soluções teóricas foram tangenciadas na década de 50, em particular numa célebre mesa de debates , composta por notáveis personalidades e da qual reproduzo este diálogo significativo:

“O SR. MINISTRO VICTOR NUNES LEAL – (...) O voto de legenda fortaleceria a unidade partidária e contrabalançaria, portanto, com a organização interna dos partidos. O partido não tenderia, assim, a fragmentar-se. A sanção para o transfugismo também seria muito útil nesse sentido. Não vou ao ponto de entender que o deputado ou senador deva perder o mandato quando muda de partido. Êle pode ter razões muito ponderáveis para isso, até de ordem moral.

O SR. NEREU RAMOS – Poder-se-ia adotar a medida desde que se assegurasse ao representante o direito de defesa. Como disse S. Exa., êle pode ter motivos ponderáveis.

O SR. MINISTRO VICTOR NUNES LEAL – Pelo projeto do Dr. João Mangabeira, a conseqüência da perda de mandato ocorreria também quando o parlamentar fôsse expulso do partido pela convenção. Acontece, entretanto, que êle pode ter sido vítima inclusive de perseguições, não ter saído do partido apenas por sua versatilidade política. Podia estar sofrendo uma sanção por sua rebeldia dentro do partido, por seu gesto contra a direção partidária. A sanção que me parece adequada é a exclusão do deputado ou senador trânsfuga de qualquer grupo partidário dentro do Parlamento; êle ficaria isolado, independente, não participaria de comissões – porque a representação nesses órgãos técnicos é partidária.

O SR. NESTOR DUARTE – Na Câmara, o partido que perde, digamos, um de seus membros continua a manter a sua posição nas Comissões, como se não tivesse sido desfalcado.

O SR. MINISTRO VICTOR NUNES LEAL – Mas desde que o trânsfuga possa entrar para outro partido...

O SR. NESTOR DUARTE – A Câmara já prevê esses casos.

O SR. MINISTRO VICTOR NUNES LEAL – Se já está previsto... Porque essa já me parece sanção bastante forte. O deputado ou senador isolado, não pertencendo a nenhum partido, não podendo figurar no Parlamento como membro de nenhuma bancada, perde muito do seu prestígio, embora conserve o seu mandato. Isso pode ser um bem ou um mal. Pode ser um bem se ele encontrar receptividade dentro do âmbito nacional para fazer dessa dissidência uma campanha, a bandeira de um novo programa.

O SR. NESTOR DUARTE – Posso dar meu exemplo pessoal. Não me filio a nenhuma legenda. (...) O deputado sem legenda é um apátrida dentro da Câmara.

O SR. MINISTRO VICTOR NUNES LEAL – E êsse tipo de sanção traria a vantagem de não desmentir o princípio hoje mais ou menos consagrado, de que o deputado representa o povo; embora escolhido pelo critério partidário, representa o povo.

O SR. NESTOR DUARTE – A expulsão é problema muito sério e precisa ser examinado com muito cuidado.”

As soluções contrapostas, apresentadas então e agora, apontam para caminhos alternativos: a) proibição da filiação do trânsfuga de qualquer agremiação partidária, com preservação de seu mandato; ou b) retenção da vaga pelo partido desfalcado com a perda do mandato do representante, desde que garantida a possibilidade de ingresso do trânsfuga noutro partido.

Não custa avaliá-las sob os ângulos constitucional e legal.

II.1. Matriz constitucional da representação proporcional

9. A última solução, que propõe perda do mandato e retenção da vaga pelo partido originário, objeto de sugestão inicialmente restrita ao âmbito das comissões parlamentares, deve, a meu juízo, aplicar-se a todo movimento de mudança partidária.

Diversamente do que preconizava o Min. VICTOR NUNES LEAL, não apenas a participação em comissões e órgãos técnicos é partidária, mas o próprio mandato por exercer guarda o caráter inequivocamente partidário com que foi conquistado. A proposição concessiva empregada pelo eminente Ministro e jurista, segundo a qual “o deputado representa o povo, embora escolhido pelo critério partidário”, dever converter-se e ser lida em termos causais: “o deputado representa o povo, porque escolhido pelo critério partidário”.

O reconhecimento da extrema importância dos partidos políticos é, ao mesmo tempo, de um lado, imperativo que, embora não se tenha realizado através de nossa história política, por razões conhecidas, mas já agora irrelevantes, promana da Constituição da República como característica da democracia partidária, e, de outro, fator de avigoramento da identidade e da função político-ideológicas dos partidos:

“Constatada a essencialidade dos partidos políticos – palavras sempre usadas no plural para indicar a necessidade de pluralismo partidário – e o desenvolvimento destas entidades singulares, um tema de reflexão se lança irrecusável. Podem os partidos conviver com a infidelidade de seus membros a princípios programáticos e diretrizes estabelecidas? Claro que não. A fidelidade – ou lealdade – ao programa e às normas fixadas caracterizam-se como elementos essenciais à preservação dos próprios partidos e do conseqüente Estado de Partidos. A ausência de lealdade aos princípios e demais integrantes da agremiação leva os partidos políticos à descrença eleitoral. E, mais grave: conduz até mesmo o regime democrático a riscos inoportunos que, a curto prazo, podem transmudá-lo em autoritário ou até mesmo em totalitário (...).

A Constituição de 1988 procura impedir a perda de prestígio por parte dos partidos políticos exigindo a presença de regras atinentes à fidelidade e à disciplina partidárias nos estatutos de cada agremiação. Os documentos partidários tratam da matéria, conferindo-lhe, todavia, um tratamento de ‘lei do céu azul’: boas e perfeitas na leitura, mas de nenhuma aplicação real”.

10. Estaria a temática da relação umbilical entre candidato e partido confinada ao campo estreito do art. 17, § 1º, da Constituição Federal, que impõe aos partidos políticos o dever de estabelecerem, nos estatutos, “normas de fidelidade e disciplina partidárias”?

A resposta é, incontestavelmente, negativa. A primazia conferida aos partidos políticos deita raízes e faz sentir sua influência estruturante por todo o sistema político-eleitoral de inspiração proporcional.

Há, decerto, avisados doutrinadores que, compartilhando as preocupações do saudoso Min. VICTOR NUNES LEAL, afirmam competir exclusivamente aos partidos, como regra absoluta, a questão da disciplina das sanções aplicáveis à infidelidade partidária:

“Ao partido, e a mais ninguém, compete aplicar sanção por quebra de fidelidade partidária. Se essa sanção, ou a troca de legenda, acarreta a perda de mandato (de lege ferenda, possível apenas com alteração constitucional), é matéria a ser sopesada criteriosamente; impossível admiti-la sem respeito ao legítimo direito de divergência ”.

“Ao contrário, então, da Constituição anterior, a nova não prevê a possibilidade da perda do mandato em função de infidelidade partidária. Segundo José Afonso da Silva, além de não admitir a perda do mandato em face de infidelidade partidária, a Constituição vai mais longe, estabelecendo vedação nesse sentido. Deveras, no art. 15, a Lei Fundamental, ‘declara vedada a cassação de direitos políticos, só admitidas a perda e a suspensão deles nos estritos casos indicados no mesmo artigo’. Já a Constituição anterior (Emenda Constitucional 1/69) não só exigia que os partidos reclamassem disciplina de seus membros como previa a perda do mandato do parlamentar que deixasse o partido pelo qual fora eleito ou descumprisse as diretrizes legitimamente estabelecidas pela direção partidária. A matéria era regulada pela Lei 5.682/71. A Emenda Constitucional 5, de 15/05/85, suprimiu o instituto, agora revigorado, em outra bases, pela Constituição de 1988”.

A resposta à consulta não se adstringe, porém, e, a rigor, nem de longe concerne à questão da fidelidade partidária, entendida como princípio destinado a governar as relações internas entre o partido e seus afiliados, as quais constituem o objeto específico da previsão do art. 17, § 1º, da Constituição da República. O de que se trata, aqui, é do fato externo da mudança de partido, que só por licença retórica pode relacionar-se ao tema da fidelidade partidária.

Criticando o disposto no art. 4º, § 1º, da Resolução TSE nº 20.993, de 26.02.2002, que regula a “verticalização das coligações”, à luz da autonomia partidária, ROBERTO AMARAL e SÉRGIO SÉRVULO DA CUNHA observam que “o ato normativo do TSE (...) golpeia os princípios do federalismo, cláusula pétrea, e da livre organização e autonomia partidária, consoante o § 1º do art. 17 da CF, uma conquista da redemocratização: ‘É assegurado aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura (...), devendo seus estatutos estabelecer normas de fidelidade e disciplina partidária’. A garantia da autonomia dos partidos teria repercussão na lei nº 9.504/1997, quando, em seu art. 6º, define como questão interna corporis (dos partidos) as decisões sobre coligação”.

É fora de dúvida que a questão da fidelidade partidária tem, diversamente do que se decidiu acerca da coligações , e de maneira muito mais clara, perante aquela norma constitucional, caráter de assunto interna corporis. E a racionalidade dessa norma nasce do conceito estrito da fidelidade partidária, enquanto objeto das relações entre o partido e o representante, as quais devem pautar-se pela observância deste às orientações daquele. Ninguém pretende que o parlamentar se transforme, segundo CLEMERSON MARLIN CLÈVE , “em mero autômato, em boca sem vontade, destinado apenas a expressar, sem independência e violentando a consciência e a liberdade de convicção, as deliberações tomadas pelos órgãos partidários”. Mas o âmbito de incidência do art. 17, § 1º, da Constituição Federal, alcança apenas as relações internas entre os partidos e os representantes.

Ora, a questão que a consulta suscita sobre a legitimidade do mandato representativo proporcional tem outro fundamento, voltado ao fato externo do cancelamento de filiação ou transferência de partido, à luz da relação entre o representante e o eleitor, intermediada pelo partido. Afere-se, aqui, não a fidelidade partidária, mas a fidelidade ao eleitor!

E, neste passo, estou convencido de que, por força de imposição sistêmica do mecanismo constitucional da representação proporcional, as vagas obtidas por intermédio do quociente partidário pertencem ao partido. Daí, aliás, a irrelevância absoluta da circunstância de já não constar do ordenamento vigente nenhuma norma expressa ao propósito.

O art. 14, § 3º, inc. V, da atual Constituição da República, regulamentando o disposto no § único do art. 1º, no aspecto da democracia representativa, sublima a filiação partidária à condição necessária de elegibilidade. De modo que, como tal filiação constitui requisito e pressuposto constitucional do mandato, o cancelamento dela ou a transferência do partido por que se elegeu o candidato, quando não seja justificado, tem por efeito a preservação da vaga na esfera do partido de origem.

Aqui, tem-se de notar peculiaridade hermenêutica relevantíssima: não se cuida da filiação a qualquer partido político, mas àquele pelo qual o candidato, aderindo ao respectivo programa, disputará, na condição prometida de defensor e representante, as eleições. Entendimento diverso implicaria o completo esvaziamento da função sistêmico-representativa dos partidos e daquela própria exigência constitucional, que se degradaria e reduziria a estéril formalismo, ao qual pouco se daria a identidade do partido a que se filiasse o candidato, desde que, apenas para constar, se atendesse ao requisito de uma filiação qualquer!

A conclusão de PALHARES MOREIRA REIS é peremptória:

“Como o parlamentar somente tem o seu mandato <_st13a_personname productid="em qualquer Casa Legislativa" w:st="on">em qualquer Casa Legislativa, em decorrência de uma eleição na qual teve possibilidade de concorrer por uma legenda partidária, quando este deixar o partido sob cuja legenda foi eleito, perde automaticamente a função ou cargo que exerça em função da proporção partidária”.

Insisto no ponto de crucial importância para a resposta à consulta: a vinculação candidato-partido é ínsita ao próprio sistema representativo proporcional adotado pelo ordenamento jurídico.

11. Sobre em nada entender-se com os limites da fidelidade partidária objetivada na previsão do art. 17, § 1º, da Constituição Federal, a consulta propõe a questão mesma da relação indelével entre o candidato eleito e o partido por que o foi, segundo a qual a conseqüência jurídica da atribuição da vaga ao partido tem fundamento constitucional autônomo, que não está apenas no art. 14, § 3º, inc. V, mas também, reafirmado, no alcance do art. 45, que estatui:

"Art. 45. A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional, <_st13a_personname productid="em cada Estado" w:st="on">em cada Estado, <_st13a_personname productid="em cada Território" w:st="on">em cada Território e no Distrito Federal”.

Ora, escusaria retomar o discurso acerca dos fundamentos, da natureza e da função democrática do regime representativo proporcional para concluir, sem esforço, que, no próprio seio do conteúdo significativo da expressão “sistema proporcional”, está o primado dos partidos políticos e sua conseqüente titularidade sobre as cadeiras conquistadas nas eleições. E a conclusão vale assim para as Assembléias Legislativas, como para as Câmaras de Vereadores, ex vi do art. 84 do Código Eleitoral.

12. Observe-se, por fim, que não se está a propor, de forma alguma, restrição ou embaraço à liberdade de filiação partidária, nem à liberdade de consciência, e, tampouco, cassação, perda ou suspensão de direitos políticos, cujos valores são também tutelados pela Constituição da República e não se indispõem, em ponto algum, com o reconhecimento de que toda mudança injustificada de partido aniquila o fundamento estrutural que dá legitimidade ao exercício do mandato pelo representante.

O nexo indissolúvel dos elementos eleitor-partido-representante torna mais complexa, posto não insolúvel, a equação cujo deslinde corresponde à solução da consulta. E, para desatá-la, é indispensável recorrer a experimento metodológico, consistente em perquirir as razões da transferência ou desfiliação partidária, em busca da identificação de quem lhe deu causa e das respectivas conseqüências, mediante as seguintes distinções:

1) o candidato eleito que se desfiliar ou mudar de agremiação terá, em regra, o mandato subtraído em favor do partido por que se elegeu. No caso de a transferência ser fruto de mudança de orientação pessoal, por exemplo, o partido de origem terá o direito de conservar a vaga obtida pelo sistema proporcional, em razão de a ruptura daquela relação complexa eleitor-partido-representante ter sido causada pelo parlamentar, que já não pode apresentar-se como representante do ideário político em cujo nome foi eleito.

Caso a transferência ou a desfiliação tenha por causa fundamento não justificável à luz da suprema necessidade de preservação da vontade política expressa pelo eleitor no momento do voto, como cerne da idéia de representação, deve o mandato permanecer, pois, com o partido, porque o membro que fraturou a relação é o representante, desde aí destituído da capacidade de representar os eleitores adeptos da corrente de pensamento encarnada pelo partido.

Não se trata, sublinhe-se, de sanção pela mudança de partido, mas do reconhecimento de inexistência de direito subjetivo autônomo e sequer de expectativa de direito autônomo à manutenção pessoal do cargo.

2) Algumas exceções devem, contudo, ser asseguradas em homenagem à própria necessidade de resguardo da relação eleitor-representante e dos princípios constitucionais da liberdade de associação e de pensamento. São elas, v.g., a existência de mudança significativa de orientação programática do partido , hipótese em que, por razão intuitiva, estará o candidato eleito autorizado a desfiliar-se ou transferir-se de partido, conservando o mandato. O mesmo pode dizer-se, mutatis mutandis, em caso de comprovada perseguição política dentro do partido que abandonou.

Essas são situações em que a desfiliação e a mudança se justificam em reverência à mesma necessidade de preservação do mandato conferido pelo povo ao representante afiliado a determinada agremiação política, com o intuito de proteger o voto do eleitor, dado, em nosso sistema, não apenas à pessoa, mas sobretudo ao partido que a acolhe. Resguarda-se aí, em substância, a confiança depositada pelo eleitor nas propostas e idéias cuja expressão estão à raiz do sistema representativo proporcional.

E, porque é o partido que, em tais hipóteses, terá dado causa ao rompimento daquela relação complexa, por alteração superveniente de sua linha político-ideológica ou pela prática odiosa de perseguição, será ele, não o candidato eleito, que deverá suportar o juízo de inexistência de direito subjetivo à conservação do mandato em sua esfera jurídica.

II.2. Aspectos infraconstitucionais da representação proporcional.

13. Volto, na introdução deste tópico, a relembrar, com a doutrina, que “o sistema eleitoral está umbilicalmente ligado ao sistema partidário, dado o regime estabelecido em nossa legislação (...). Lembra DIRCÊO TORRECILLAS RAMOS: ‘(...) o sistema eleitoral adotado leva a crer, de acordo com a doutrina, que conduz a uma democracia partidária. (...) É semidireta, representativa partidária devido à eleição proporcional dos representantes; admitir o voto de legenda e mesmo na atuação direta do povo há participação dos parlamentares que só podem ser eleitos se inscritos em partidos’”.

Colhem-se, deveras, no plano infraconstitucional, não poucas normas do Código Eleitoral e da legislação conexa que pressupõem e confirmam a preponderância axiológica do partido político na conformação e funcionamento do sistema representativo proporcional e o alto grau de sua vinculação com os candidatos.

A previsão constitucional do liame entre candidato e partido encontra reflexo, por exemplo, na Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97), cujo art. 11, inc. III, exige “prova de filiação partidária” como condição essencial para deferimento do pedido de registro de candidatos pelos “partidos e coligações”.

O art. 2º do Código Eleitoral reafirma que o todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, mas “por mandatários escolhidos, direta e secretamente, dentre candidatos indicados por partidos políticos nacionais” .

O capítulo dedicado ao Registro dos Candidatos é abundante (arts. 87, 88, 90, 91, 94 e 96, e.g.) na referência à obrigatoriedade da filiação partidária. O art. 87, esse é textual no prover que “somente podem concorrer às eleições candidatos registrados por partidos”.

Dispõe o art. 108 que o número de vagas por preencher com candidatos registrados por um partido se apura mediante cálculo de quociente partidário :

“Art. 108. Estarão eleitos tantos candidatos registrados por um partido ou coligação quanto o respectivo quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido”.

A previsão é de mecanismo que se desdobra em duas etapas:

1) A primeira, de natureza quantitativa, fundada no quociente partidário , é a que define o número de cadeiras conquistadas pelo partido. É por isso que o quociente resultante é dito partidário.

2) A segunda cuida tão-só de revelar quais serão os candidatos que preencherão as vagas obtidas pelo partido e, nisso, serve apenas para definir quem ocupará a vaga conquistada pelo partido, por meio da adoção de critério de votação nominal, de todo em todo instrumental e secundário em relação ao primeiro.

A diferença entre as duas etapas é bem realçada por JAIRO NICOLAU:

“Na realidade, o sistema eleitoral utilizado nas eleições para a Câmara prevê dois movimentos. No primeiro, é feita a distribuição das cadeiras entre os partidos (ou coligações) de acordo com o quociente eleitoral (total de votos válidos dividido pelo número de cadeiras de cada Estado). O partido terá tantas cadeiras quantas vezes ele atingir o quociente eleitoral (ele pode ainda receber outras cadeiras de sobras). (...)

O segundo movimento é a distribuição destas cadeiras entre os partidos. Nesta fase, sim, um sistema majoritário é utilizado: os mais votados do partido são eleitos, independentemente dos votos que cada um tenha obtido. Para o nosso sistema, primeiro importa saber quantos votos obteve o partido, e só depois saber dos votos recebidos pelos candidatos”.

Refere-se o Código Eleitoral à “ordem” de votação nominal como critério subordinado, derivado e acessório, destinado apenas a desempenhar função ordinatória de preenchimento dos cargos à disposição do partido. Essa regra traduz, assim, a presença de elemento majoritário como simples meio de estruturação de um sistema que abraça, declarada, nítida e substancialmente, o princípio representativo proporcional. Eis a precisa lição de LUÍS VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA:

“não obstante poder haver uma enorme variação, e mesmo mistura, nos critérios de transformação de votos em mandatos (regra decisória) ..., no campo do princípio representativo há somente duas opções, a serem escolhidas de maneira exclusiva: ou se busca a formação de maiorias parlamentares (princípio majoritário) ou se objetiva um poder legislativo que reflita, de maneira fiel, as diversas correntes de pensamento existentes na sociedade (princípio proporcional).

É esse o motivo pelo qual não se pode falar em sistemas mistos, porque, mesmo que haja, concomitantemente, elementos majoritários e proporcionais no método de transformação de votos em cadeiras, um sistema eleitoral só pode atender a apenas um princípio representativo – ou o majoritário (formação de maiorias), ou o proporcional (distribuição conforme a força de cada partido) –, sendo logicamente impossível misturar os dois princípios, já que seria teratológico pensar em formação de maiorias e, ao mesmo tempo, refletir todas as correntes de pensamento em uma determinada sociedade.

É o partido considerado em si mesmo, portanto, que, titular de certo número de vagas por preencher, o faz segundo um critério majoritário, que é meramente classificatório, que, como tal, não interfere na essência proporcional do princípio adotado pelo sistema representativo, nem no caráter partidário da atribuição dos mandatos.

Reconforta-o o disposto no art. 175, § 4º, do mesmo Código Eleitoral, ao determinar pertencerem ao partido os votos do candidato que não possa assumir o mandato.

Prescreve, ainda, o § único do art. 215 do Código Eleitoral:

“Art. 215. Os candidatos eleitos, assim como os suplentes, receberão diploma assinado pelo Presidente do Tribunal Regional ou da Junta Eleitoral, conforme o caso.

Parágrafo único. Do diploma deverá constar o nome do candidato, a indicação da legenda sob a qual concorreu, o cargo para o qual foi eleito ou a sua classificação como suplente, e, facultativamente, outros dados a critério do juiz ou do Tribunal.”

Ora, se a indicação do partido sob o qual o candidato concorreu deve constar, necessariamente, do diploma, decerto o objetivo da norma só pode ser o de atrelar a legenda ao diploma e ao cargo em que o diplomado é investido. Como a lei não contém palavras inúteis, nem estatuições desnecessárias , a menção obrigatória da legenda do candidato eleito no diploma tem óbvia vocação de reger situação futura, e não, passada, a título de mero registro histórico, até porque a mesma informação já consta de proclamações e listagens anteriores. E tal vocação não pode ser outra senão a de vincular o candidato à legenda da qual se valeu para conquistar o cargo.

14. Todos esses preceitos infraconstitucionais, mais que revelar a dimensão de primazia do partido político no sistema eleitoral pátrio, descortinam e reafirmam a natureza indissolúvel do vínculo entre o representante e a agremiação específica sob cuja égide se elegeu. MONICA HERMAN SALEM CAGGIANO descreve com acuidade o fenômeno do qual provém esse enlace:

“Não há como ignorar a significativa e cada vez mais acentuada inferência operada pelo fenômeno partidário sobre o sistema eleitoral e político dos diferentes países (...). Em verdade, constatada a sobrepujança do partido (...), detona-se uma nova realidade: a democracia patrocinada pelos partidos, muitas vezes solenemente consagrada pelos ordenamentos jurídicos.

Na nossa sistemática, todas as etapas que envolvem a postulação de cargos eletivos encontram-se na dependência da atuação do organismo partidário por cuja legenda está sendo lançada a candidatura”.

Essa firme relação lógico-jurídica entre candidato e partido, que se não exaure à proclamação dos eleitos, deve manter-se enquanto, rebus sic stantibus, perdure o mandato partidário assumido pelo representante em função e sob os auspícios do partido a que se filia como depositário de corpo relevante e identificável de idéias, opiniões e pensamentos políticos.

III. Conclusão.

15. O caráter intrinsecamente partidário do sistema político brasileiro, de si já evidente quanto aos cargos ocupados na proporção dos quocientes eleitorais, é indisputável. A relação típica entre o candidato eleito e o grupo político a que pertenceu durante a eleição é essencial à identificação dos fundamentos que outorgam legitimidade ao mandato eletivo proporcional.

A inconsistência do raciocínio que prega uma como “portabilidade“ ou labilidade da vaga, que acompanharia o eleito como predicado personalíssimo, qualquer que seja o partido a que se filie e a qualquer que seja o tempo de filiação, decorre do erro na identificação da natureza e titularidade dos cargos eletivos na sintaxe do sistema representativo proporcional. Essa errônea percepção é, certamente, herança do empedernido patrimonialismo e do desavergonhado personalismo brasileiros, que perteimam em submeter o interesse público ao particular, permitindo a apropriação privada da res publica, por meio do privilégio da pessoa em detrimento do cargo. A respeito, reveja-se a sempre atual crítica de ASSIS BRASIL:

“É, por isso, muito serio o perigo de que venhamos a ter partidos sem ideal, bandos acaudilhados por chefes pessoaes. Não haveria mal maior que esse. Raramente taes chefes são homens competentes. Em primeiro logar, aos espiritos bem ponderados repugna ter sequito por mero fanatismo pessoal; querem que lhes acompanhem as ideias, mas não a pessoa. Depois, na generalidade dos casos, o chefe pessoal não é tal porque tenha eminentes qualidades, que lhe creassem real superioridade moral sobre os que o seguem; pelo contrario, quasi sempre é chefe quem foi bastante fraco para lisongear as paixões dominantes, consentindo em pôr-se à frente d’ellas, não para dirigil-as, mas para ser seu instrumento”.

E, por solapar tão arraigada e nefasta prática, deve-se insistir, sem cansaço, em que os partidos, verdadeiros “entes intermediários entre o povo e o Estado, integrados no processo governamental” , são o locus do público, e o cidadão eleito para cumprir o mandato é mero particular. Mero, porque sua relevância sucumbe – e é providencial que assim o seja – diante da grandeza da função pública por exercer em proveito dos interesses do cargo, e não, da pessoa, homem ou mulher, que o ocupe.

Resumindo as considerações, tem-se que:

(i) a dinâmica da arquitetura político-eleitoral desenhada na Constituição da República é caracterizada pela adoção, para certos cargos, de eleições “pelo sistema proporcional”, cujo mecanismo importa a primazia radical dos partidos políticos sobre a pessoa dos candidatos;

(ii) dessa caracterização de proporcionalidade brota, como princípio, a pertinência das vagas obtidas segundo a lógica do sistema, mediante uso de quocientes eleitoral e partidário, ao partido ou coligação, e não, à pessoa que sob sua bandeira tenha concorrido e sido eleita;

(iii) sua previsão constitucional encontra eco na legislação subalterna;

(iv) a doutrina, assim nacional, como estrangeira, não hesita em reconhecer, dentre os modelos teóricos, a superioridade do sistema proporcional, que, apesar das imperfeições, é o que mais bem respeita as exigências de justiça, eqüidade e representatividade, sem comprometer a estabilidade do governo.

E, sob tais fundamentos, respondo à consulta, afirmando que os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando, sem justificação nos termos já expostos, ocorra cancelamento de filiação ou de transferência de candidato eleito para outra legenda."

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