A fim de compatibilizar os direitos constitucionais à vida e à saúde com os valores inerentes à iniciativa privada e as regras do Direito do Consumidor, o procurador-Geral da República, Augusto Aras, propôs ao STF a fixação de uma interpretação conforme à Constituição Federal, no sentido de que seja reconhecido o caráter exemplificativo do rol de tratamentos e eventos previstos pela ANS.
Segundo os pareceres do PGR, não cabe à operadora do plano recusar o tratamento indicado pelo profissional de saúde sob o mero argumento de que o procedimento não consta da lista de cobertura obrigatória.
A manifestação se deu na ADIn 7.088, ajuizada pela Associação Brasileira de Proteção aos Consumidores de Planos e Sistemas de Saúde (Saúde Brasil), e nas ADIns 7.183 e 7.193, além da ADPF 986, que tratam do mesmo tema.
A ADIn 7.183 foi proposta pelo Comitê Brasileiro de Organizações Representativas das Pessoas com Deficiência (CRPD), e a ADIn 7.193, pelo partido político Podemos. Já a ADPF 986 é de autoria da Rede Sustentabilidade e do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Todas as ações são relatadas pelo ministro Luís Roberto Barroso.
Nos documentos enviados ao STF, Aras enfatiza a necessidade de se aplicar aos usuários dos planos de saúde a inversão do ônus da prova, como ocorre nas relações de consumo. Ou seja, caberia à operadora, em caso de discordância com o tratamento não previsto no rol de cobertura obrigatória, indicar outro procedimento eficaz, efetivo e seguro, já incorporado ao rol. No entanto, essa indicação não seria aplicada às situações de urgência, em que não haja tempo hábil para se aguardar resposta da operadora nesse sentido.
Já na hipótese de não haver substituto terapêutico, ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, a operadora poderá, sim, recusar o tratamento, sempre de forma fundamentada, em duas hipóteses. A primeira delas, quando a inclusão do tratamento indicado pelo médico já tenha sido fundamentadamente indeferido pela ANS; e a outra, nos casos de comprovada ineficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências ou quando não houver recomendação por órgãos técnicos de renome nacionais ou estrangeiros.
Esse posicionamento, no entanto, segundo argumenta o procurador-Geral, não conflita com o resultado do recente julgamento pelo STJ, ocorrido em 8 de junho deste ano. Isso porque, a análise a ser feita pelo STF é de constitucionalidade das normas indicadas para compatibilizá-las com os direitos fundamentais à vida e à saúde.
“A provocação do Supremo Tribunal Federal por esta ação direta se dá sob parâmetros constitucionais e de modo mais amplo, enquanto que, no Superior Tribunal de Justiça, a conclusão sobre a natureza da lista visou a solucionar casos concretos, fazendo-se análise ali da legitimidade de resoluções da ANS que estabeleceram/atualizaram o rol de procedimentos de cobertura obrigatória frente as disposições da Lei 9.656/1998. Portanto, são juízos distintos, examinados sob vieses e com amplitudes diversas.”
Direito à saúde
A Constituição de 1988 alçou a saúde à condição de direito fundamental e impôs ao poder público o dever de assegurar sua proteção, promoção e recuperação. Para isso, constitucionalizou o SUS e estabeleceu como diretrizes atuação descentralizada, atendimento integral à população e participação da comunidade em sua gestão.
Em complementariedade ao sistema público, facultou às empresas privadas prestarem serviços de saúde, impondo ao poder público a responsabilidade de regulamentar e fiscalizar o setor com a finalidade de corrigir falhas inerentes ao funcionamento do mercado e de proteger os usuários de possíveis abusos. É nesse contexto que surgem a ANS e a lei 9.656/98, que regula os planos e seguros privados de assistência à saúde.
A lei determinou a cobertura mínima a ser oferecida pelos planos de saúde, vedou a realização de contratos que propiciassem cobertura inferior à desse plano e incumbiu a ANS de pormenorizar os procedimentos que devessem integrar esse catálogo básico, bem como suas exclusões.
“No entanto, mesmo diante da possibilidade de inclusão periódica de novos tratamentos no rol de cobertura obrigatória, é preciso considerar que o avanço e a evolução de tecnologias na medicina nem sempre são acompanhados, com a mesma velocidade, por mecanismos que garantam que serão disponibilizados à população em tempo adequado.”
O PGR destaca ainda que é legítima a expectativa do beneficiário de plano de saúde em ter acesso a todas as medidas necessárias à preservação da sua saúde, uma vez que o artigo 35-F da lei 9.656/98 prevê que a assistência à saúde, prestada por planos privados, compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde.
“O entendimento pela taxatividade do rol, como regra, traz ônus significativos ao usuário, que haverá, sempre, de seguir caminho mais longo, pela via judicial, na tentativa de comprovar o seu direito à obtenção do tratamento prescrito no caso concreto”, complementa, ao lembrar ainda que a medida também onera o Judiciário, e acaba transferindo a ele a necessidade de averiguação de questão técnica.
“O reconhecimento do caráter exemplificativo do rol da ANS, com restrições, é consentâneo com a Constituição e com as regras que regem relações consumeristas, em maior medida do que a concepção de uma taxatividade mitigada. Ao fim, o resultado alcançado no caso concreto pode vir a ser o mesmo, mas a via até ele é facilitada em benefício do usuário-consumidor.”
Equilíbrio financeiro
Em outro trecho do parecer, Augusto Aras diz não corresponder à realidade a alegação das operadoras de plano de saúde de que haveria inviabilidade econômica caso se adote o modelo do rol exemplificativo. O PGR argumenta que, para coibir o desperdício e gerenciar os custos, as operadoras podem, desde que explicitado em contrato, realizar auditorias e perícias como parte do processo de análise de solicitação de procedimento submetido à autorização prévia (Resolução Consu 8/98).
Aras cita ainda a precificação desses planos, que é viabilizada por estudos epidemiológicos e avaliações atuariais. “Nesse passo, a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos planos se realiza em grande medida por meio dos mecanismos de fixação dos reajustes aplicáveis às mensalidades, os quais são alvo de normas da ANS e levam em conta as variações das despesas assistenciais e as taxas de sinistralidade”.
Interpretação conforme
Preliminarmente, o procurador-Geral da República opina pelo não conhecimento das ADIns 7.088 e 7.183, por falta de legitimidade ativa das entidades Saúde Brasil e CRPD, e pede ainda a exclusão do polo ativo do Idec na ADPF 986. No mérito, opina pela procedência parcial dos pedidos, para que seja conferida interpretação conforme à Constituição ao parágrafo 4º do artigo 10 da lei 9.656/98, alterado pela lei 14.307/22, para que:
(i) seja reconhecido o caráter exemplificativo do rol de cobertura de procedimentos e eventos em saúde suplementar de cobertura obrigatória, sendo vedado às operadoras de plano de saúde recusarem o tratamento prescrito pelo médico pela circunstância pura e simples de não estar previsto no rol da ANS;
(ii) seja permitido às operadoras de planos de saúde indicar tratamento diverso do prescrito pelo profissional de saúde, incorporado ou não ao rol da ANS, por razões de menor onerosidade, desde que tenha igual ou maior eficácia e segurança comprovadas, ressalvadas as situações de urgência em que não haja tempo hábil para se aguardar o posicionamento da operadora;
(iii) as operadoras somente possam recusar o tratamento ou procedimento prescrito pelo médico quando, não havendo substituto terapêutico,
(iii.a) a ANS tenha indeferido, prévia e fundamentadamente, sua inclusão no rol de procedimentos e eventos de saúde suplementar de cobertura obrigatória;
(iii.b) seja comprovadamente ineficaz ou inseguro, à luz da medicina baseada em evidências, ou
(iii.c) não seja recomendado por órgãos técnicos de renome nacionais ou estrangeiros.
Leia a íntegra das manifestações:
Informações: MPF.