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Machado de Assis e a Independência: "não houve grito, nem Ipiranga"

Em 1876, Machado de Assis falava, em uma de suas crônicas, das lendas que cercam o 7 de setembro de 1822.

7/9/2022

Em 1876, Machado de Assis comentava, em uma de suas crônicas, as festas do 7 de setembro.

O "grito" fazia 54 anos, e Machado diz que a festa teria remoçado.

E aproveita a deixa para soltar o aforismo: "também os aniversários envelhecem ou adoecem, até que se desvanecem ou perecem".

No caso do aniversário do Sete, embora já fosse um "cinquentão", ele afirmava que, naquele momento, estaria “muito criança”.

No mister de cronista, assim como fazia cotidianamente, Machado de Assis se referia a algo que tinha sido publicado em jornais nos dias anteriores. Neste dia, ele falava de um texto de autoria de Joaquim Antônio Pinto Junior, veiculado na Gazeta de Notíciasem 10 de setembro. O articulista mencionado teria criticado a narrativa que se fez do grito, e Machado repetia suas palavras: "segundo o ilustrado paulista não houve nem grito nem Ipiranga".

De acordo com Pinto Jr., descrito por Machado, "houve algumas palavras, entre elas a Independência ou Morte, — as quais todas foram proferidas em lugar diferente das margens do Ipiranga".

Com ironia, Machado passa a questionar a história romana, e se existiram ou não os famosos personagens. Para depois: 

"Mas isso é história antiga. O caso do Ipiranga data de ontem. Durante cinquenta e quatro anos temos vindo a repetir uma coisa que o dito meu amigo declara não ter existido. Houve resolução do Príncipe D. Pedro, independência e o mais; mas não foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do célebre ribeiro. Lá se vão as páginas dos historiadores; e isso é o menos."

Ao final, cunha um célebre pensamento:

“A lenda é melhor do que a história autêntica".

E segue:

“A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.”

Atualizando o imortal, diríamos que a verdade não pode estragar uma boa história.

Crônica de Machado de Assis aborda a fatídica história do 7 de setembro.(Imagem: Arte Migalhas)

Missiva

A carta de Joaquim Antônio Pinto Junior ao jornal Gazeta de Notícias, tema da crônica do Bruxo, foi publicada em 10 de setembro de 1876. Leia o trecho que mereceu atenção machadiana:

"A Independência do Brasil não se fez no Ypiranga como geralmente se diz, nem foi somente a illustrada abeça do estadista José Bonifácio, que elaborou esse grande pensamento.

O sangue dos mártires de 1817 em Pernambuco, a execução de Tiradentes e de tantas outras vítimas sacrificadas pela grande ideia, não seriam combustíveis accumulados para promoverem no dia 7 de setembro a explosão pela centelha expedida da metrópole, e por ventura motivada pela carta de José Bonifácio?!

As revoluções são o resultado da acumulação de circunstâncias, e os grandes homens, os que se colocam à testa, são levados na frente pela torrente revolucionárias, na impetuosidade, no movimento. 

Longe de mim querer roubar ao conselheiro José Bonifácio a parte direta que teve na nossa Independência, muito mais quando esta intervenção me foi muitas vezes relatada por seus respeitáveis irmãos e meus particulares amigos o velho Antonio Carlos e o venerando Martim Francisco! 

A história porém não tem paixões; encarando mais os princípios do que os homens, faz d'estes menção somente quando representam ideias, quando simbolizam princípios, acontecimentos de vulto e importância social.

José Bonifácio é um nome essencialmente ligado à história do Brasil, como pelo saber à história da humanidade, mas em relação à nossa independência, é mister não concentrar somente n'elle um triunfo para o qual trabalharam setivamente tantas inteligências robustas, que a história fria, calma e imparcial um dia há de registrar!

Em relação ao local em que foi proclamada a Independência, direi ao meu amigo, que o humilde e cristalino ribeiro denominado Ypiranga emprestou seu nome à nossa história pátria, por que assim o quiseram os primeiros escritores que trataram do fato.

A Independência foi proclamada, ou antes - o brado Independência ou morte - foi dado no alto da montanha ou colina, a mais talvez de mil braças do ribeiro Ypiranga, no lugar pertencente aos denominados campos de Piratininga. 

(...)

Nem eu, nem o meu estimável amigo escrevemos agora a história d’esse memorando acontecimento, mas bom é que fique liquidado desde já que, emquanto é tempo, este ponto importante, para que mais tarde a tradição não seja distraída da esteira da verdade."

Crônica

Leia a íntegra da crônica de Machado de Assis:

[15 setembro]

ESTE ANO parece que remoçou o aniversário da Independência. Também os aniversários envelhecem ou adoecem, até que se desvanecem ou perecem. O dia 7 por ora está muito criança.

Houve realmente mais entusiasmo este ano. Uma sociedade nova veio festejara data memorável; e da emulação que houver entre as duas só teremos que lucrar todos nós.

Nós temos fibra patriótica; mas um estimulante de longe em longe não faz mal a ninguém. Há anos em que as províncias nos levam vantagem nesse particular; e eu creio que isso vem de haver por lá mais pureza de costumes ou não sei que outro motivo. Algum há de haver. Folgo de dizer que este ano não foi assim. As iluminações foram brilhantes, e quanto povo nas ruas, suponho que todos os dez ou doze milhões que nos dá a Repartição de Estatística estavam concentrados nos largos de S. Francisco e da Constituição e ruas adjacentes. Não morreu, nem pode morrer a lembrança do grito do Ipiranga.

II

Grito do Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta de Notícias contra essa lenda de meio século.

Segundo o ilustrado paulista não houve nem grito nem Ipiranga.

Houve algumas palavras, entre elas a Independência ou Morte, —as quais todas foram proferidas em lugar diferente das margens do Ipiranga.

Pondera o meu amigo que não convém, a tão curta distância, desnaturar a verdade dos fatos.

Ninguém ignora a que estado reduziram a História Romana alguns autores alemães, cuja pena, semelhante a uma picareta, desbastou os inventos de dezoito séculos, não nos deixando mais que uma certa porção de sucessos exatos.

Vá feito! O tempo decorrido era longo e a tradição estava arraigada como uma idéia fixa.

Demais, que Numa Pompílio houvesse ou não existido é coisa que não altera sensivelmente a moderna civilização.

Certamente é belo que Lucrécia haja dado um exemplo de castidade às senhoras de todos os tempos; mas se os escavadores modernos me provarem que Lucrécia é uma ficção e Tarquínio uma hipótese, nem por isso deixa de haver castidade...e pretendentes.

Mas isso é história antiga.

O caso do Ipiranga data de ontem. Durante cinqüenta e quatro anos temos vindo a repetir uma coisa que o dito meu amigo declara não ter existido.

Houve resolução do Príncipe D. Pedro, independência e o mais; mas não foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do célebre ribeiro.

Lá se vão as páginas dos historiadores; e isso é o menos.

Emendam-se as futuras edições. Mas os versos? Os versos emendam-se com muito menos facilidade.

Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.


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