Migalhas Quentes

Criminalista Toron esclarece proposta de substituir recursos por HC

Objetivo é dar celeridade ao processo Penal, sem que haja ofensa ao direito de defesa.

22/4/2022

Criminalista Toron explica proposta de substituir recursos da defesa por HC.(Imagem: Marcus Leoni / Folhapress)

Recentemente, noticiamos no Migalhas o "projeto-Toron" - proposta do criminalista Alberto Zacharias Toron com o objetivo de dar celeridade ao processo Penal, sem que haja ofensa ao direito de defesa.

A proposta do advogado é de que sejam extintos, para a defesa, os recursos especial e extraordinário, pois "tudo o que se pode contestar via REsp ou RE (contrariedade a lei federal, no Superior Tribunal de Justiça, ou à Constituição, no Supremo Tribunal Federal) também pode ser questionado pela via do habeas corpus, sob o fundamento do constrangimento ilegal".

A proposta do criminalista recebeu críticas no meio criminal - o que mostra a importância do debate acadêmico. Agora, em artigo em que traz uma série de exemplos, o criminalista Alberto Zacharias Toron esmigalha o "projeto-Toron".

Ele destaca que, "se alargarmos a compressão dos efeitos das decisões nos habeas corpus, é perfeitamente possível desenvolverem-se os mesmos mecanismos existentes hoje para os recursos especiais e extraordinários, salvo, evidentemente, quando o writ versar sobre a questão da liberdade diretamente atingida, hipótese na qual o remédio heroico deverá ser julgado sem represamento ou qualquer outra delonga".

Leia a íntegra:

O HC E OS RECURSOS DE NATUREZA EXTRAORDINÁRIA

O Migalhas divulgou uma entrevista onde defendi a possibilidade de se extinguirem para a defesa os recursos especial e extraordinário, pois tudo o que se pode contestar via REsp ou RE (contrariedade a lei federal, no Superior Tribunal de Justiça, ou à Constituição, no STF) também pode ser questionado pela via do habeas corpus, sob o fundamento do constrangimento ilegal.

Entrevistas permitem expor ideias, mas, por mais cuidadosas que sejam, nem sempre com a extensão necessária para a boa compreensão do pensamento, sobretudo se sucedidas de ponderações, críticas e questionamentos mais do que justificados.

Para iniciar um diálogo, lembro que o Pleno do STF, no RE n. 1.177.984, do qual é relator o Min. Edson Fachin, atribuiu Repercussão Geral ao tema da “obrigatoriedade de informação do direito ao silêncio ao preso, no momento da abordagem policial, sob pena de ilicitude da prova, tendo em vista os princípios da não auto-incriminação e do devido processo legal”1 (Tema 1.185). Pois bem. Em data anterior ao julgamento desse recurso extraordinário, a mesmíssima matéria havia sido decidida monocraticamente no HC n. 186.797 do qual foi relator o Min. Celso de Mello2, tudo a demonstrar a convergência das possiblidades de decisões, por uma ou outra via, quando se trata da interpretação da Constituição ou mesmo da lei ordinária, como se viu no julgamento da questão do art. 212 do CPP3.

Há, porém, uma distinção bem apontada pelos meus críticos: no primeiro caso temos o reconhecimento da Repercussão Geral (RG) a gerar certa vinculação para as decisões futuras. Digo, “certa vinculação”, pois o CPC, no art. 927 trata de outras hipóteses, mas não a da RG. Seja como for e para citar outro exemplo, a vedação à aplicação das penas restritivas nos casos de tráfico privilegiado, constante da parte final do art. 44 da Lei de Tóxicos (11.343/06), foi, incidentalmente, julgada inconstitucional pelo Pleno do STF no julgamento do HC n. 97.256, relatado pelo Min. AYRES BRITTO4. A ementa do acórdão é um primor no que diz com o significado da individualização da pena e não por outra razão, quando o Pleno do STF julgou o RE com Agravo n. 663.261 e fixou o Tema 626, referiu expressamente o “entendimento consolidado no HC n. 97.256”. A ratio decidendi do primeiro julgado foi apenas reafirmada pelo segundo.

Se a ideia de formação de precedente estiver ancorada como aponta Daniel Mittidero em “razões generalizáveis”, que “colaboram para a determinação do direito e para a sua previsibilidade5, é possível dizer que o julgado proferido em habeas corpus pode gerar precedente a ser observado por outras cortes, desde que devidamente argumentado. Aliás, embora de forma perversa, foi o que aconteceu quando o Pleno do STF julgou o famigerado HC n. 126.292, relatado pelo saudoso Min. Teori Zavascki, e proclamou a constitucionalidade da “execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário”. A decisão, como poucas vezes se viu, foi tomada pelos tribunais em geral com efeito vinculante. O TRF da 4ª Região chegou até a editar a Súmula n. 122 em torno do tema.

No caso da prisão após o julgamento em segunda instância, a decisão majoritária do Pleno do STF funcionou como um verdadeiro precedente. Aliás, no ponto, é preciso o escólio de Danyelle Galvão6:

(...) se as decisões proferidas pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal ou pela Corte Especial possuírem ratio decidendi serão, pelo menos em tese, de observância obrigatória, por força do disposto no CPC, de 2015, desde que tenham fundamentação qualificada em restrita observância do artigo 93, inc. IX, da Constituição Federal de 1988 e do artigo 489, §1, do CPC, de 2015.

José S. Carvalho Filho, em valiosa coletânea produzida pelos assessores do STF, vaticina: “cedo ou tarde, doutrina e jurisprudência não mais categorizarão as decisões de inconstitucionalidade do Supremo Tribunal Federal quanto aos efeitos, em razão de terem sido proferidas no âmbito do controle incidental ou por meio de controle abstrato de constitucionalidade”7. Na síntese de Vinicius Gomes de Vasconcellos, “o refinamento da teoria do habeas corpus como formador de precedentes penais no Supremo Tribunal Federal é medida fundamental e relevante para o aprimoramento do processo penal brasileiro e a proeminência da corte na proteção de direitos fundamentais em matéria criminal. Ademais, reafirmando a força de tais precedentes, tende-se à racionalização do sistema judicial, reforçando a segurança jurídica e a previsibilidade do ordenamento”8.

Vale dizer, se alargarmos a compressão dos efeitos das decisões nos habeas corpus, é perfeitamente possível desenvolverem-se os mesmos mecanismos existentes hoje para os recursos especiais e extraordinários, salvo, evidentemente, quando o writ versar sobre a questão da liberdade diretamente atingida, hipótese na qual o remédio heroico deverá ser julgado sem represamento ou qualquer outra delonga. Referi-me apenas aos efeitos, pois, como vimos acima, o manejo do HC permite discutir todas as questões compreendidas pelos recursos de natureza extraordinária.

Por outro lado, observando o cotidiano da atividade forense de norte a sul do país, Thiago Bottino, em trabalho modelar sobre o HC nos tribunais superiores, com absoluta correção afirma que “as mais importantes decisões em matéria de Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito da Execução Penal foram travadas em sede de HCs ou RHCs”9. E, de fato, basta lembrar, para citarmos alguns exemplos, o julgamento da inconstitucionalidade do regime integralmente fechado contemplado na versão inicial da Lei dos Crimes Hediondos (art.?2º, §?1º)?se deu em um habeas corpus, aliás, redigido por um preso (HC n. 82.959, Pleno, relatado pelo Min. MARCO AURÉLIO, DJ 1º/9/2006). Idem quando, anos depois, incidenter tantum, se julgou inconstitucional a imposição obrigatória do regime inicial fechado, removendo-se o óbice constante do §?1º do art.?2º da Lei 8.072/90 (HC n. 111.840, Pleno, rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJe 17/12/2013).

Foi também por meio de um habeas corpus que o Pleno do STF, pela primeira vez, firmou o entendimento de que a nova sistemática do interrogatório definida pela reforma de 2008 se aplica aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial (cf. HC 127.900/AM, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 03.8.2016; AP 862 AgR/RJ, Rel. p/ Acórdão Min. Edson Fachin, DJe 5.8.2016; RHC 124.137/BA, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 01.6.2016; ADPF 378 MC/DF, Pleno, Rel. p/ Acórdão Min. Roberto Barroso, DJe 18.12.2015.

A relevante questão ligada à legitimidade de o Ministério Público conduzir investigações também fora decidida no histórico HC n. 94.173, relatado pelo Min. Celso de Mello na 2ª Turma do STF (DJ 27/11/2009).

O mesmo, agora no campo do direito penal, vale para a discussão travada sobre a descriminalização do aborto no HC n. 124.306, do qual foi relator para o acórdão o Min. Roberto Barroso (DJe 17/3/2017).

Pode-se dizer, com Thiago Bottino, que “em matéria penal, o HC é mais salutar para o sistema penal do que as próprias ações de controle concentrado de constitucionalidade”10 e, do ponto de vista da defesa, sem medo de errar, é igualmente mais salutar que os próprios recursos especial e extraordinário, pois o que neles recebe o nome de contrariedade à lei ou à Constituição, no writ recebe o nome puro e simples de constrangimento ilegal.

Não por acaso, inúmeros julgados de norte a sul do Brasil, de Tribunais Estaduais, Regionais e Superiores, têm proclamado a idoneidade do habeas corpus para sanar nulidade processual11 decorrente de inépcia de denúncia12, ou, para exemplificar, a decorrente da determinação da realização de interceptação telefônica por autoridade incompetente13 ou da colocação indevida de algemas no júri de modo a transmitir a ideia de que o acusado seja perigoso14; para evitar o indevido indiciamento15 e para preservar a cronologia das sustentações orais de modo a se impedir a inversão do contraditório16, ou mesmo a da entrega dos memoriais17.

Poderia me alongar em exemplos, mas o que me parece importante registrar é i. a procura de um novo paradigma inspirado nas ideias de proteção efetiva por meio de um remédio fácil de manejar e sem as peias que tanto dificultam o conhecimento dos recursos de natureza extraordinária e por outro lado, ii. que a proposta em discussão está em fase de elaboração e aprofundamento é portanto, um work in progress.

Por fim, agradeço aos meus críticos, todos amigos, e sem ter a pretensão de oferecer respostas acabadas, desejo seguir o debate.

*Alberto Zacharias Toron, advogado, Doutor em Direito pela USP, especialista em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca, Professor de Processo Penal da FAAP e conselheiro federal da OAB.

_____________

1 DJe 03/02/2022. Sobre o tema veja o meu artigo em coautoria com Renato Marques Martins, “O STF começa a construir as ‘regras de Miranda’ no Brasil”, no blog do Fausto em 9/12/2021, https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo. 

2 DJe 22/10/2020. 

3 Inquirição das testemunhas pelas partes e apenas supletivamente pelo juiz; HC n. 187.035, rel. Min. Marco Aurélio, DJe 14/6/2021. 

4 DJ 16/12/2010. 

5 Precedentes: da persuasão à vinculação. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 90. 

6 Precedentes judiciais no processo penal, São Pulo: JusPodium, 2022, p. 211.

7 Os efeitos da decisão de inconstitucionalidade do STF em julgamentos de habeas corpus, in: Habeas corpus no Supremo Tribunal Federal. 2ª Tiragem, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 60. 

8 O habeas corpus como formador de precedentes penais no STF, publicado na Revista eletrônica Conjur em 15/10/2020, www.conjur.com.br 

9 Habeas corpus nos tribunais superiores: análise e proposta de reflexão. Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV, 2016, p. 103.

10 Habeas corpus nos Tribunais superiores, cit., p. 103.

11 STJ, 5ª T., HC 17.953, rel. Min. GILSON DIPP, DJ 08/08/2002 e, entre muitos outros, RHC 13.798, rel. Min. Félix Fischer, DJ 03/11/2003; apud: Alberto Silva Franco em: Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2004, v.?I, p. 1150-1151. 

12 STF, HC 70.687, rel. Min. Pertence, RT 708/414; apud: A. Silva Franco, ob. cit, p. 1151 e, entre muitos outros, STF: HC 85.948-8/PA, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, DJ 23/05/2006; RHC 85.658/ES, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 12/08/2005; HC 83.948-7-SP, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 07/05/2004; HC 80.549/SP, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 24/08/2001. STJ, entre muitos outros, 5ª T., HC 171.976, rel. Min. Gilson Dipp, DJe 13/12/2010. 

13 STJ, 5ª T., HC 83.632, rel. Min. Jorge Mussi, DJ 20/09/2010. 

14 STF, Pleno, HC 91.952, rel. Min. Marco Aurélio, DJ 19/12/2008. Sobre o tema, ver ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO na Revista Brasileira de Ciências Criminais, dez. 1992, p. 110, Sobre o uso de algemas no julgamento pelo Júri. 

15 STJ, 5ª T., HC 58.323, rel. Min. Gilson Dipp, DJ 11/09/2006 e STJ, 6ª T., HC 18.054, rel. Min. Paulo Gallotti, DJ 22/08/2001, entre muitos outros. 

16 STF, Pleno, HC 87.926, rel. Min. Peluso, DJ 25/04/2008. 

17 STF, 2ª T., AgRg no HC n. 157.627, rel. p/ o ac. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 17/3/2020 e, posteriormente, no Pleno HC n. 166.373, rel. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, J. em 02/10/2019.

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