Como se sabe, na última sexta-feira, 10, quatro réus foram condenados pelo incêndio da boate Kiss, que vitimou 242 pessoas e deixou outras 636 feridas. São eles:
- Elissandro Callegaro Spohr, sócio da casa noturna: 22 anos e 6 meses
- Mauro Londero Hoffmann, sócio da casa noturna: 19 anos e 6 meses
- Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda: 18 anos
- Luciano Bonilha Leão, auxiliar do grupo musical: 18 anos
Para ler a íntegra da sentença é só clicar aqui.
O juiz Orlando Faccini Neto, que presidiu o júri, chegou a decretar a prisão dos réus, mas um HC preventivo os manteve em liberdade. Desta decisão, o MP/RS recorre ao STF.
Caso
Em 27 de janeiro de 2013 a boate Kiss, localizada na área central de Santa Maria, sediou a festa universitária denominada "Agromerados". No palco, se apresentava a banda Gurizada Fandangueira, quando um dos integrantes disparou um artefato pirotécnico cujas centelhas atingiram parte do teto do prédio, que era revestido de espuma, que pegou fogo. O incêndio se alastrou rapidamente, causando a morte de 242 pessoas e deixando mais 636 feridos.
Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann eram sócios da casa noturna. Marcelo de Jesus dos Santos era vocalista da banda Gurizada Fandangueira. E Luciano Bonilha Leão, o auxiliar do grupo musical.
Julgamento
O júri do caso Kiss teve início em 1°/12/21. Passaram pelo plenário do 2º andar do Foro Central I 28 depoentes, dos quais, 12 vítimas, 13 testemunhas e 3 informantes. Inicialmente, seriam ouvidas 34 pessoas, mas cada parte abriu mão de oitivas para otimizar o tempo dos trabalhos. Os interrogatórios dos réus começaram na noite do dia 8/12.
Interrogatórios
Os réus só responderam aos questionamentos do magistrado e das suas próprias defesas. Todos choraram, mandaram recados aos familiares das vítimas, negaram a intenção de causar a tragédia e deram as suas próprias versões dos fatos.
Elissandro Spohr, o Kiko, foi o primeiro a ser interrogado. "Perdi amigos, funcionários. Por que eu ia fazer isso? Querem me prender, me prendam. Eu não aguento mais", afirmou o sócio da Kiss. Ele garantiu que foi levado a crer que agiu de acordo com a legalidade. E negou que tivesse autorizado o uso de artefatos pirotécnicos pela banda Gurizada Fandangueira.
Luciano Bonilha Leão esclareceu aos jurados que era roadie e não produtor musical da banda, pois não tinha conhecimento técnico musical; apenas era um auxiliar do grupo. Foi ele quem adquiriu, em uma loja da cidade, os artefatos pirotécnicos utilizados no show da Gurizada Fandangueira. Ele disse que não recebeu orientações de uso pelo funcionário do estabelecimento. Também foi Luciano quem acionou o fogo de artifício e o colocou na mão do vocalista, Marcelo.
"É legítimo deles lutar por justiça. Mas eu tenho a consciência de que não foi o meu ato que tirou a vida desses jovens. Se for para tirar a dor dos pais, tô pronto, me condenem."
Mauro Londero Hoffmann, sócio da boate Kiss, se defendeu das acusações dizendo que era apenas investidor da casa noturna e que não acompanhava as decisões tomadas por Elissandro, o sócio-administrador do local. Afirmou que sua condição para ingressar na sociedade era que a documentação estivesse em dia e que fosse concluída a reforma que Kiko fazia no espaço para corrigir o vazamento acústico que incomodava os vizinhos, cumprindo, assim, o estabelecido pelo Ministério Público no TAC - Termo de Ajustamento de Conduta, que apurava o caso.
"Todo e qualquer fato administrativo da boate eu não fazia parte. Eu não tinha nem a chave da boate Kiss."
Marcelo de Jesus dos Santos afirmou em juízo que era de conhecimento geral (inclusive da boate Kiss) que a banda Gurizada Fandangueira utilizava os recursos pirotécnicos nas suas apresentações. "Todo mundo sabia, nunca foi escondido de ninguém". Contou que estava no palco, com o artefato na mão, alcançado pelo colega, Luciano. Estava com a mão para o alto e que, de repente, viu que começou o fogo. Lembrou que tentaram usar o extintor de incêndio, mas que este não funcionou.
Teses defensivas
Responsável pela denúncia que colocou os quatro acusados no banco dos réus, o Ministério Público pediu a condenação deles por homicídio simples com dolo eventual (quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo). O promotor de Justiça David Medina da Silva, a promotora Lúcia Helena Callegari e os assistentes de acusação, advogados Amadeu Weinmann e Pedro Barcellos, sustentaram seus argumentos em plenário.
"Colocar fogo num lugar cheio de gente é crime doloso", afirmou Medina. "Condenem os quatro! Eles têm responsabilidade e não podem passar ilesos! A história não pode ser repetida! Todos nós choramos por Santa Maria, mas não podemos chorar de novo. Se desclassificarem ou absolverem, estarão dizendo: façam, que não dá nada", afirmou Lúcia.
Já o advogado criminalista Amadeu Weinmann defendeu que "242 pessoas morreram por falta de iluminação para orientar a saída, de extintor de incêndio. Isso é o que traz o dolo. Não cumpriram uma obrigação legal de manter a proteção dos habitantes das boates à noite".
A defesa de Kiko, representada pelo advogado Jader Marques, pediu a desclassificação para outro crime, que não o doloso. "Não determinem a condenação dessas pessoas por dolo eventual", pediu o advogado. "O raciocínio de que eles sabiam o que estavam fazendo é ridículo, é absurdo".
Já a defensora de Marcelo, advogada Tatiana Borsa, pleiteou ao Conselho de Sentença a absolvição do cliente. Marcelo "jamais imaginou tirar a vida de jovens. Tirar a vida de quem dava comida, o sustento para ele e para a família dele".
Os advogados Mário Cipriani e Bruno Seligman de Menezes defendem Mauro Hoffmann. Eles pediram absolvição, desclassificação de crime ou participação reduzida para o empresário. "A defesa pede que reconheçam a materialidade (houve mortes), mas, na condição de investidor, Mauro não teve ações ou omissões que tenham concorrido penalmente para a práticas do resultado. Ele vai seguir respondendo no âmbito cível", ressaltou Seligman.
A absolvição também foi o pleito da defesa de Luciano. "Condenar por dolo eventual seria a coisa mais absurda da vida", disse o advogado Jean Severo aos jurados. "Vocês acham que esse roadie queria a morte de 242 pessoas? Será que isso é fazer justiça?", questionou o defensor.
Decisão
Na decisão, o magistrado mencionou a dor das famílias antes a perda de seus filhos. Referiu que um juiz do júri acaba se deparando inumeráveis vezes com pais ou mães que comparecem em audiências ou plenários chorando a morte dos seus filhos.
"Isso, entretanto, nunca pode ser naturalizado, e mais do que isso, parece potencializado quando a experiência da morte deixa de ser algo individual para constituir-se numa dimensão coletiva. Foram mais de 240 mortes e a expressividade do número de vítimas não dividi ou arrefece as dores ou tragédias pessoais, multiplica-as."
O juiz refletiu:
"Os dados do processo indicam, sem qualquer margem para dúvida, a presença de intenso sofrimento, decorrente das razões pelas quais morreram as vítimas. Quem, num exercício altruísta, por um minuto apenas buscar colocar-se no ambiente dos fatos, haverá de imaginar o desespero, a dor e o padecimento das pessoas que, na luta por sua sobrevivência, recebiam, todavia, a falta e a ausência de ar, os gritos e a escuridão, em termo tão singulares que não seria demasiado qualificar-se tudo o que ali foi experimentado ao modo como assentado pela literatura, "o horror, o horror."