Um grupo de pessoas endividadas é convidado a participar de uma série de jogos com prêmio milionário. O que eles não sabem é que a derrota pode lhes custar o que têm de mais caro: a própria vida.
É este o enredo de Round 6, série da Netflix que, em pouco mais de duas semanas de seu lançamento, está prestes a se tornar a mais assistida da história da plataforma. O fenômeno tomou a internet, virou meme e é conhecido até por quem não deveria assisti-la: as crianças.
As análises põem em debate a crítica social presente no drama. Mas há, também, questões jurídicas envolvidas na trama, mais próximas da “vida real” do que se pode imaginar.
Proteção de dados
A série coreana envolve personagens com problemas financeiros e que topam participar de jogos baseados em brincadeiras da infância - o primeiro episódio é intitulado "batatinha frita 1, 2, 3". A diferença é que a derrota envolve mortes violentas.
Na série, é gritante o problema da vulnerabilidade de dados pessoais: os responsáveis pelos "jogos mortais" têm informações pessoais daqueles que buscam como jogadores - sabem sobre dívidas, se estão desempregados etc. Quer dizer, a escolha dos participantes é baseada em dados, que são utilizados como forma de coagi-los a participar. A falta de controle e proteção deixa seus titulares em risco e vulnerabilidade.
Embora apresentado de maneira extrema, é explícito aí um problema real: a vulnerabilidade dos dados pessoais gera consequências para a vida das pessoas.
O advogado especialista em Direito Digital Renato Opice Blum (Opice Blum, Bruno e Vainzof Advogados Associados) destaca que uma legislação como a LGPD impediria esse tipo de conduta. No caso da série, não estão presentes hipóteses de tratamento de dados, como legítimo interesse, execução de contrato, consentimento ou cumprimento de norma legal (previstos no art. 7º da LGPD) que serviriam como base para o uso dessas informações.
O advogado ainda destaca que, na série, houve desvio da finalidade pela qual os dados foram tratados – conforme previsto no art. 6º da LGPD. "Dados de crédito, por exemplo, serviriam apenas para crédito, e teriam sido aproveitados para outros fins sem o devido consentimento.”
Segundo a advogada Patricia Peck (Peck Advogados), conselheira do CNPD - Conselho Nacional de Proteção de Dados, toda a legislação de proteção de dados pessoais, inclusive a LGPD, exige que as instituições adotem um modelo de "ética de dados", ou seja, que tratem dados pessoais com base nos princípios de transparência, legitimidade, finalidades específicas, minimização, segurança.
"O que a série Round 6 mostra é justamente o abuso disso. Ou seja, o que todos os participantes têm em comum? Terem dívidas ou grande dificuldade financeira e isso servir de estímulo para participar do jogo. Logo, quem fazia a seleção podia obter este tipo de informação e usá-la para esta finalidade. Isso vem ao encontro justamente com o que a legislação de proteção de dados traz de mudança: ela não proíbe o uso das informações, mas exige transparência."
Peck destaca que as pessoas precisam saber para que finalidade seus dados serão tratados.
"Em vários momentos, os participantes questionam como o jogo sabe tanto a seu respeito e – sem querer dar 'spoiler' – o jogo dá a entender que a origem dos dados vem provavelmente de uma instituição financeira em que a maioria tem conta e dívidas. O que novamente mostra um desvio de finalidade de uso dos dados pessoais."
Outra questão envolvendo a série diz respeito à clareza de informações, os "termos" dos jogos. Em dado momento da trama, os jogadores questionam sobre as regras, que precisam ser claras. Mais uma vez a advogada faz alusão à LGPD, que determina termos e políticas claras, adequadas e ostensivas – previsão dos arts. 8 e 9 – para que o consentimento seja válido, sendo vedado o tratamento se houver vício de consentimento.
Netflix processada – I
Além de levantar a questão dos dados pessoais, a Netflix foi alvo de processos na Justiça causados pela série Round 6.
Em determinada cena, os jogadores recebem um cartão com um número de telefone, número esse que realmente existe e pertenceria a uma empresária coreana. Após o lançamento da série, a dona do número teria recebido mensagens e ligações por conta da série. Ela teria rejeitado oferta de indenização, e a Netflix estaria trabalhando para resolver o problema, incluindo a edição de cenas com o número.
A advogada Patrícia Peck destaca que há aí um alerta para a importância da anonimização de dados pessoais (art. 12 da LGPD). Ela pontua a importância de, em qualquer projeto, aplicar "privacy by design", previsto no artigo 46, inciso II, da LGPD. "Se usassem dados fictícios ou anonimizados, não teriam problemas."
Netflix processada – II
A plataforma responde, ainda, a outro processo gerado pela série. Segundo a revista Rolling Stone, a Netflix foi processada por uma empresa de internet da Coreia do Sul por conta do alto tráfego de dados utilizados pelo público para assistir à produção.
A empresa SK Broadband teria alegado que o tráfego de dados utilizado para ver Round 6 é imenso e exige que o serviço de streaming de filmes arque com os custos de manutenção deste tráfego. Outras plataformas, como Amazon, Facebook e Apple já estariam pagando taxas devido ao uso de seus serviços, mas a Netflix estaria pagando valores que não correspondem ao tráfego gerado. Assim, requer indenização milionária.
Desdobramentos criminais?
Em meio a tanta polêmica, haveria implicações criminais envolvendo Round 6?
A popularidade da série violenta tem preocupado pais e educadores. Embora tenha classificação de 16 anos, o título virou febre entre as crianças e adolescentes, não só pelo streaming, como em virais no TikTok, Instagram e YouTube. Plataformas de jogos infantis “pegaram carona” no sucesso e criam brincadeiras baseadas na série. Lojas vendem fantasias, tênis e roupas.
Ante a situação, vários colégios fizeram alerta aos pais sobre o conteúdo, destacando que as crianças têm sito expostas a temas impróprios.
Mas o criminalista Pierpaolo Cruz Bottini (Bottini & Tamasauskas Advogados) não vislumbra implicações no âmbito criminal envolvendo a produção. Ele pontua que, ainda que em caso extremo, se fosse realizado algo baseado na trama com consequências violentas, não seria possível responsabilizar criminalmente a plataforma por mortes ou lesões.
No mesmo sentido é a opinião da criminalista Daniella Meggiolaro (Malheiros Filho, Meggiolaro e Prado - Advogados): sem vislumbrar, do ponto de vista criminal, qualquer consequência jurídica na exibição da série – especialmente porque há classificação indicativa a maiores de 16 anos – a advogada alerta que cabe aos pais fazerem o controle do que as crianças e adolescentes assistem.
__________________