O plenário do STF retomou, nesta quarta-feira, 15, o julgamento que discute o chamado "marco temporal" para a definição das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena. O ministro Alexandre de Moraes pediu vista, suspendendo o julgamento.
Na semana passada, o relator do processo, ministro Edson Fachin, votou no sentido de que a posse da terra indígena deve ser definida por tradicionalidade. Para o ministro, a tese do marco temporal em terras indígenas é incompatível com a Constituição Federal. O julgamento foi retomado com o voto do ministro Nunes Marques, que divergiu do relator.
Marco temporal é a tese que estabelece que os povos indígenas só têm direito à demarcação de suas terras se provarem que a ocupavam no dia da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988).
A quem pertence a terra?
Em 2009, a FATMA - Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina buscou a Justiça, por meio de ação de reintegração de posse, dizendo que é legítima possuidora de uma área de mais de 80 mil m² localizada na linha "Esperança-Bonsucesso". Segundo a Fundação, essa área compõe uma gleba maior, chamada de "Reserva Biológica do Sassafras".
Acontece que, naquele ano, 100 indígenas ocuparam a referida área, "ali se instalando, e acabaram por derrubar a mata nativa do interior da reserva, construíram picadas e montaram barracas".
A FUNAI - Fundação Nacional do Índio rebateu o argumento da FATMA alegando que aquela área, na verdade, é protegida pela portaria 1.182/03, do ministério da Justiça, que declarou de posse permanente dos grupos indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani a Terra indígena Ibirama-La Klãnõ, com superfície aproximada de 37 mil hectares, localizada nos municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, José Boiteux e Vitor Meireles, todos em Santa Catarina.
Em 1º e 2º graus a Justiça entendeu que a área deveria ser reintegrada à FATMA - Fundação do Meio Ambiente, sob o seguinte fundamento:
"não há elementos que permitam inferir que as terras referidas na petição inicial sejam tradicionalmente ocupadas pelos índios, na forma do art. 231 da Constituição Federal, máxime porque quem as vem ocupando, ainda atualmente, para fins de preservação ambiental, como visto, é a parte autora."
Em 2019, o plenário do STF reconheceu a repercussão geral da matéria por unanimidade. Naquela oportunidade, o relator, ministro Fachin, frisou que não estão pacificadas pela sociedade, nem mesmo pelo Poder Judiciário, questões como o acolhimento pelo texto constitucional da teoria do fato indígena, os elementos necessários à caracterização do esbulho possessório das terras indígenas, a conjugação de interesses sociais, comunitários e ambientais, a configuração dos poderes possessórios aos índios e sua relação com procedimento administrativo de demarcação.
Marco temporal: controvérsia
O julgamento do presente caso vai requerer dos ministros uma extensa e profunda análise do artigo 231, da CF/88, o qual dispõe o seguinte:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
O grifo "tradicionalmente ocupam" é o ponto sensível da questão. Em 2017, a AGU emitiu o parecer 1/17 trazendo à tona o marco temporal.
O marco temporal estabelece que os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem comprovadamente sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Tal parecer foi aprovado pelo então presidente da República Michel Temer.
Atualmente, este parecer está suspenso por ordem do ministro Edson Fachin. Ao suspender o texto, o ministro considerou que o parecer poderia prejudicar diversas comunidades indígenas, que poderiam deixar de receber o tratamento adequado dos poderes públicos, "em especial no que se refere aos meios de subsistência, se a demarcação de suas terras não foi ainda regularizada".
Para os indígenas, a aprovação do marco temporal seria uma forma de estrangular o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras.
Marco temporal: não
Edson Fachin iniciou seu voto explicando que os direitos das comunidades indígenas consistem em direitos fundamentais, que garantem a manutenção das condições de existência e vida digna aos índios. O relator registrou que a Constituição confere aos indígenas brasileiros direitos individuais e coletivos a serem garantidos pelos Poderes Públicos “por meio de políticas que preservem a identidade de grupo e seu modo de vida, cultura e tradições”.
O ministro anotou que a quantidade de ações possessórias referentes às terras ocupadas por indígenas revela o descuido por parte dos órgãos públicos em respeitar o disposto no artigo 231 do texto constitucional: “os indígenas no Brasil permanecem (...) dependendo das providências administrativas para ver concretizado seu direito à terra”.
“Logo, descumprindo-se a Constituição, não são feitos os estudos antropológicos, não se demarca e se os servidores não possuem condições de levar a término todos os procedimentos demarcatórios em trâmite perante a FUNAI, a toda evidência essas demandas judiciais permanecerão a ocorrer, com a judicialização de todas as fases do complexo processo de demarcação dessas terras.”
Posteriormente, o ministro salientou a importância da terra para os indígenas, “que não tem valor comercial, não funciona como mercadoria”. Segundo o relator, a função da terra se liga “visceralmente” à conservação das condições de sobrevivência e do modo de vida indígena.
De acordo com Edson Fachin, os direitos territoriais originários dos índios são reconhecidos (e não constituídos), “portanto, preexistem à promulgação da Constituição”. “(...) a demarcação não constitui a terra indígena, mas apenas declara que a área é de ocupação pelo modo de viver indígena”, registrou o ministro.
“repita-se que o procedimento demarcatório não constitui terra indígena em nenhuma de suas fases, mas apenas reconhece a existência da posse tradicional preexistente (...)”
Em seu voto, Fachin relembrou “as atrocidades causadas aos índios desde 1500”, por meios violentos e obscuros, para incentivar a abertura de terras para ocupação do interior do país, tornando à força terras indígenas: “como poderia a ordem constitucional de 1988 (...) legitimar a obtenção das terras indígenas por meio da violência, desqualificando o direito dessas comunidades?”, questionou.
Considerando todo este contexto, o ministro votou contra o marco temporal, levando em consideração que muitos indígenas foram expulsos de suas terras antes de 1988:
“resistir aos conflitos de forma reiterada, a persistir até a data da promulgação da Carta Magna, seria enfrentar a morte quase certa, algo que também não parece ter sido a intenção do constituinte quando assegurou a posse das terras que ocupam de forma tradicional."
Para Fachin, assegurar aos índios os direitos originários às terras que tradicionalmente ocupam não se confunde com “usucapião imemorial”. Ademais, o ministro explicou que essa tese ignora a situação dos índios isolados, ou seja, comunidades indígenas de pouco ou nenhum contato com a sociedade envolvente, ou mesmo com outras comunidades indígenas.
Nesse sentido, o relator propôs a seguinte tese:
“Os direitos territoriais indígenas consistem em direito fundamental dos povos indígenas e se concretizam no direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sob os seguintes pressupostos:
I - a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
II - a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;
III - a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988, porquanto não há fundamento no estabelecimento de qualquer marco temporal;
IV - a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição.
V - o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições;
VI - o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência;
VII – as terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e lagos nelas existentes;
VIII – as terras de ocupação tradicional indígena, na qualidade de terras públicas, são inalienáveis, indisponíveis e os direitos sobre elas imprescritíveis;
IX – são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras de ocupação tradicional indígena, ou a exploração das riquezas do solo, rios e lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito à indenização ou ação em face da União pela circunstância da caracterização da área como indígena, ressalvado o direito à indenização das benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé;
X – há compatibilidade entre a ocupação tradicional das terras indígenas e a tutela constitucional ao meio ambiente.”
Marco temporal: sim
Nunes Marques, próximo a votar após o relator, iniciou o voto ressaltando que a imposição de um prazo para demarcação de terras indígenas, no art. 67 do ADCT da Constituição de 88, não deixa dúvida que era intenção do constituinte abolir de vez qualquer discussão sobre o que era e o que não era espaço indígena, delimitando claramente seu alcance.
“É preciso ter presente que a redação do texto constitucional claramente aponta no sentido que a posse indígena deveria existir no ano de 1988, em caráter tradicional. As posses depois de 1988 não podem ser consideradas tradicionais porque isso implicaria não apenas o reconhecimento dos direitos indígenas às suas terras, mas sim o direito de expandi-las ilimitadamente para novas áreas já definitivamente incorporadas ao mercado imobiliário internacional”
Para Nunes, a propriedade privada é elemento fundamental das sociedades capitalistas, como é a brasileira atual, e a insegurança sobre esse direito é sempre causa de grande desassossego e de retração de investimentos.
O ministro divergiu do relator para negar provimento ao recurso extraordinário, propondo a seguinte tese:
“Os direitos territoriais indígenas constituem direito fundamental desses povos e se concretizam no direito sobre as terras que tradicionalmente ocupam sobre os seguintes pressupostos:
I - A posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas pelos índios em caráter permanente das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessárias ao seu bem-estar e das indispensáveis à sua reprodução física e cultural, segundo os costumes e tradições que lhe são próprios, nos termos do § 1º art. 231 do texto constitucional;
II - a proteção constitucional dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam depende da existência de um marco temporal - 5 de outubro de 1988 -, ou da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição;
III - a demarcação é prosseguimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidades indígenas;
IV - a deflagração de processo demarcatório que contemple uma determinada terra indígena tradicional não se constitui em causa suficiente de per si à emissão dos indígenas na respectiva posse, porquanto tal procedimento, de natureza complexa, depende da deliberação da Funai, do ministério da Justiça e do presidente da República, não surtindo quaisquer efeitos aos interessados antes de sua última ação, restando assim plenamente resguardada a posse legítima dos ocupantes de boa-fé;
V - o laudo antropológico realizado em observância ao disposto no decreto 1.776/96 é elemento fundamental à demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada;
VI – o reconhecimento do direito às terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas se compatibiliza com a tutela constitucional do meio ambiente, porém sobre ele não se sobrepõe e, por isso, não pode vilipendiar as terras titularizadas por terceiros, sejam eles particulares ou pessoa jurídicas de direito público, tampouco se cogita que se possa vulnerar propriedade privada ou a própria defesa do meio ambiente, ambos alentados como princípio sobre os quais se baseiam a ordem econômica;
VII – a interferência unilateral da União em território estadual somente deve ser autorizada a partir de critérios constitucionalmente adequados, evitando-se a privação da propriedade ou dos bens de terceiro sem o devido processo penal, garantia fundamental expressamente albergada no texto constitucional;
VIII – as terras de ocupação tradicional indígena são de posse permanente da comunidade, cabendo aos índios o uso fruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes;
IX – as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, na qualidade de terras públicas são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas são imprescritíveis;
X – são nulos e extintos, de modo a não produzirem efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a posse, o domínio ou a ocupação das terras tradicionais indígenas ou a exploração do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, não assistindo ao particular direito a indenização ou ao ajuizamento de ação contra a União em virtude da caracterização da área como indígena, ressalvada indenização pelas benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé."
- Processo: RE 1.017.365