Em entrevista ao Migalhas, a advogada tributarista Patrícia Varela (Castro Barros Advogados), falou sobre o alinhamento das regras brasileiras de preço de transferência.
Varela abordou o plano de trabalho da OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico e da RFB - Receita Federal do Brasil para atingir um alinhamento global, no qual foi analisado as semelhanças e divergências das regras brasileiras de preços de transferência, em comparação com as normas internacionais.
Veja a entrevista:
Migalhas: Em qual estágio o Brasil está no alinhamento das regras brasileiras de preço de transferência às normas internacionais?
Patrícia Varela: A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Receita Federal do Brasil (RFB) iniciaram, em fevereiro de 2018, com o objetivo de atingir um alinhamento global, um plano de trabalho para analisar as semelhanças e divergências das regras brasileiras de preços de transferência, em comparação com as normas internacionais que observam as Diretrizes da OCDE.
Em dezembro de 2019 foi lançado o Relatório Conjunto OCDE-RFB, no qual foram identificadas as principais divergências e destacadas as principais ineficiências da legislação brasileira, que acabavam ocasionando, no âmbito internacional, hipóteses de dupla tributação, ou ainda de dupla não tributação, aumentando, assim, a probabilidade de riscos de erosão da base tributária e transferência de lucros (Base Erosion and Profit Shifiting- BEPS).
Diante desse cenário, concluíram que a melhor alternativa para o Brasil seria o alinhamento integral com as diretrizes desenvolvidas pela OCDE.
Todavia, considerando que o sistema de margens fixas previstas nas normas brasileiras garante, no âmbito doméstico, uma maior simplicidade e segurança jurídica, os contribuintes brasileiros expressaram preocupações quanto ao possível aumento de complexidade, custos e litígios, por ocasião da implementação de novas normas no Brasil.
Assim é que, no início deste ano, foi lançada uma pesquisa pública para o desenvolvimento de medidas de simplificação setoriais (para o desenvolvimento de safe harbours, levantamento de informações para dados de comparáveis, e desenvolvimento de Acordos de Preços Antecipados – Advanced Price Agreement- APAs entre outras), como parte da fase de implementação do projeto conjunto de preços de transferência.
Atualmente, a RFB e a OCDE analisam as respostas dos contribuintes à pesquisa pública realizada, para que, a partir disso, possam desenvolver um ambiente normativo com novas regras brasileiras de preço de transferência, incluindo, nesse contexto, medidas de simplificação.
É importante ressaltar, no entanto, que ainda existem diversas lacunas no Relatório Conjunto OCDE-RFB que precisam ser endereçadas de forma a alcançarmos um alinhamento integral com as normas internacionais, principalmente no que se refere ao tratamento a ser dispensado às transações mais complexas (exemplo: uso ou transferência de intangíveis, serviços intragrupo, acordos de contribuição de custos, reestruturações de empresas e transações financeiras), que não são contempladas pela norma brasileira.
Migalhas: Há opções de alinhamento com o Padrão OCDE para o Brasil: alinhamento total e imediato ao modelo OCDE ou alinhamento total e gradual. Qual seria mais recomendado para os agentes brasileiros?
Patrícia Varela: No Relatório Conjunto OCDE-RFB, divulgado no final do ano passado, existem duas opções possíveis para o alinhamento: i) o alinhamento total e imediato, o que contempla a alteração imediata das novas regras de preços de transferência para todos os contribuintes; e (ii) o alinhamento completo e gradual, a ser realizado considerando os tipos de transações ou as características das empresas, estruturado em etapas, para a implementação gradual das novas disposições.
Considerando as diferenças existentes entre a atual norma de preço de transferência brasileira e as normas internacionais que observam as diretrizes da OCDE, é pertinente a implementação de condições para uma transição progressiva, levando em conta o tipo de transação, ou o setor, ou, ainda, características do contribuinte.
Nesse sentido, é possível que tenhamos algum tipo de regime de transição, como ocorreu quando do alinhamento das normas contábeis brasileiras às normas internacionais (IFRS). O regime de transição é importante para a adaptação dos contribuintes às novas regras, como também para garantir a capacitação da própria administração fazendária.
Migalhas: Há uma corrente que defendia que um dos grandes obstáculos seria a burocracia brasileira. Essas barreiras estão sendo vencidas?
Patrícia Varela: Durante todo o projeto, OCDE-RFB analisam medidas para garantir a simplificação e segurança jurídica aos contribuintes brasileiros, no alinhamento das regras brasileiras de preço de transferência com as normas internacionais, em observância às diretrizes da OCDE.
A burocracia brasileira, porém, é sim um grande obstáculo a ser superado nas diversas fases da implementação das novas regras:
(i) durante o desenvolvimento das novas regras brasileiras de preço de transferência, considerando a complexidade do tema, e das normas tributárias em geral, a redação deve ser clara e objetiva. Adicionalmente, deverá versar sobre as medidas de simplificação e as transações complexas (conforme mencionado anteriormente) e a documentação;
(ii) o processo de aprovação da nova norma, que poderá ocorrer por Medida Provisória (MP) ou Projeto de Lei, requerendo, assim, a aprovação do Congresso Nacional e do Presidente da República;
(ii) na implementação da nova norma, que enfrentará o desafio da clareza da redação, da capacitação dos contribuintes e da administração fazendária à nova metodologia e os requisitos.
Tendo em vista que estamos migrando de um sistema objetivo - baseado em margens fixas pré-estabelecidas - que permite o contribuinte aplicar o método que lhe é mais benéfico -, para um sistema subjetivo que depende da interpretação pelo contribuinte e da autoridade tributária quanto ao alcance do conceito de arm’s lenght, em muitos casos do uso de comparáveis, e da interpretação de qual seria o método mais apropriado para a transação, estima-se um aumento no contencioso em matéria de preços de transferência no País (processos demorados, de aplicação imprevisível ou inconsistente de padrões internacionais).
Nesse contexto, um desafio a ser enfrentado será a mudança no relacionamento contribuinte-autoridade tributária. Por exemplo, para a aplicação do Mutual Agreement Procedure(MAP), enfrentaremos, ainda, a falta de experiência internacional na administração tributária.
Migalhas: O relatório que orienta as bases desse alinhamento recomenda que o Brasil adote margens fixas o que vai de encontro ao princípio arm's lenght, pois estas não refletem a realidade econômica de todas as operações. Qual caminho podemos seguir?
Patrícia Varela: A RFB e os contribuintes brasileiros, em geral, defendem a manutenção das margens fixas previstas na legislação brasileira, pois, no âmbito doméstico, trazem simplicidade à aplicação das regras e proporcionam segurança jurídica aos contribuintes.
Todavia, sob a perspectiva internacional, a utilização de tais margens diverge da realidade econômica e da aplicação dos padrões internacionais de tributação pela maioria das jurisdições. Isto pode gerar um aumento da incerteza tributária, levando, em muitos casos, à dupla tributação ou dupla não tributação, com o aumento da probabilidade de riscos quanto ao BEPS.
Por isso, considerando a perspectiva internacional, definiu-se que a única opção seria pelo alinhamento integral com o padrão internacional.
Como falado, OCDE-RFB estão atuando com base nas respostas à consulta pública, analisando possíveis safe harbours que garantiriam simplificação e segurança jurídica. Não se sabe, ainda, se podem ser mantidas margens fixas para determinado setor ou transação.
Migalhas: A OCDE apresenta 5 métodos de definição de preços de transferência, sendo que dois deles não são adotados no Brasil. São eles o Transactional Net Margin Method (TNMM) e o Profit Split. Na mesma linha, qual será a via encontrada para os interesses nacionais?
Patrícia Varela: A ausência do método Transactional Net Margin (TNMM) internacionalmente aceito, e que, de certa forma, proporciona certa simplificação, é um ponto de potencial dificuldade e incerteza para os contribuintes brasileiros, no âmbito do estabelecimento de sua política global de preços de transferência. Por essa razão, tem-se que a ausência do TNMM aumenta o risco de incerteza em âmbito internacional.
Igualmente, considerando que o Profit Split é o método mais apropriado quando as empresas fazem contribuições únicas/valiosas ou controlam conjuntamente riscos economicamente significativos, a ausência desse método pode comprometer a alocação adequada de receita e limitar a capacidade da administração tributária de alocar a base tributável apropriada aos contribuintes no Brasil, aumentando, por conseguinte, a probabilidade de riscos de BEPS.
O alinhamento integral, como tratado anteriormente, deve ser de fato integral, e os novos métodos devem ser contemplados na nova legislação, a fim de atrair maior segurança jurídica no âmbito internacional.