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Histórico: STF definirá em repercussão geral se há direito ao esquecimento

Debate evoca princípios da dignidade da pessoa humana, inviolabilidade da honra e direito à privacidade versus a liberdade de expressão e de imprensa e direito à informação.

30/9/2020

Sob a nova gestão do presidente Luiz Fux, o plenário do STF decidirá uma das mais relevantes controvérsias da contemporaneidade: a aplicação do instituto do direito ao esquecimento na esfera civil. O processo é relatado pelo ministro Toffoli.

O caso concreto tem origem em julgamento do STJ, capitaneado pelo voto do ministro Luis Felipe Salomão, reconhecendo o direito ao esquecimento, embora afastando-o no caso concreto.

Os irmãos de Aida Curi ajuizaram ação de reparação contra a TV Globo após a história do conhecido crime ser apresentada no programa Linha Direta, com a divulgação do nome da vítima e de fotos reais. Mesmo reconhecendo que a reportagem trouxe de volta antigos sentimentos de angústia, revolta e dor diante do crime, que aconteceu quase 60 anos atrás, a turma entendeu que o tempo, que se encarregou de tirar o caso da memória do povo, também fez o trabalho de abrandar seus efeitos sobre a honra e a dignidade dos familiares.

O tema ganhou amplitude nos últimos anos, como se nota pela sintética linha do tempo que destaca relevantes decisões sobre a matéria:

Direito ao esquecimento das vítimas

O advogado Roberto Algranti Filho (Algranti e Mourão Advogados Associados), que representa a família de Aida Curi, explica que o Supremo “pode e mesmo deve ampliar e também julgar” o instituto em gênero, mas sua espécie “da vítima” há de ser prioritário, “até mesmo pelas suas peculiaridades, pois ela não colaborou para o crime e por força da sua especial fragilidade psíquica e social”.

Caso reconhecido o direito ao esquecimento em gênero e/ou espécie, o STF o delimitará de modo a impedir seu uso abusivo, e fixará limitações - por exemplo, não se aplicará a quem pertencer à memória nacional, a fatos contemporâneos com interesse social, a trabalhos acadêmicos e a pessoas que tenham renunciado em parte ou totalmente à sua privacidade, e disto se beneficiem (v.g., artistas, políticos).

A tese recursal, conforme a defesa, é no sentido de não ser possível afirmar que uma pessoa anônima, vítima de violência sexual, pertença ao patrimônio histórico e cultural de um povo, por maior que tenha sido a repercussão do caso em si. “Não ampliar excessivamente os conceitos é preservá-los”, afirma Algranti Filho.

Impactos

O tema a ser debatido no âmbito da repercussão geral evoca princípios fundamentais da Constituição brasileira: a dignidade da pessoa humana, inviolabilidade da honra e direito à privacidade versus a liberdade de expressão e de imprensa e direito à informação.

Uma das principais preocupações diante da possibilidade de aplicação do direito ao esquecimento na esfera civil é o seu impacto no direito à liberdade de informação e expressão.

A advogada Taís Borja Gasparian, expert em Freedom of Expression pela Universidade de Columbia e representante da Abraji – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (amicus curiae no processo), destaca justamente que o prejuízo extrapola o âmbito da imprensa e dos provedores de internet.

Para o advogado Roberto Algranti Filho, entretanto, a preocupação é infundada: “Qual a razão para negarmos uma proteção mínima (e somente depois de noticiários caudalosos contemporâneos) a uma vítima de crime cientificamente sujeita a patologias psiquiátricas graves, como o estresse pós-traumático, que, literalmente, mata pessoas em vida.

O causídico cita exemplo oriundo da Alemanha, no que se denomina de caso “Lebach 2”, quando o mesmo documentário que havia sido proibido pelo Tribunal Constitucional Alemão, em 1973, foi por ele autorizado em 1999, dado o cuidado de seus produtores em não exibir imagens e nomes reais: “É só um exemplo de como a imprensa e mídia poderão preservar vidas e dignidades sem deixar de noticiar.

Por sua vez, o advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira (Affonso Ferreira Advogados) aponta que o direito ao esquecimento, para que não sacrifique o direito à memória em quaisquer de suas vertentes – a histórica, a social, a política, a econômica ou a religiosa – “há ser prudentemente exercido ecautelosamente acolhido, sob pena de, em não o fazendo, apagarem-se registros de interesse coletivo e público”.

Noutras palavras, o esquecimento não poderá constituir-se em regra ecumênica e cabalística de abstrata incidência, devendo, pois, ser casuisticamente aferido e, somente em hipóteses extremas de iniquidade, funcionar como implacável borracha do passado.

Nessa linha, prossegue Manuel Alceu, sempre que impetrado o direito ao esquecimento, o Judiciário deverá antes de tudo “avaliar se, na hipótese concreta apresentada, o direito à memória não merece prevalecer, de sorte a resguardar, na possível recordação de todos, os feitos, atos e ocorrências que concernem à vida, à saúde, ao bem estar, à paz e ao progresso das sociedades humanas”. 

"Agir de outro modo significará a radical supressão da história e de suas relevantes lições, com todos os óbvios prejuízos daí resultantes.

Pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que o julgamento no Supremo será um marco para o Direito Civil. E o professor de Direito Civil da UERJ Anderson Schreiber, do IBDCivil - Instituto Brasileiro de Direito Civil (também amicus curiae no processo de repercussão), afasta a alegação de que a aplicação do direito ao esquecimento transformaria a privacidade em meio de censura.

O direito ao esquecimento deve ser visto como um direito da pessoa humana de se defender contra uma retratação pública desatualizada e opressiva, que a apresente como algo diverso do que ela efetivamente é. Por exemplo, uma pessoa trans tem direito a não ser retratada publicamente como uma pessoa que nasceu com um sexo diverso, porque essa retratação pública minaria o desenvolvimento da sua trajetória pessoal. A vítima de um crime sexual tem direito a não ser lembrada, a todo tempo, por meios públicos de comunicação, de que foi vítima desse crime. Se toda vez que o nome dela surgir em algum lugar ele for associado ao crime, ela estará sendo retratada de modo diminuído, desse atual, preso a um evento pretérito que ela se esforça por superar.

Dessa forma, esclarece o advogado, não se trata de “um direito contra a História”, e sim a favor de uma retratação atual do ser humano, impedindo que ele seja todo o tempo amarrado ao seu passado.

O direito ao esquecimento é a favor da verdade histórica; só é contra transformar o passado em presente, dando um peso desproporcional aos fatos pretéritos de modo que a pessoa humana seja retratada de um modo que não corresponde à verdade de hoje.

Quando indagado se é possível conciliar o direito à informação, à liberdade de imprensa e expressão com o direito ao esquecimento, a resposta é positiva. No caso do espanhol Mario Gonzales, marco do reconhecimento do direito ao esquecimento na Europa, Anderson Schreiber pontua que a Corte de Justiça da União Europeia determinou que a referência pública à sua dívida, extinta muitos anos antes, fosse suprimida do motor de buscas na internet, mas fosse mantida no site do jornal que deu a notícia no momento em que era atual.

Isso faz muito sentido: preserva-se o registro na imprensa e o registro histórico, mas se suprime a referência dos primeiros resultados do motor de buscas que acabam sendo hoje um meio frequentemente usado para saber quem é a pessoa. Esses resultados podem fazer a pessoa ser compreendida à luz daquilo que ela não é mais, com anos, às vezes décadas de distância.”

De acordo com o advogado, apesar do debate ter se tornado “muito ideológico, quase um Fla x Flu”, é possível "diante dos atuais meios tecnológicos, com um pouco de inteligência e sensibilidade, mantermos o pleno exercício da liberdade de imprensa e o direito à informação, poupando um pouco a dignidade humana e a privacidade dos retratados”.

As questões a serem enfrentadas pela Corte Suprema são tormentosas. Não à toa, a expectativa é de que, tão logo o relator Dias Toffoli apresente seu voto, sobrevenha um pedido de vista.

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