“Em nenhum país, pelo que se sabe, ministros responsáveis pela pasta da saúde são demitidos por não se ajustarem à opinião pessoal do governante máximo da nação e por não aceitarem, portanto, ser dirigidos por crenças e palpites que confrontam o que a generalidade dos demais países vem fazendo na tentativa de conter o avanço dessa avassaladora pandemia.”
A constatação é do ministro Rogerio Schietti Cruz, do STJ, ao indeferir HC impetrado por deputada estadual contra o isolamento social em Pernambuco.
A deputada Clarissa Tércio pretendia a concessão de salvo-conduto para que os cidadãos de Pernambuco pudessem circular livremente, a despeito do decreto estadual 49.017/20, que intensificou as medidas de restrição à movimentação de pessoas para combater a pandemia do coronavírus.
A pretensão foi fulminada pelo ministro Schietti, que se reportou à jurisprudência do STJ e do STF para concluir que o HC "não é cabível contra ato de caráter normativo, para discussão de lei em tese e situações gerais e abstratas, nem é sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade".
Críticas
Segundo Schietti, além de não ter viabilidade jurídica, o pedido da deputada "parece ignorar o que acontece, atualmente, em nosso país". Mencionando os números de vítimas da pandemia – 17.971 mortes até terça-feira, 19 –, S. Exa. ressaltou que PE é o segundo Estado mais afetado do Nordeste, com 1.741 óbitos.
Medidas mais drásticas de prevenção, de acordo com Schietti, foram adotadas em diversos países, diante do agravamento da crise sanitária, que já produziu mais de 4,7 milhões de casos de covid-19 no mundo todo.
"A grande e principal diferença em relação a esses países e o nosso é que em nenhum deles – à exceção, talvez, dos Estados Unidos, cujo presidente é tão reverenciado por seu homólogo brasileiro – existe uma clara dissensão entre as políticas nacional e regionais.
Talvez em nenhum, além desses dois países, o líder nacional se coloque, ostensiva e irresponsavelmente, em linha de oposição às orientações científicas de seus próprios órgãos sanitários e da Organização Mundial de Saúde.”
Schietti fez referência, ainda, aos casos de agressão a profissionais de saúde noticiadas há poucos dias e prosseguiu:
“Simulações de sepultamentos, com gracejos sobre as trágicas perdas de centenas de famílias, bloqueios de passagem de ambulâncias, protestos em frente a hospitais etc somam-se à absoluta falta de empatia e um mínimo de solidariedade a quem teve filhos, pais, avós, esposos levados, em muitos casos de maneira dolorosa e sem direito a despedida ou luto, pelo novo coronavirus.”
(Des)governo
Ao falar sobre a expectativa de agravamento da situação no Brasil, Schietti declarou que "boa parte dessa realidade se pode creditar ao comportamento de quem, em um momento como este, deveria deixar de lado suas opiniões pessoais, seus antagonismos políticos, suas questões familiares e suas desavenças ideológicas, em prol da construção de uma unidade nacional". S. Exa. lamentou, porém, que o recado seja outro.
"O recado transmitido é, todavia, de confronto, de desprezo à ciência e às instituições e pessoas que se dedicam à pesquisa, de silêncio ou até de pilhéria diante de tragédias diárias. É a reprodução de uma espécie de necropolítica, de uma violência sistêmica, que se associa à já vergonhosa violência física, direta (que nos situa em patamares ignominiosos no cenário mundial), e à violência ideológica, mais silenciosa, porém igualmente perversa, e que se expressa nas manifestações de racismo, de misoginia, de discriminação sexual e intolerância a grupos minoritários."
A soma de tudo isso, segundo Schietti, "gera um sentimento de insegurança, de desesperança, de medo – ingredientes suficientes para criar uma ambiência caótica, propícia a propostas não apenas populistas mas de retrocesso institucional, como tem sido a tônica nos últimos tempos".
Para Schietti, o país continua, assim, “(des)governado na área de saúde”, “mercê das iniciativas nem sempre coordenadas dos governos regionais e municipais, carentes de uma voz nacional que exerça o papel que se espera de um líder democraticamente eleito e, portanto, responsável pelo bem-estar e saúde de toda a população, inclusive da que não o apoiou ou apoia”. Há dias não há um titular no ministério da Saúde, desde a saída de Nelson Teich, que ficou cerca de um mês no comando da pasta, após a saída tumultuada de Henrique Mandetta.
“Falta-nos uma leitura, uma vivência e um respeito ao que nos propusemos a fazer como povo, que, na dicção do preâmbulo e dos primeiros artigos de nossa Constituição de 1988, se propõe a formar uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, apoiada sobre princípios como o da dignidade da pessoa humana, da cidadania, do pluralismo político, com o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária e de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
Pedindo escusas pelas observações que “escapam da moldura estritamente jurídica”, S. Exa. indeferiu liminarmente o HC.
- Processo: HC 580.653
Veja a decisão.
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