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O mundo, o país e o papel de cada um, por Luís Roberto Barroso

Em discurso como paraninfo da turma de graduação da UniCEUB, o ministro falou sobre responsabilidades de todos, como a preservação da democracia e do meio ambiente, combate à pobreza e à desigualdade e sobre viver com amor e ideal.

18/2/2020

Os compromissos com o mundo, o país e com si próprio foram tema de discurso do ministro Luís Roberto Barroso como paraninfo da turma de graduação em Direito de 2020 do Centro Universitário de Brasília - UniCEUB.

O ministro abordou em sua fala as responsabilidades de todos nós, como a preservação da democracia e do meio ambiente, a manutenção da revolução tecnológica num percurso ético, combate à pobreza e à desigualdade e, como não poderia faltar, viver com amor e ideal - o que dá sentido à própria existência.

Leia a íntegra:

O mundo, o país e o papel de cada um

Luís Roberto Barroso1

I. Introdução

Ser escolhido paraninfo de uma turma nunca é para mim a mera repetição de um ritual. Pelo contrário, é sempre uma emoção nova, uma outra alegria, uma festa surpresa para o espírito. Eu vivo para os meus sonhos de juventude. E estar aqui e agora é um deles. Por tudo isso, sou grato por me concederem a honra e o privilégio de associar o meu nome à turma de vocês e por me permitirem ser um dos oradores nesse rito de passagem da vida acadêmica para o mundo real.

Vocês estão destinados ao sucesso, a grandes realizações profissionais e pessoais. O universo lhes concedeu esse privilégio. Tenham a dimensão dessa responsabilidade. Com grande humildade, mas também com a autoridade do meu afeto, sugiro que vocês considerem, nesse momento marcante da vida, três compromissos que merecem ser celebrados ou renovados. O primeiro deles é com o mundo, com os destinos da humanidade: somos todos cidadãos do mundo; o segundo é com o Brasil, com o nosso dever de fazer um país melhor, maior e para toda a gente: somos todos cidadãos brasileiros; e o terceiro é o compromisso de cada um consigo mesmo, com a vida boa: somos todos criações de nós mesmos.

Aqui vamos, então.

II. Três compromissos com o mundo

1. Manter a Revolução Tecnológica num percurso ético

O mundo contemporâneo sofre o impacto da Revolução Tecnológica ou Digital que modificou dramaticamente a maneira como vivemos. Isso inclui um novo vocabulário, com palavras que designam utilidades que até ontem não conhecíamos e sem as quais hoje já não saberíamos viver. Algumas delas: Google, Uber, Waze, Skype, Whatsapp, Telegram, Facebook, Instagram, Amazon e Netflix. Para os solteiros também tem o Tinder. Somos contemporâneos do admirável mundo novo da Tecnologia da Informação, da Inteligência Artificial, da Biotecnologia, da computação quântica, da impressão em 3-D, dos carros autônomos e outras modernidades.

Temos o compromisso de fazer com que todas essas inovações e avanços tecnológicos não se desviem de uma trilha ética e estejam a serviço do bem, do progresso social e do avanço civilizatório. Não são poucos os riscos e ameaças, que vão das tentações da eugenia e da criação de super-homens até o fim da privacidade, passando por campanhas de desinformação e drones assassinos.

2. Preservar a democracia

A democracia constitucional foi a ideologia vitoriosa do século XX, derrotando todos os projetos alternativos que com ela concorreram: comunismo, fascismo, nazismo, regimes militares e fundamentalismos religiosos. Ultimamente, no entanto, alguma coisa parece não estar indo bem pelo mundo afora, com uma perigosa combinação de intolerância, populismo e autoritarismo. Os exemplos se acumularam ao longo dos anos: Hungria, Polônia, Rússia, Turquia, Ucrânia, Filipinas, Nicarágua, Venezuela... Em todos esses casos, a erosão da democracia não veio por meio de golpes militares, mas por presidentes e primeiros-ministros eleitos pelo voto popular. Porém, uma vez no poder, desconstroem o regime democrático concentrando poderes no Executivo, perseguindo a oposição, cerceando a imprensa, mudando regras eleitorais ou esvaziando as supremas cortes de juízes independentes.

O Brasil tem uma democracia jovem e resiliente, que superou tempestades variadas. Mas é preciso renovar constantemente os nossos compromissos com a limitação do poder e o respeito aos direitos fundamentais. Já percorremos os ciclos do atraso e aprendemos com a História. Na frase emblemática de Ulysses Guimarães, “temos ódio e nojo à ditadura”.

3. Não destruir o meio ambiente

Um dos fenômenos definidores do nosso tempo é o risco ambiental, o aquecimento global, a mudança climática. A Terra vive um momento crítico causado pelo uso excessivo de combustíveis fósseis (petróleo, gás natural e carvão), pelo desmatamento e pelo modo de exploração agrícola e pecuária. As consequências são graves. Já vivemos o derretimento das calotas polares, o aquecimento e a elevação dos oceanos, bem como o incremento de fenômenos climáticos extremos, que incluem furacões, secas, inundações e queimadas fora de controle. Não podemos ficar indiferentes. Temos compromissos com as novas gerações e não temos o direito de legar a elas um Planeta devastado, que impeça nossos filhos e netos de viverem uma vida de qualidade, com desenvolvimento sustentável.

III. Três compromissos com o Brasil

1. Um pacto de integridade

Precisamos celebrar no Brasil um Pacto de Integridade que substitua o pacto oligárquico que tem prevalecido até aqui. Um dos sinais externos mais visíveis do domínio do país por elites extrativistas e frequentemente desonestas é a corrupção estrutural, sistêmica e institucionalizada em que estamos enredados. O problema da corrupção não é apenas o uso dos cargos públicos para a obtenção de vantagens indevidas, mas, sobretudo, o conjunto de decisões equivocadas que são tomadas pelas motivações erradas.

O Pacto de Integridade só precisa de duas regras essenciais: no espaço público, não desviar dinheiro; no espaço privado, não passar os outros para trás. Do Legislativo, espera-se que aprove uma reforma política capaz de baratear o custo das eleições e aumentar a representatividade do Parlamento; do Executivo, que seus integrantes não se considerem sócios do Brasil, recebendo participação ilegítima em todos os contratos públicos; e do Judiciário, que trate com seriedade os crimes de colarinho branco, pois a leniência em relação a eles permitiu que o país fosse saqueado.

2. O combate à pobreza e à desigualdade

A pobreza e a desigualdade são renitentes estigmas da formação nacional. É certo que nas últimas duas décadas, cerca de 28 milhões de pessoas deixaram a faixa da pobreza extrema2. Mas a desigualdade continua abissal: de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo. A esse propósito, o Índice Gini, que mede as desigualdades de uma sociedade, e que vinha caindo nos últimos anos, voltou a subir a partir de 2015, em razão da recessão e do desemprego. Segundo a Oxfam, no início de 2017, as 6 (seis) pessoas mais ricas do Brasil possuíam riqueza equivalente à metade mais pobre da população.

As causas da pobreza são muitas e vão desde o abandono da população negra após o fim da escravidão até o retardamento em universalizar a Educação Básica. Esse longo itinerário passa, também, por políticas públicas regressivas – concentradoras de renda –, como era o sistema previdenciário e ainda é o sistema tributário. Não há como o Brasil furar o cerco da renda média e se tornar verdadeiramente desenvolvido com os níveis de desigualdade aqui existentes.

3. A retomada do desenvolvimento

A retomada do crescimento econômico, a melhor distribuição da renda nacional e a redução drástica do desemprego são imperativos para a superação da pobreza e a atenuação das desigualdades. Para a geração de riquezas que trará o crescimento, há um movimento duplo e aparentemente contraditório a ser feito. Por um lado, é imprescindível diminuir o tamanho do Estado administrativo (o custo do funcionalismo público e da Previdência soma 80% do gasto primário) e do Estado econômico (com redução drástica de empresas estatais, cujos propósitos e recursos são frequentemente malversados). Por outro lado, é imperativo aumentar o investimento público em áreas como educação, saúde, saneamento, infraestrutura, segurança e transportes3, bem como aprimorar e aprofundar redes de proteção e inclusão sociais, que vão do Bolsa Família ao FIES.

Prioridade absoluta para a Educação Básica, incentivo à ciência, tecnologia e empreendedorismo, choque de iniciativa privada e melhoria geral dos serviços públicos são itens de uma agenda de retomada do desenvolvimento. O compromisso aqui envolve responsabilidade fiscal, econômica e social. Cada um fazendo a sua parte.

IV. Três compromissos consigo próprio

1. Levar uma vida ética

Viver uma vida ética significa viver uma vida boa, ser bom, evitar fazer o mal, tratar a todos com respeito e consideração. A vida boa, tomando emprestado algumas categorias de Aristóteles, inclui virtude, razão prática e coragem moral. A virtude consiste em cumprir bem o próprio papel, fazer a coisa certa, não desviar do reto caminho. Quem se move por valores e consegue ser fiel a si mesmo, não perde nunca. A virtude é a sua própria recompensa. Virtude não significa moralismo, superioridade ou arrogância. Não é critério para julgar os outros, mas para traçar os próprios caminhos. É a simplicidade da correção pessoal, dos bons propósitos e dos bons sentimentos.

Razão prática ou prudência é a capacidade de fazer juízos adequados, conjugando a realidade e os fatos da vida com os valores a serem preservados e os fins a serem alcançados. A razão prática visa à melhor decisão possível, com a motivação correta e a busca dos melhores resultados. E, por fim, a coragem moral, que é a determinação interior de fazer o que deve ser feito, como deve ser feito, quando deve ser feito. Sem bravatas, com discrição, serenidade e firmeza.

O universo protege as pessoas que vivem assim. Creiam em mim.

2. Fazer as coisas bem-feitas

O sucesso tem um grande segredo: o empenho em fazer as coisas bem-feitas. Uma observação prévia: sucesso não é fama, dinheiro ou reconhecimento. Esses são subprodutos eventuais. Sucesso é uma realização pessoal interior, é cumprir o próprio papel da melhor forma possível. É uma porta que abre por dentro, e não uma conquista que dependa de terceiros. Fazer as coisas bem-feitas significa dar o melhor de si: estudar, preparar, treinar, ensaiar, ousar, testar os próprios limites. Não há fracasso onde há esforço verdadeiro, comprometimento efetivo. Ganhar ou perder faz parte da vida. Nenhuma vida completa é feita só de vitórias.

No clássico poema épico indiano Bhagavad Gita, quando Arjuna está hesitante em participar da batalha decisiva, Krishna, o Deus personificado, indica-lhe o caminho:

“Quem cumpre bem o seu dever

Independentemente do resultado

Este é o homem verdadeiro

Não o que foge do seu papel.

                       ...

Ninguém que faz bom trabalho

Terá um final infeliz”4.

3. Viver com amor e ideal

O último compromisso que gostaria de destacar é o que dá sentido e propósito à existência: ter amor e ter ideal. Ambos são componentes essenciais de uma vida boa e completa. Amar é sair de dentro de si e descobrir a alegria de se dedicar ao outro. Existem múltiplas formas de amor: filial, paternal, conjugal, erótico, fraternal. Todas valem a pena. Por sua vez, o ideal está para a vida pública como o amor está para a vida privada. Ter ideal significa viver para objetivos que estão além do interesse imediato, do proveito próprio. É a capacidade de servir ao outro, ao país, à causa da humanidade. Aristóteles, ainda uma vez, utilizou o termo eudemonia para identificar a vida vivida em plenitude, o florescimento pessoal, a verdadeira felicidade. É isso que do fundo do coração desejo para todos vocês.

Lembrando que a felicidade não está em um evento, em uma conquista, em uma realização. Mas, sim, num estado geral de contentamento, de graça, de apreciação permanente das coisas boas que nos cercam. Uma espécie de gratidão ao universo. Como quase tudo na vida, é uma escolha, não um destino.

V. Encerramento

Aqui termino, cumprimentando pais, parentes, amigos e pretendentes que participaram dessa jornada com vocês e que são parceiros dessa conquista. A propósito, uma última coisa: ninguém é bom demais, ninguém é bom em tudo e, muito importante, ninguém é bom sozinho. Lembrem-se sempre de agradecer. Meus queridos afilhados: vão em paz, sejam felizes, façam o mundo melhor.

_______________

1. Discurso de Paraninfo da turma de graduação em direito de 2020 do Centro Universitário de Brasília.
2. Porém, em 2017, ainda havia 16 milhões de brasileiros vivendo abaixo desse patamar.
3. Armínio Fraga, Estado, Desigualdade e Crescimento no Brasil, mimeografado, 2019.
4. Bhagavad Gita. Trad. para o inglês de Stephen Mitchell. Tradução livre para o português do autor deste texto.

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